Entrevista

Nacional-populismo: uma conversa com Roger Eatwell

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Para o Estado da Arte, em uma entrevista conduzida por Rodrigo Coppe e traduzida por Jonathan Goudinho, Roger Eatwell — emérito da Universidade de Bath e, com Matthew Goodwin, coautor de Nacional-Populismo: A revolta contra a democracia liberal — falou sobre democracia liberal e iliberal e as convergências e diferenças entre as manifestações do fenômeno do nacional-populismo ao redor do globo.

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Roger Eatwell (Reprodução)

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Rodrigo Coppe: O que caracteriza o fenômeno do populismo na contemporaneidade?

Roger Eatwell: O populismo, especialmente o nacional-populismo, pode exibir traços locais específicos, o que significa que não podemos produzir um “retrato falado” adequado. Alguns comentaristas afirmam que populistas são como camaleões manipuladores, principalmente em razão de prometerem às pessoas aquilo que querem ouvir e oferecerem soluções simples para problemas complexos (está é a base para a atual definição de populismo no Dicionário de Cambridge). Entre acadêmicos, essa leitura tende a fazer parte de uma definição mais ampla, que vê o populismo como um estilo de fazer política. Embora esta abordagem também tenda a ser pejorativa, destaca um conjunto maior de marcas, fatores de estilo, notadamente: o líder carismático ou forte; tendência em adotar linguagem “comum” em vez do jargão das elites para se identificar com as pessoas comuns; tendências para teorias da conspiração e para a demonização maniqueísta dos oponentes. Todavia, alguns argumentam que o populismo é mais bem compreendido como uma ideologia “frágil” — isto é, tão simples, que normalmente tem que se combinar com outras para produzir uma plataforma política relativamente ampla (estas outras incluem o nacionalismo, o socialismo e mesmo a economia do laissez-faire — todas as que podem ser encontradas na América Latina em décadas recentes). A abordagem ideológica aponta para três metáforas-chave recorrentes no pensamento e na retórica populista: (1) a importância de reconhecer que o princípio democrático central é a “regra do povo”; (2) a associação entre pessoas comuns; (3) a reinvindicação de que as elites (que podem ser entendidas de diferentes formas, como ricos, educados, judeus, estrangeiros etc.) são, de fato, a verdadeira fonte do poder e que, além disso, desprezam as pessoas comuns (exemplo é a descrição que Hillary Clinton fez dos apoiadores de Trump em 2016: um “cesto cheio de deploráveis”). Esta abordagem ideológica significa que o populismo pode ser visto como um corretivo útil ao caminho que a democracia tomou em se tornar de muitas maneiras mais elitista e distante das pessoas comuns (por exemplo, a diminuição do número de pessoas da classe trabalhadora no Parlamento em relação a décadas atrás em países como a Grã-Bretanha e a França; o poder considerável nas mãos das empresas e think thank americanas; a influência dos banqueiros internacionais etc.). Críticos da abordagem ideológica argumentam que ela é sempre perigosa porque rejeita os direitos liberais, minimiza a necessidade de compromissos e procura por bodes expiatórios (incluindo imigrantes, nas versões da direita). Também tende a rejeitar o conhecimento acadêmico em áreas-chave, como as mudanças climáticas, declarando que existe um consenso politicamente correto que reprime pontos de vista contrários.

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RC: Quais são os elementos que levaram ao surgimento de líderes populistas de direita?

