O Concreto

O Concreto no Estado da Arte

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O Concreto no Estado da Arte

Um espaço crítico e propositivo fundado nas Ciências Comportamentais e na Filosofia, aplicado às Políticas Públicas e às Empresas….

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Foi um dia marcante. Lembro-me vivamente da sala de aula, de onde estava sentado, da claridade daquele dia ensolarado e do professor falando sobre razões que levam pessoas a poupar e a consumir. Recordo-me perfeitamente da felicidade ingênua que senti ao pensar que Economia, Psicologia e Filosofia estariam juntas num programa intelectual sobre o comportamento humano.

Com o tempo, foi-se desenvolvendo em mim uma profunda decepção com os pressupostos comportamentais da teoria econômica convencional, porém, naquele momento, pensei estar num bom caminho — a Economia seria capaz de dar explicações realistas ou pelo menos plausíveis sobre razões e causas das ações humanas.

Até aquele momento, apesar dos meus escassos 19 anos, as ações que observava pareciam não fazer muito sentido. Estávamos em plena hiperinflação, a desigualdade era enorme, o racismo e o classismo eram óbvios, as políticas públicas não davam em nada e grande parte da população, alegre, parecia aceitar tudo com algum fatalismo obediente e sincero.

Ao mesmo tempo, tendo vivido sempre num lugar de elite, com um aparente nível elevado de homogeneidade na forma de pensar e, infelizmente, com práticas de rua implícitas e explícitas de segregação, tudo parecia fazer ainda menos sentido. Desejava conversar sobre como diminuir as desigualdades sociais, o preconceito social, racial e de gênero, mas estávamos no final dos anos 80 e início dos 90, num lugar “diferenciado”. Não havia interesse.

Naquele contexto, à feliz exceção de meus pais e algumas poucas amigas e amigos, as conversas eram normalmente sobre o “excitante” mercado financeiro, viagens, moda, novos bares, esporte e carros. Para mim, aquilo era um suplício. É importante percebermos que são contextos como este que têm formado gerações seguidas de tomadores de decisão para o setor público e privado.

O afastamento psicológico das condições de vida das pessoas que estão fora do grupo seleto é, infelizmente, fator determinante para a formação das crenças e juízos das pessoas que estão dentro. Este afastamento promove uma significativa ilusão de desobrigação social, dando-lhes a falsa sensação de que dilemas éticos não existem ou são elementos de ficção televisiva, talvez cinematográfica ou literária.

Expressão desse afastamento é a recente e ainda saliente declaração do atual Ministro da Economia, num óbvio ato classista, quando demonstrou ter crenças fantasiosas acerca da realidade brasileira ao dizer: “Empregada doméstica indo pra Disneylândia, uma festa danada. Mas espera aí? Espera aí. Vai passear ali em Foz do Iguaçu, vai ali passear nas praias do Nordeste, está cheio de praia bonita”. Infelizmente, não é difícil encontrarmos declarações deste tipo — que demonstram significativo afastamento social e relevante falta de empatia — em todas as direções, sentidos e cores político-ideológicas.

Que vida sofrida a minha, não? Não. Absolutamente não! Tive oportunidades reservadas, infelizmente, a 3% da população brasileira, tive pais fantásticos, alguns excelentes amigos e professores. O ponto ao qual quero chegar não se liga a nenhum possível sofrimento pessoal, mas, sim, ao sofrimento social produzido pelo afastamento dos tomadores de decisão das reais questões sociais.

Isso sempre me intrigou. Olhava para os dados, descrições e relatos próximos sobre a verdadeira situação social da grande maioria das pessoas, mas isso não batia certo com a realidade das “minhas ruas”, de suas conversas e interesses. Como era possível tanto sofrimento e não desenvolvermos qualquer sentido de urgência que nos motivasse à ação?

Há 30 anos, havia muito a fazer nas áreas da educação, saúde, nutrição, saneamento básico entre outras. Era urgente. Era uma necessidade ética. No entanto, o afastamento dos decisores da realidade social e a mal justificada crença numa tal racionalidade dos agentes levaram a erros críticos nas políticas públicas e organizacionais. Fizemos algo, é verdade, mas deveríamos e poderíamos ter feito mais e melhor.

A Distância Psicológica, fenômeno que discutiremos em artigos próximos, explica parte desse afastamento. Na tentativa de diminuir esta distância, construímos cenários fictícios baseados em nossa experiência próxima. Fato, por exemplo, que leva parte das elites a acreditar bestamente na meritocracia num contexto de desigualdade profunda, independentemente das variáveis de partida. Da mesma forma, o Efeito da Vítima Identificável, outro fenômeno a ser discutido, faz com que as pessoas mobilizem muito menos recursos em casos que envolvem grande número de vítimas em contraste com casos que envolvem uma vítima identificada. Isso explica, por exemplo, a significativa apatia com problemas sociais cujas descrições são estatísticas.

