Literatura

A personagem simples

por Rafael Rocca

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Quando pensamos em grandes personagens da literatura, seja ela nacional ou internacional, lembramo-nos de personagens que se tornaram marcantes, como se de fato existissem em algum lugar do mundo, longe de nós (e, no entanto, acompanhando-nos), existentes em uma memória de leitura e, no entanto, ainda assim como se fossem reais. São personagens complexos, dotados de múltiplos níveis, grandes crises de identidade, capazes de grandes feitos, grandes reflexões, grandes erros, grandes acertos. As literaturas estão repletas deles. Como partidário da “vertigem das listas” de Umberto Eco, eis alguns, ao acaso: o K. de Franz Kafka, o Herói em Em busca do tempo perdido, Raskólnikov em Crime e castigo (ou Ivan Karamázov em Os irmãos Karamázov), Aquiles na Ilíada, Jesus Cristo no Novo Testamento e Jó no Antigo Testamento, Riobaldo em nosso Grande Sertão: Veredas, Hans Castorp em A montanha mágica, Fausto em suas múltiplas versões, Robinson Crusoe. A lista poderia se estender por dezenas ou centenas de páginas.

Tais personagens acompanharam nossa tradição literária ocidental e deram forma a certos questionamentos que intrigam o ser humano e que parecem jamais envelhecer: como? Por quê? De onde? Para onde? Revestida com diversas roupagens, em diferentes ambientes, em diferentes épocas, a busca por respostas a essas questões construíram a imagem de muitos desses personagens, que serviram, por sua vez, para a ampliação do pensar sobre si e sobre o lugar no mundo. Se tomarmos, como exemplo, a figura de Sósia e do Anfitrião, que se tornaram tipos, rastrearemos dezenas de textos lidando com a questão da semelhança física como fonte de problemas (cômicos ou trágicos); se, por outro lado, tomamos Fausto e toda a tradição que se desenvolveu a partir dele, conseguimos passear pelos séculos e identificar quais foram as prioridades (literárias, filosóficas e psicológicas, além de políticas) que cada época elegeu para buscar responder à grande questão do ser humano: diante disso, o que fazer?

As tradições, os mitos, as lendas literárias se desenvolvem porque a resposta a essa pergunta jamais é satisfatória. Pior: ela se torna mais complexa à medida que o mundo se torna mais complexo. O desenvolvimento industrial e, mais recentemente, a tecnologia aceleraram de tal maneira esse processo que uma corrente atual de literatura retrata em seus personagens o ser humano despido de direção, vazio de sentido porque massacrado por uma miríade de sentidos possíveis e de caminhos a se tomar. Os grandes personagens da literatura são figurações dessas pessoas que ou venceram ou sucumbiram no caminho. Enfim, e é disso que se trata aqui também, é o caminho do autoconhecimento. Por isso, são mais difíceis de se esquecer.

A teoria literária no século XX tratou de chamar atenção para essas personagens e, como teoria, tentar categorizá-las de modo a melhor (tentar) explicar os movimentos de protagonistas principais e secundários. Posso me referir aqui ao estudo clássico de E. M. Forster (1879-1970) apresentado como uma série de conferências, reunidas no Brasil sob o título Aspectos do romance (primeira edição original de 1927). Em seus capítulos três e quatro, o escritor (conhecido por Um quarto com vista) e crítico buscou ressaltar alguns traços dos tipos de personagens na literatura. Após uma discussão sobre a realidade (diríamos melhor a verossimilhança) dos personagens, o autor cria, no início do capítulo quatro, a noção que acompanha até hoje os estudos literários, e até mesmo o estudo de literatura no ensino médio: os personagens planos e redondos (ou esféricos).

E. M. Forster

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Personagens planos seriam as caricaturas, os tipos, ligados a ideias simples e facilmente rememorados pelos leitores. Por outro lado, nas palavras do crítico, “só as pessoas redondas foram feitas para atuar tragicamente por qualquer extensão de tempo, e só elas podem despertar em nós quaisquer sentimentos que não sejam o de humor ou o de adequação” (Forster, 2005, p. 96); em outro ponto: “O teste de um personagem redondo é se ele é capaz de nos surpreender de maneira convincente. Se ele nunca nos surpreende, é plano” (Forster, 2005, p. 100). Polêmico. Sua teoria, evidentemente, traz problemas e, especialmente na literatura contemporânea, cria um problema de zona cinzenta, ou seja, há personagens que nem são planos, nem esféricos, ou personagens que são planos e trágicos, ou esféricos e não trágicos.

A intenção aqui, porém, não é discutir a problemática da teoria de Forster, mas invocá-la precisamente para lidarmos com a questão dessa zona cinzenta por meio de dois personagens trágicos, marcantes e simples de dois romances judaicos do século XX: De repente, amor, de Aharon Appelfeld (1932-2018), e Shosha, de Isaac Bashevis Singer (1902-1991).

