Política

O ovo, a galinha e a política brasileira

por Tiago Pavinatto

O Nobel de Física Steven Weinberg reputa que “o esforço no sentido de entender o universo é uma das poucas coisas que elevam a vida humana acima do nível da farsa, conferindo-lhe algo da dignidade da tragédia.” Dessa peleja reflexiva, a mais popular das questões talvez seja aquela sobre o que veio em primeiro lugar: o ovo ou a galinha?

Muito embora sérios pesquisadores das Universidades inglesas Sheffield e Warwich, em última palavra sobre o dilema no ano de 2010, sustentem que, em primícias, habitaram este mundo as galinhas, pois a casca do ovo depende, para sua formação, de uma proteína específica encontrada no ovário da ave – portanto, sem ave, sem ovário e, sem ovário, sem ovo –, o tema nos despertou interesse por outro motivo.

Se, no campo da ciência propriamente dita, a galinha pode ter vindo antes, em política, o ovo veio primeiro, surgindo a galinha muito tempo depois como mais um exotismo da nossa frondosa e frutífera (menos no sentido figurado) jabuticabeira nestes Tristes Trópicos.

O paralelo se justifica pela chuva de ovos com a qual alguns manifestantes de esquerda receberam o prefeito de São Paulo, João Doria, em Salvador e pela lembrança da galinha preta jogada contra a então prefeita de São Paulo, Marta Suplicy, há exatos 14 anos no dia 11 de agosto de 2003 durante a comemoração dos 100 anos do Centro Acadêmico XI de Agosto da Faculdade de Direito do Largo São Francisco.

A galinha não colidiu com Marta, que acabou acusando o PSDB pelo ocorrido. Mentira dela… estávamos lá, vimos como foi e conhecemos quem o fez; arte de um colega sem nenhuma ligação com qualquer partido político e inconformado com a proliferação das taxas naquela gestão.
Quanto à galinha, além das considerações politicamente incorretas na seara religiosa dado que era preta, pode ter sido escolhida também em decorrência de sua antiga e indelével carreira midiática como sexóloga feminista ou ainda em virtude (ou desvirtude na tacanha cabeça de um conservador) do então iminente segundo casamento da hoje senadora que ocorreria no mês seguinte ao disparo da ave. Ela se casou com o homem com o qual já estaria envolvida mesmo durante a constância do primeiro matrimônio com Eduardo Suplicy.

Tal teoria foi fortificada pelo então Ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, que só piorou as coisas com a seguinte fala: “Jogar uma galinha na prefeita foi uma ofensa. É como se um homem estivesse falando e jogassem um veado.” Noves fora, além de difíceis de carregar e da impossibilidade de os esconder em uma mochila (meio de transporte da galinha), sorte do novel serem os veados animais silvestres e estarem bem longe de Salvador – no final do último mês de abril, os órgãos competentes resgataram veados de cativeiros em Paratinga, a mais de 700 quilômetros da capital baiana.
Voltando aos ovos, a mesma Marta foi alvo deles em Guaianazes no ano seguinte, 2004, meses antes de perder as eleições para José Serra, que já levara um ovo no rosto em Sorocaba enquanto ministro da saúde e voltou a levar, em 2005, na zona leste paulistana. Antes dele, o governador de São Paulo Mário Covas foi alvejado por ovos e latas. Parece que só Paulo Maluf conseguiu se proteger da ovada de um desempregado em 2001.

No episódio mais recente, houve quem escrevesse, em “trocadalho do carilho”, ter sido Doria “ovacionado” na Bahia. Pois bem, “ovar” pode significar tanto pôr ou criar ovos ou ovas quanto aplaudir. Da mesma maneira, “ovação” é o ato ou efeito de ovar, bem como a aclamação pública ou aplausos destinados a alguém ou a algo. “Ovacionar”, assim, tem origem em algum momento da Roma antiga significando um triunfo menor, menos solene, que se alcançava sobre um inimigo e pelo qual o triunfador entrava na cidade e era conduzido ao capitólio. Conforme o Dictionnaire Étymologique de La Langue Latine de Ernout e Meillet, ovacionar não guarda relação com o vocábulo “ovis”, que significa ovelha e carneiro (e também tem o sentido de “homem simples” em textos de Plauto), mas com “rejubilar-se com uma vitória”, posto que “ovo” (que não é o mesmo que “ovum”, este sim ovo no latim), na tradição oral, aparenta-se ao grego “evoé”, grito de alegria que se proferia nas festas de Baco.

O que seria do mundo se não fosse Roma? Conta-se que no ano de 63, Vespasiano (que governava a província da África – tendo sucedido, em 69 após a queda de efêmeros imperadores, o suicida Nero) foi atacado com perecíveis em protesto contra suas políticas punitivas. Não eram ovos, eram nabos e, assim, o primeiro político a levar nabo de sujeitos de “ovos virados”.

O prefeito de São Paulo foi atingido por “ovum” de algum “ovis”, mas também recebeu “ovatio” no seu significado mais primitivo: após triunfar sobre a ovada, um triunfo bastante pequeno, foi conduzido à imponente sede (capitólio) legislativa soteropolitana, oportunidade na qual seu discurso se inflamava à medida que os gritos de alegria e aplausos (“evoé”) se intensificavam num clima perfeito para o acirramento do uso invertido da criação petista do “nós contra eles”, imputando a responsabilidade do ataque, no fim das contas, ao PT de Lula, comprovando que, na política brasileira, até o enigma do ovo e da galinha se polariza entre PT e PSDB (restaria ao PMDB, então, o papel enigmático do criador? Não restam dúvidas se enxergarmos nele as características apontadas por Fernando Pessoa n’O Guardador de Rebanhos e por José Saramago em Caim – que o chama, com todas as letras, de “fdp” na página 79 da primeira edição brasileira).

Doria leva ovada em Salvador | Foto Mila Cordeiro/Agência A Tarde – Divulgação Estadão

O fato é que o ovo, vindo da direita ou da esquerda – os casos relatados em artigo da jornalista Chitra Ramaswamy no The Guardian, que chegou, estupidamente, a classificar a “ovada” como forma de protesto “eggalitarian”, mostram que, na Inglaterra, eles costumam atingir mais os conservadores – é atitude reprovável em nossos tempos, mas não causa surpresa quando lidamos com duas categorias: os reprimidos por um governo autoritário que não tem outra forma de protesto (vejamos o caso atual da Venezuela, na qual cinco jovens foram presos em abril deste ano por jogarem ovos em Maduro) e broncos que não sabem perder no jogo democrático. Destes, o Brasil está repleto, sejam da esquerda ou da pseudo-direita (e nunca da direita liberal); basta olhar para nossas redes sociais quando o assunto envolve “lados” (política, futebol e até mesmo religião) e veremos o exemplo mais bem acabado da “legião de imbecis” avistada por Umberto Eco.

Por último, dado que começamos com uma questão que pesa sobre a inteligência do homem que pensa que sabe desde os tempos mais remotos, queremos terminar com outra: quem somos nós, uma vez que, nesse embate entre “nós e eles”, nós não somos “nós” e nem somos “eles”? E importaria saber se, no final, seremos, mais uma vez no surrado roteiro de uma farsa que insiste em terminar em indignas e contínuas tragédias, sacrificados e despachados como galinhas pretas?
A resposta é nosso “ovo de Colombo”. 

Tiago Pavinatto

Tiago Pavinatto é advogado. Graduado, Mestre e Doutor pela Faculdade de Direito da USP do Largo São Francisco. Coordenador do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo (PUC-SP). Autor de “A Condição do Fanático Religioso”.