RE: Novamente, precisamos olhar fatores específicos dos países, bem como os fatores gerais. Bolsonaro, por exemplo, não se beneficiou do movimento dos eleitores da classe trabalhadora afastados da velha centro-esquerda (embora isso tenha mudado em 2020) da forma como vimos na vitória de Trump, em 2016, ou no voto do Brexit. Se procuramos fatores gerais, em Nacional-Populismo: a revolta contra a democracia liberal destacamos o que chamamos de quatro Ds:[*] (1) Crescente desconfiança nos políticos, que são vistos como distantes, corruptos etc. (2) Medo crescente da destruição de coisas como a identidade nacional (a imigração foi importante aqui), a comunidade (incluindo as comunidades locais danificadas pela mudança socioeconômica) e os valores tradicionais, incluindo os religiosos (os movimentos populistas não são necessariamente religiosos; por exemplo, o Partido de Independência do Reino Unido (UKIP) ou o Reagrupamento Nacional (França) embora frequentemente usem a ameaça do Islã para tirar proveito da centralidade da tradição cristã no Ocidente. (3) Privação relativa [deprivation] — essa não é apenas uma questão sobre recessão, como nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha pós 2008 ou, mais recentemente, no Brasil. É sobre como, em geral, os ricos tornaram-se mais ricos, enquanto as pessoas comuns viram os salários estagnarem, e em muitos países isto foi acompanhado de uma mudança de trabalhos formais de longo prazo para os informais de curto prazo (que, nos Estados Unidos, não oferecem seguro-saúde). Uma forte característica dos eleitores de Trump, em 2016, foi a perda na fé no sonho americano — a crença de que seus filhos cresceriam para serem melhores do que eles. (4) A tendência dos eleitores se afastarem [de-alignment] dos principais partidos. Em alguns casos, isto está vinculado ao declínio dos partidos com ligação religiosa, como os democratas-cristãos na Europa, ou da centro-esquerda associada aos sindicatos. Em alguns países, como o Brasil ou os ex-comunistas da Europa, partidos recentes nunca foram tão inseridos na sociedade civil. Uma questão eleitoralmente crucial para Bolsonaro: será que ele poderá fazer uma séria inserção no reduto do Partidos dos Trabalhadores, como parece fazer após conceder o auxílio emergencial para as camadas mais pobres da sociedade em 2020? Esses quatro Ds[*] são, essencialmente, o que os acadêmicos chamam de fatores da economia de alta demanda por produtos e serviços. Também precisamos olhar para os três lados da oferta, para questões sobre como os líderes podem se representar como homens fortes (muito mais comumente que líderes mulheres populistas), como usar as novas mídias etc. Trump, em 2016, e Bolsonaro se beneficiaram da mídia.

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RC: Você concorda com a expressão “democracia iliberal” para designar a nova onda populista? Você entende que esse conceito nos ajuda a entender as experiências populistas contemporâneas?

RE: Acredito que o termo possa ser uma abreviação útil, embora possa ser enganoso se usado para homogeneizar todos os populistas. Viktor Orbán, na Hungria, persegue políticas que desafiam claramente os direitos pluralistas etc., mas a Hungria é dificilmente uma democracia sólida, bem estabelecida. Acho que a ameaça de, digamos, Nigel Farage, na Grã-Bretanha, ou Geert Wilders, na Holanda, é bem diferente. Suas campanhas procuram colocar mais ênfase naquilo que veem como o núcleo da democracia — a saber, a regra do povo (através, por exemplo, de referendos) — e menos ênfase nas regras das elites politicamente corretas. Também temos que perguntar quão ‘liberais’ são as muitas tensões do liberalismo, como entre pluralismo e tolerância, já que muitos não são tolerantes com opiniões que não aprovam, como os que derivam de uma religião (como no tema aborto), ou como nos Estados Unidos e outros países, nos quais oradores que desafiam as visões liberais centrais podem ser banidos dos campi universitários etc.

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RC: Em seu recente livro publicado no Brasil, escrito com Matthew Goodwin (Nacional-Populismo: a revolta contra a democracia liberal), você fala sobre alguns mitos sobre o nacional-socialismo. Quais são os principais e por que eles foram criados?