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‘Suddenly, Love’, Aharon Appelfeld (Reprodução)

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No romance de Appelfeld, publicado em 2003, temos dois personagens em contraste, como sói acontecer em romances nos quais há as “personagens simples” que discutimos aqui. Um dele é Ernst (cujo nome, em alemão, significa “sério; grave”). Ele é um analista financeiro, metódico, veterano da Segunda Guerra Mundial pelo Exército Vermelho, que trava uma ardente luta consigo mesmo para escrever suas memórias. Abalado, Ernst tem setenta anos e necessita de cuidados especiais devido a uma doença e à fraqueza da idade, em todos os seus sentidos. Por esse motivo, logo conhecemos Irena, uma jovem de 36 anos. Irena é simples, não teve uma educação formal substanciosa, é bastante religiosa, repete bordões religiosos aprendidos dos seus pais para acalentar seus anseios. Seus modos são banais, a não ser o cuidado bastante diligente com Ernst. Ambos são, todavia, quietos e reservados, cada um por suas próprias razões. Ernst, ao contrário de Irena, distanciou-se de sua religião e de sua crença em D’us: observa o mundo com a lente do ceticismo e é incapaz de interpor a seus atos direcionamentos divinos.

Um fato, no entanto, une-os: ambos têm alguma relação com o Holocausto alemão (1933-1945). Do lado de Ernst, sua mulher e sua filha foram assassinadas nos campos de extermínio, motivo de seu afastamento do judaísmo e de D’us. Por outro lado, os pais de Irena sobreviveram ao extermínio, porém carregam as marcas do imenso trauma em sua relação com o mundo: distanciados, o romance dá a entender que enxergavam o mundo como hostil tanto pela ameaça física da destruição quanto pela recepção inicial do casal no Estado de Israel (essa recepção e a segregação social dos sobreviventes foram belamente tratadas por David Grossman no romance Ver: amor, de 1986). Apesar do trauma, mantiveram-se religiosos praticando uma espécie popular de religião que demonstra um apreço à superstição. Para os pais de Irena, fora a forma encontrada para lidar com o trauma máximo.

A filha encarnou o comportamento dos pais e retirou-se para dentro de si mesma. Esse retiro é refletido em suas palavras: são quase sempre escassas. Irena acredita que não possui o vocabulário necessário para produzir grandes reflexões:

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Irena retorna a sua casa devagar, quase sem pensar. Ela não costuma meditar sobre seus pensamentos. Se acontece de se deparar com algo interessante, ela o contempla e o guarda no coração. Amiúde esse algo se revela novamente a ela em um sonho. Às vezes uma palavra se fixa em sua mente, brinca ali por um momento e depois desaparece, voltando ao lugar de onde saiu. (p. 13)

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Mais importante: ela se sente acanhada diante do que considera a exuberância das palavras e das perguntas que Ernst lhe faz. Este, ao contrário, tem palavras demais. Seu embate com a memória também está relacionado ao trauma dos campos de concentração e de extermínio e, por isso, passa dias reescrevendo o início de seu texto para encontrar as palavras certas, sempre sem sucesso.

O que primeiramente irrita Ernst, e o que nos toca mais proximamente, é a simplicidade de Irena. No início, considera-a chula, simplória (em vez de simples), supersticiosa e pouco desenvolvida tendo em vista os seus 36 anos de idade. O embate inicial é todo da parte de Ernst, já que Irena é cuidadosa com os mínimos hábitos e alterações dele: o carinho de preparar um bolo que ele gosta, a tentativa de ouvir as reflexões sobre o que ele pretende escrever. No entanto, não faz muitas perguntas. Perguntas podem levar a situações delicadas. Ela entra no apartamento, realiza seu trabalho e volta para casa, sozinha, deixando Ernst também sozinho. Nesse romance de solidão, os dois protagonistas são sozinhos até em sua estrutura: os personagens reduzem-se a poucos indivíduos que circunscrevem os dois protagonistas. A narrativa é objetiva, porém não pouco poética, entremeada de flashbacks do passado de Ernst, mas não de Irena. Ele a considera, e até certo ponto ela também, sem um passado. A sobrevivência no campo de extermínio experienciada pelos pais de Irena é introjetada em sua mente, de forma que nem mesmo sabe se seu passado é realmente seu. Com Ernst, Irena não consegue encontrar algo de importante a dizer, tampouco as palavras que usaria para isso. Pega-se em D’us, fiel, e não parece se interessar por mais nada a não ser seu trabalho.

Aos poucos, percebemos que o contraste entre as personalidades de Irena e de Ernst se aprofunda. A distância entre os dois, no entanto, não. Ernst passa a enxergar em Irena um outro tipo de simplicidade, nos pequenos gestos que ela faz e nas pequenas palavras que ela diz. O cuidado com Ernst, também simples, surte efeito e ele começa a se afeiçoar pelo mundo circunscrito de Irena, no qual encontra o alento que a sua vida nunca lhe deu. Sua simplicidade parece se traduzir a ele como um contato mais próximo com a vida, contato esse que evitou conscientemente durante toda a sua existência. Ernst passa a ver na alma de Irena a força que sempre lhe faltou, especialmente após o extermínio da mulher e da filha, para que pudesse enfim gozar de um sentimento de felicidade e de liberdade em relação a seu passado.