Naquela época, voltando àquele dia ensolarado, esses comportamentos irrazoáveis também me pareciam irracionais, dentro de uma concepção de racionalidade de senso comum, já que ainda não conhecia a definição da Teoria da Escolha Racional. Por isso, saí daquela aula ansioso e excitado. Estava certo de que dali em diante conheceria os “fatores mentais” que influenciam nosso comportamento. Como economista, teria a oportunidade de influenciar comportamentos para melhorar condições de vida das pessoas de modo efetivo e legítimo, sem retirar liberdade de escolha. Grande engano!

Infelizmente, com o tempo, percebi que a teoria econômica convencional e muitos economistas do século XX tinham se afastado radicalmente da Psicologia e principalmente da Filosofia — origem de ambas. Esse afastamento levou a um perverso irrealismo científico comportamental e a uma profunda indisciplina argumentativa e conceitual, retirando grande parte da capacidade de intervenção da Economia.

Adam Smith, por exemplo, um dos grandes filósofos ligados à origem da Economia, ainda é lembrado exclusivamente, pela maior parte das pessoas, pela “Riqueza das Nações” (RN) e sua famosa Mão Invisível, mas não é lembrado pela brilhante “Teoria dos Sentimentos Morais” (TSM) e seu elemento central, a Empatia (Sympathy, em inglês do séc. XVIII).

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Adam Smith

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A TSM é a obra e a Empatia é o fator que tratam das motivações para agir e da formação de parte importante de nossos juízos. Apesar disso, a TSM tem sido deixada de lado, talvez propositalmente. A RN é sua obra mais conhecida, pois, quase sempre mal lida, dá azo à falsa e conveniente crença de que um autointeresse individual de natureza egoísta determina de modo exclusivo nossas ações, produzindo necessariamente bons resultados coletivos. A questão é que a leitura da TSM e da RN em conjunto, mostra-nos que o autointeresse parece ser mediado, ou mesmo fundado, pela Empatia, que motiva e influencia o direcionamento do interesse, tornando-o um objeto não necessariamente egoísta.

Esse é um exemplo da tal indisciplina conceitual, mas também do referido irrealismo científico. Há algum tempo, a Psicologia tem-nos mostrado que parte relevante do nosso comportamento é pró-social e que parte desse comportamento possui motivações não egoístas. Existem debates científicos e filosóficos muito férteis e úteis sobre o que é e como conceitualizamos autointeresse, egoísmo e altruísmo, mas quase nada disso chega aos tomadores de decisão em nosso contexto de língua portuguesa. Na verdade, parece existir uma crença de que no “mundo prático” nada disso é necessário. Essa é uma crença falsa que tem raízes profundas na ignorância acerca de como pensamos, criamos juízos e tomamos decisões no dia a dia.

Aristóteles com um busto de Homero, Rembrandt, 1653

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Nunca esqueci da felicidade que senti depois daquela aula, mas também nunca esqueci da proporcional decepção quando percebi que provavelmente não haveria nenhum projeto articulado de compreensão do comportamento humano baseado nas Ciências do Comportamento, nas quais Economia e Psicologia estão incluídas, em colaboração com a Filosofia. Entretanto, ainda a meio dos anos 90, tive a felicidade de iniciar, com ajuda de algumas pessoas que serão referidas noutros artigos, a descoberta de programas de pesquisa e respectiva literatura científica que articulavam, em combinações diversas, algumas Ciências do Comportamento, Ciências Cognitivas e Filosofia.

Esse processo felizmente não tem fim. Hoje, existem programas de pesquisa consolidados, produtivos e aplicados que nos dão condições para investigar o comportamento humano e possibilidades de alteração.  Obviamente, seria pouco razoável fazer uma lista de pesquisadores relevantes nestas diversas combinações; contudo, parece-me que importante nomear alguns para que o leitor não fique às escuras — Amartya Sen, Jon Elster, Donald Davidson, Jerry Fodor, Daniel Hausman, Daniel Kahneman, Amos Tversky, Paul Slovic, George Loewenstein, Joshua Knobe, Deborah Small, Dan Ariely, Richard Thaler, Cass Sunstein entre muitos outros. Faço questão de referir dois colegas e amigos brasileiros que, como eu, têm feito estudos experimentais no contexto da Filosofia Experimental, são eles: Noel Struchiner, da PUC-Rio e Paulo Sousa, da Queen’s University Belfast.

