Psicanálise

O novo mal-estar

“A Metamorfose de Narciso” de Salvador Dali

por Felipe Pimentel

Como a Psicanálise lida com todas as mudanças que ocorreram na constituição da subjetividade desde sua primeira formulação, pelas mãos de Freud, na virada do século XIX para o XX?

A paisagem histórica de então era incrivelmente distinta da nossa: Freud escreveu no auge da Belle Époque europeia, um continente convicto do progresso que trazia para o mundo, alicerçado nos seus valores tradicionais aliado às suas conquistas tecnológicas. Os carros não dominavam a cena urbana, tampouco a sociedade de consumo, os mercados; antigos impérios postavam-se imensos sobre o velho mundo, e as grandes ideologias não vislumbravam qualquer êxito. No consciente psicológico, vigorava a rígida sociedade vitoriana, gravitando em torno da família nuclear pequeno-burguesa, paternal, moralista e tradicional.

Porém, no subsolo onde se gestava essa instituição, habitavam os instintos humanos ansiosos por se efetivarem, sejam os instintos sexuais, sejam os agressivos – todos submetidos à uma cristalizada tábua de valores morais que os reprimia e impedia sua realização.  Freud foi o principal e último decifrador desse conflito. O conflito que o sujeito vitoriano lidava era entre essas forças ocultas e inconscientes (desejos reprimidos), que ele negava pertencerem a seu ser, em nome da moralidade vigente, que lhe exigiam uma determinada forma de ser. De um lado, impulsos que também dizem quem eu sou, e do outro, interdições que os delimitam e controlam, isto é, um conflito entre aquilo que sou e aquilo que posso ser.

É esse o nosso conflito hoje? Diante da promessa da infinita liberdade individual que vigora nisso que chamam pós-modernidade, existem forças que nos controlam? Se as tábuas de valores são mais e mais destruídas, onde estão as proibições que conflitam com nossos instintos e os reprimem? Se temos o mais claro conhecimento sobre os impulsos sexuais e agressivos que agem no coração do homem, que forças antagônicas agem em nosso interior? Não teria assim desaparecido o inconsciente, e, com ele, a Psicanálise?

Não parece.

De Freud para cá, passamos pela ascensão das mais radicais ideologias e experimentos sociais, por duas guerras imensas, por toda espécie de conflito cultural ou militar entre Ocidente e Oriente; pela ascensão da energia atômica, a efetivação da globalização, a descoberta de tecnologias inimagináveis e o encurtamento das distâncias e do tempo. Mas, para além dos eventos reais, que sociedade é essa?

Até onde posso ver, arriscaria dizer que no mundo de todas as permissões possíveis e de convite à mais completa liberdade de criação do ser, nós vivenciamos o conflito entre o que somos e o que gostaríamos de ser. Montamos uma imagem sobre nós próprios que desejamos transmitir para os outros, tendo como única dificuldade que muitas vezes a imagem não corresponde ao que sentimos ou – para ir direto ao ponto – àquilo que somos.

O cenário todo está carregado de uma aparente liberdade e autonomia, mas também é uma cilada. No nosso mundo interno, padecemos da solidão dessa imagem que buscamos construir como autoengendramento. Do lado de fora, o único anteparo dessa imagem: como não temos referência universal alguma para o que gostaríamos de ser, nós utilizamos como referência o olhar do próximo, sua aprovação e o seu desejo por aquilo que somos para ele. Estamos mais livres das universalizações e dos moralismos, mas terminamos escravos do olhar alheio. Podemos ser mais autônomos e criar nossas próprias regras, mas, tomados por narcisismo, não sabemos quem somos quando sozinhos e necessitamos constantemente da aprovação alheia – e aí compreendemos a angústia de fragmentação do sujeito contemporâneo, que vem como dependência virtual, hiperexposição, ansiedade ou mesmo pânico.

Felipe Pimentel

Felipe Pimentel é psicanalista e historiador.