RE: O fascismo, e mais especificamente o nacional-socialismo de Hitler, se tornaram os termos máximos de abuso no debate político — um desenvolvimento interessante, já que o comunismo matou muito mais pessoas. Não procuramos contestar que regimes fascistas cometeram grandes crimes, mas procuramos identificar por que o fascismo e o populismo não devem ser confundidos um com o outro. Como já mencionei, se definimos o populismo de forma ideológica, ele pode servir como um importante corretivo democrático, especialmente em países onde as instituições democráticas e os valores estão bem estabelecidos. Os fascistas procuraram destruir instituições democráticas e celebraram abertamente a violência. Apesar de alegarem representar o povo, não celebraram as pessoas comuns: em vez disso, sustentaram que muitos haviam sido corrompidos pelos valores materialistas do capitalismo e, especialmente, aqueles da esquerda sectária. Os fascistas procuraram corrigir isso por meio da ditadura, não em novas formas de democracia. Simplesmente ser um nacionalista ardente, apoiar uma liderança forte e os valores ‘macho‘ etc. não são fatores suficientes para fazer de alguém um fascista.

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RC: O que os governos Trump, Erdogan, Duterte e Bolsonaro têm em comum? Essas são as melhores expressões do populismo de direita hoje?

RE: Novamente, precisamos ser sensíveis às diferenças nacionais e à mudança ao longo do tempo. Trump, por exemplo, tornou-se cada vez mais populista durante sua campanha eleitoral em 2016 (menos referência a si mesmo em sua retórica e mais às pessoas comuns, à necessidade de mudança etc.). No entanto, quando se tornou presidente, Trump abandonou compromissos tais como amplas obras públicas e adotou uma reforma tributária que sai diretamente do manual do republicanismo convencional. Marxistas que veem o fascismo como instrumento de massa para os interesses do mercado usam isso como parte de sua defesa de que Trump é fascista. O mesmo argumento tem sido utilizado contra Bolsonaro, ainda que as recentes alterações na política econômica levantem questionamentos sobre em que medida sua agenda é dominada pela atividade empresarial. Trump, Erdogan, Duterte e Bolsonaro são, provavelmente, os líderes populistas mais citados, mas alguns adicionariam Modi e líderes de alguns países pequenos, como Orbán, na lista de populistas perigosos. O que os conecta? Em primeiro lugar, o estilo — imagem de homem forte, demonização dos oponentes etc. Mas também podem ser inscritos na abordagem ideológica, incluindo a forma de outsiders com a qual eles se retratam, capazes de corrigirem os erros dos políticos e das elites tradicionais.

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RC: Geralmente, no contexto da discussão de políticas públicas, há uma confusão semântica entre conservadorismo e reacionarismo. Onde as realidades que esses conceitos designam se tocam e onde partem? Eles podem ser entendidos além dos contextos históricos nos quais surgiram?

RE: Reacionários são tipicamente vistos como pessoas que desejam retornar para algum status quo anterior; conservadores procuram mais conservar, mas estão dispostos a aceitar reformas limitadas e relativamente lentas para acomodar as mudanças socioeconômicas. Na maioria dos países, os conservadores também aceitam a democracia, o que significa que suas opiniões precisam se acomodar até certo ponto às normas prevalecentes. Mas, novamente, esses termos são muito dependentes do conteúdo. Assim, poderíamos ter comunistas conservadores e reacionários na União Soviética enquanto Gorbachev os empurrava para uma rápida reforma.

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RC: Como você relaciona o conservadorismo à nova onda de nacional-populismo vivida na Europa e em outras partes do mundo?