Depois de 25 anos de pesquisa científica, docência e aplicação do conhecimento científico, alternando esforços entre estas atividades ao longo dos anos, decidi investir energia para iniciar este projeto — O Concreto. Como já referi, existe um conjunto relevante de conhecimento científico e de possibilidades de alteração do comportamento humano que infelizmente não chega aos tomadores de decisão, formuladores de políticas públicas ou empresariais, cientistas sociais de outras áreas, jornalistas e ao público interessado que, mesmo não tendo funções executivas, educacionais ou de pesquisa, tem desejo de aceder ao conhecimento científico de modo compreensível.

O Concreto pretende criar um contexto produtivo para que estes e muitos outros temas sobre o comportamento humano possam ser debatidos: (i) somos sempre autointeressados e egoístas? autointeresse e egoísmo são coisas diferentes?; (ii) o que é a racionalidade na realidade? (iii) esse é um conceito necessário ou útil?; (iv) as bases comportamentais das políticas públicas são cientificamente realistas?; (v) podemos melhorar as políticas públicas através das Ciências Comportamentais? como podemos fazer isso?; (vi) as empresas podem melhorar a vida das pessoas, sejam trabalhadores ou consumidores, através de políticas e intervenções baseadas nas Ciências Comportamentais? como podemos fazer isso?; (vii) quais são as questões éticas sobre utilização das Ciências Comportamentais em políticas de mudança de comportamento?

Este é um pequeníssimo conjunto de exemplos de questões que serão abordadas em O Concreto. O leitor poderá esperar artigos diretos e aplicados, mas, também, artigos reflexivos e conceituais. Temas, abordagens e áreas diferentes, obrigam-nos a formas e estilos distintos. Essa variedade expressa a riqueza do contexto e da prática multidisciplinar.

O Concreto “colocará o dedo nalgumas feridas” com o propósito de aumentar a consciência dos leitores sobre questões práticas, científicas e filosóficas que envolvem o comportamento humano. Esta editoria está fundada no debate informado pela prática, pela ciência e pela filosofia. Não será uma editoria para “Progressistas” ou “Conservadores”, como parece estar na moda. Por isso, quem estiver à procura de ler algo que necessariamente confirme suas crenças, estará no lugar errado.

Aqui, o argumento será o instrumento que cortará radicalmente qualquer tentativa de ludibriar intelectualmente o leitor. Será sempre possível e desejável que seus autores mudem de opinião quando existirem contra-argumentos eficazes. O objetivo não é ganhar a discussão, mas divulgar e produzir conhecimento socialmente relevante. O convencimento estará sempre assente num debate argumentativo. Isso passa necessariamente pela honestidade e humildade intelectual dos seus autores, mas também de seus leitores e comentadores.

Aqueles que tiverem a intenção de aproveitar este espaço para disseminar qualquer agenda retórica, sem a real intenção de proporcionar um debate aberto e claro, por favor, não aceitem o convite. Estarão no local errado.

As Ciências Comportamentais, representadas pela Economia, Psicologia, Sociologia, Antropologia, Neurociência e Biologia, e a Filosofia, representada pela Filosofia Experimental, Filosofia Moral, Filosofia da Ação, Filosofia da Mente, Filosofia da Linguagem, Epistemologia, Lógica e Ética, servirão de base para os temas e abordagens teóricas e conceituais relevantes para os debates. Obviamente, outras áreas do conhecimento estarão presentes em nossos artigos, como, por exemplo, Direito, Administração Pública, Administração de Empresas, História e Ciência Política. De um ponto de vista aplicado, O Concreto terá como foco questões ligadas às Políticas Públicas (sociais, administrativas, regulatórias, econômicas) e às Políticas Empresariais e Organizacionais (negócios e desenvolvimento interno).

O Concreto terá artigos escritos por mim e por convidados, entrevistas escritas e eventualmente alguns relatórios temáticos publicados em capítulos. Espera-se que num futuro próximo seja possível incluir entrevistas em vídeo e podcasts.

Por fim, deixo uma mensagem aos editores do Estado da Arte — Marcelo Consentino, Eduardo Wolf e Gilberto Morbach. Aceitei o desafio de criar e responsabilizar-me pelo O Concreto por acreditar que o Estado da Arte tem o contexto ideal para esse empreendimento e que seus editores partilham as mesmas crenças no debate aberto e claro, e de que a honestidade e a humildade intelectual devem ser os princípios comportamentais neste tipo de debate. Agradeço a todas as pessoas e veículos que nos últimos anos me estimularam e desafiaram a criar algo parecido com O Concreto. Só agora as condições e circunstâncias se reuniram.

Esse editorial inaugural de O Concreto tem um tom pessoal, pois é preciso deixar claro ao leitor alguns pressupostos e o perfil do editor. Isso necessariamente influenciará o rumo desta editoria, mesmo que esforços de neutralidade sejam feitos. Sei que o Brasil vive um período de polarização do discurso. Sei também que O Concreto deverá desagradar aos polos, não por qualquer tendência a um “centro” infértil, recheado de afirmações dúbias, mas, sim, porque as evidências e a argumentação serão seus principais instrumentos.

Neste texto, expus uma experiência pessoal permeada por excitação, decepção e entusiasmo intelectual. O objetivo disso foi mostrar que O Concreto nasce do entusiasmo e da certeza de que será possível dar consciência aos leitores dos avanços das Ciências Comportamentais e de como podemos melhorar a vida das pessoas através de intervenções e políticas de mudança comportamental. Soma-se a isso a certeza de que a Filosofia terá um papel fundamental nos debates conceitual, epistemológico e ético.

Para finalizar, faço uma nota ainda mais pessoal. Minha formação acadêmica é diversa — Economia, Administração Pública e Filosofia. Apesar dessa diversidade, o tema geral do comportamento humano e os temas específicos das concepções de racionalidade e das possibilidades de desenvolvimento de políticas de mudança comportamental sempre estiveram presentes. A Economia de natureza matemática e a Filosofia de natureza Continental não fazem parte do meu repertório. Não tenho competências que permitem o pleno exercício intelectual nessas áreas, mas serão sempre muito bem-vindas ao debate. Estou mais próximo das Políticas Públicas e Organizacionais de mudança comportamental, das Ciências Comportamentais e da Filosofia Experimental e Analítica. Nos diversos projetos científicos e acadêmicos que participei ou geri tive quase sempre equipes multidisciplinares. Contei nestes anos com a colaboração de psicólogos sociais, cognitivos e ligados à neurociência, economistas, administradores públicos, administradores de empresas, antropólogos, sociólogos, juristas e filósofos. Tive essa grande sorte e desejo continuar a ter.

Espero que O Concreto faça parte das escolhas de leitura de muitas pessoas. Serão feitos os melhores esforços para levar ao leitor um conteúdo claro e excelente do ponto de vista científico e filosófico em suas dimensões aplicadas e conceituais.

Carlos Mauro

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Referências

Hausman, Daniel M., “Philosophy of Economics”, The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Fall 2018 Edition), Edward N. Zalta (ed.), URL = <https://plato.stanford.edu/archives/fall2018/entries/economics>.

Knobe, Joshua and Nichols, Shaun, “Experimental Philosophy”, The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Winter 2017 Edition), Edward N. Zalta (ed.), URL = <https://plato.stanford.edu/archives/win2017/entries/experimental-philosophy>

Small, Deborah A. & Cryder, Cynthia (2016). Prosocial consumer behavior. Current Opinion in Psychology, Volume 10, August 2016, Pages 107-111. https://doi.org/10.1016/j.copsyc.2016.01.001.

Small, Deborah A. (2015). On the Psychology of Identifiable Victim Effect. In I. Glenn Cohen, Norman Daniels, Nir Eyal, Identified versus Statistical Lives: An Interdisciplinary Perspective (pp. 13-23). Oxford University Press.

Trope, Y., & Liberman, N. (2010). Construal-level theory of psychological distance. Psychological Review, 117(2), 440–463. https://doi.org/10.1037/a0018963

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Carlos Mauro

Carlos é brasileiro e mora desde 2004 na cidade do Porto, em Portugal. É Chief Scientific Officer da CLOO Behavioral Insights Unit e Professor Convidado da área de Administração Pública, na Fundação Getúlio Vargas (EAESP), e da Porto Business School (PBS), onde também é researcher in residence do Center for Business Innovation. É formado em Economia, mestre em Administração Pública e Governo, e doutor em Filosofia. Realizou em 2010 e 2011 o pós-doutoramento em Filosofia e em 2015 foi visiting scholar (faculty) na Wharton School, na Universidade da Pensilvânia, a convite da Professora Deborah Small. Em 2013, criou possivelmente o primeiro laboratório científico dedicado à Economia Comportamental numa universidade, num país de língua portuguesa. Publicou artigos científicos em revistas com fator de impacto, artigos de divulgação científica e livros sobre aspectos científicos e/ou filosóficos do comportamento humano, da formação de juízos, da racionalidade e da mudança comportamental.