RE: Existem muitas formas de conservadorismo e algumas se mantiveram firmes contra a crescente onda de populismo. Tome, por exemplo, Angela Merkel na Alemanha, que aceitou um milhão de imigrantes em 2015 e, em geral, se recusou a ceder à agenda do partido nacional-populista Alternativa para a Alemanha (AfD), que aumentou rapidamente após 2013 (embora não esteja estagnando). Mas, como argumentamos em Nacional-Populismo: a revolta contra a democracia liberal, também precisamos olhar para a ascensão de políticos e partidos “levemente populistas”. Esses são tipicamente conservadores (embora também haja alguns na centro-esquerda, como os sociais-democratas dinamarqueses), que tomam emprestado partes das políticas nacionais-populistas para neutralizá-las. Podemos ver isso com Sebastian Kurz na Áustria, Mark Rutte na Holanda e Boris Johnson na Grã-Bretanha. O caso britânico é especialmente interessante, porque o Partido Conservador tem sido, historicamente, burkeano em sua ênfase na necessidade de os parlamentares e o governo não serem indevidamente influenciados pela opinião pública, ondas temporárias de opinião etc.

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RC: O populismo pode ter expressões à esquerda e à direita do espectro político. Se houver um denominador comum em suas manifestações, o que diferenciaria cada um?

RE: Tanto o populismo de esquerda quanto o de direita se encaixam no estilo e nas definições ideológicas listadas acima. As versões de esquerda normalmente não enfatizam a nação e, especialmente, não demonizam os imigrantes; eles se concentram mais na redistribuição aos pobres e nos ataques às elites ricas. As versões de direita tendem a ser nacionalistas e mais conservadoras em termos de valores sociais, embora possam ter aspectos da esquerda e, como já mencionado, não são necessariamente religiosas. Por exemplo, as políticas econômicas da Frente Nacional Francesa/Reunião Nacional têm muito em comum com a velha centro-esquerda, incluindo o estatismo e a proteção das comunidades da classe trabalhadora (embora isso também esteja ligado à imigração). Nos Estados Unidos, podemos ver um populismo Republicano pós-Trump que está menos ligado a grandes empresas, cortes de impostos etc.

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RC: Como você avalia o papel das religiões no horizonte de emergência do populismo na contemporaneidade? O uso do discurso religioso tem sido uma prática comum em discursos populistas?

RE: Isso varia de país para país. Por exemplo, na Grã-Bretanha, a religião hoje quase não desempenha qualquer papel na retórica política e não é um fator importante que influencia o voto. Isso é muito diferente nos Estados Unidos, onde Trump — apesar de não ser religioso em muitos aspectos — esteve largamente à frente nas pesquisas entre os evangélicos em 2016. Parte da razão para isso nos Estados Unidos, foi o sentimento de que a religião estava sob ataque do politicamente correto e que era preciso um presidente de direita para mudar a composição da Suprema Corte (que terá uma maioria de 6-3 se Amy Coney Barrett for confirmada); isso, por sua vez, pode afetar a lei sobre o aborto etc. Na Europa, o quadro também é confuso. A religião continua sendo um fator importante em partes da Polônia (como nos Estados Unidos, menos nas grandes cidades, entre os altamente educados etc.), e tem sido um fator importante nas vitórias do partido Lei e Justiça (PiS) e nas políticas governamentais para a família etc. Mas a religião não desempenhou nenhum papel significativo na votação do UKIP, por exemplo. O que vemos de maneira mais geral na Europa é o uso de uma alegada ameaça do Islã para pedir menos imigração/mais integração e, como já observado, isso está frequentemente relacionado à defesa dos valores cristãos ocidentais. Em alguns países, como França e Holanda, esta ameaça do Islã também foi usada para buscar, especificamente, votos judeus para partidos que os oponentes costumam chamar de “fascistas”!

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Nota de tradução:

[*] Os ‘quatro Ds’ de que fala Eatwell são os fatores identificados em National Populism por ele descritos na resposta, que, no original, indicam a letra D: ‘distrust’, ‘destruction’, ‘deprivation’, ‘de-alignment’.

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Rodrigo Coppe Caldeira

Rodrigo Coppe Caldeira é Historiador e Professor do Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. É líder do Laboratório de Estudos em Religião, Modernidade e Tradição (LeRMOT) da PUC Minas. (As opiniões do autor são de cunho pessoal e não refletem necessariamente a posição oficial da instituição). (Twitter: @rodrigocoppe)