Irena, fundamentalmente, permanece a mesma, como se seus atributos contagiassem Ernst e este se aproveitasse beneficamente do calor simples que ela emite. Suas observações logo se tornam aquilo de que julgava não ser mais capaz de sentir: amor.

Retomando as observações de Forster, podemos pensar em uma diminuição da esfericidade de Ernst e em uma diminuição da planificação de Irena que se dá ao longo do romance. Essa mudança, no entanto, não é equânime: Irena permanece sendo uma personagem plana, aqui chamada de “simples”, e Ernst permanece a personagem esférica, complexa. No entanto, há uma mudança. Prosseguindo esse raciocínio, podemos pensar que um espaço entre os dois protagonistas se torna esférico, ou seja, não tanto o pensamento dos personagens e suas características se alteram, mais sim ocorre uma síntese na relação entre ambos. Dessa maneira, a influência de Irena sobre Ernst e as mudanças que ela provoca nele a tornam maior, mais potente enquanto personagem, mais influente nos caminhos da narrativa, enfim, mais esférica. Irena ganha em importância precisamente devido à sua qualidade de simples, de plana, fazendo-nos sentir empatia e simpatia e alterar nossa percepção em relação às posições primeiramente duras de Ernst. Trata-se, portanto, daquela zona cinzenta de que falamos acima: a planicidade de Irena é precisamente o que a torna esférica em nível abstrato, ou seja, ainda que suas características sejam estáveis, sua importância na narrativa aumenta sua dimensão no desenrolar do enredo.

Situação parecida, porém tratada de outra perspectiva, é a simplicidade ingênua de Shosha no romance Shosha, de Isaac Bashevis Singer, publicado em 1978.

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Shohsa (Isaac Bashevis Singer)

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Nesse romance, seguimos a trajetória de Aaron Greidinger, um aspirante a autor literário na Varsóvia do imediato pré-Segunda Guerra Mundial. Somos apresentados à sua moradia ainda no início. A descrição da rua em que mora é relevante para entendermos a história judaica da segunda metade do século XIX e do início do século XX: trata-se de uma Judengasse (ou “viela dos judeus”), na qual se amontoa a comunidade judaica de uma cidade. Ali gira toda a vida dos judeus: comércio, serviços, ilegalidades, livrarias, açougues apropriados se mesclam com prédios residenciais em condições precárias nos quais vivem dezenas de famílias. Esse quadro é comum em cidades nas quais havia comunidades judaicas (por exemplo, Frankfurt e sua Judengasse e o bairro Kazimierz em Cracóvia), cujos habitantes eram expulsos do meio cristão para se juntar em bairros específicos, segregados da vida comum citadina. Aaron Greidinger reside em um desses bairros e em uma dessas ruas nas quais predomina o hassidismo, uma corrente religiosa judaica cuja origem se traça ao rabino Baal Shem Tov (Israel ben Eliezer, c. 1698-1760).

Em um apartamento pequeno dentro de um desses prédios em ruínas, conhece sua amiga de infância Shosha, com quem desenvolve uma amizade que será interrompida pela mudança de residência. A narrativa, nesse ponto, dá um salto temporal e acompanhamos um Aaron jovem, adulto, aspirante a escritor e pobre, frequentando clubes de escritores, hotéis, mulheres gentias (cristãs e outras), bares e cafés. Aaron não é particularmente religioso: ao longo dos anos, desenvolveu um ceticismo profundo quanto aos ensinamentos hassídicos e à religião judaica de maneira geral. Seus amigos são filósofos, atores e escritores, a maioria em condições de sobrevivência duvidosas. No entanto, Aaron é tragado por esse meio e nele vive, não sem uma certa inclinação àquela ambientação.

A oportunidade surge quando um rico milionário dos Estados Unidos traz a Varsóvia sua amante, Betty, que é atriz de teatro, para montar uma peça. Aaron é imediatamente acionado pelos colegas e se propõe a escrever um texto com tema judaico para que a atriz a represente na capital polonesa. O plano eventualmente fracassa pela inconstância de Aaron e pela invasão da Polônia pelos nazistas, o que faz com que todos os sonhos de todos os judeus sejam frustrados. Betty tenta persuadir Aaron a fugir consigo e com seu amante rico para os Estados Unidos com a promessa de ganhos financeiros polpudos. Aaron aceita o convite, porém precisa olhar uma última vez a Judengasse onde morou na infância.

É nessa ocasião que Aaron reencontra Shosha após quase vinte anos distante. A descrição do narrador aponta para o cerne de nossas considerações:

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Assim que Bashele [mãe de Shosha] falou, Shosha entrou. Deus do céu – que surpresas esse dia trouxe, cada uma maior que a outra! Meus olhos estariam me enganando? Shosha não havia nem crescido nem envelhecido. Fiquei perplexo com esse mistério. Depois de uns instantes, observei uma leve mudança em seu rosto e sua altura. Ela crescera alguns poucos centímetros. Usava uma saia desbotada e uma blusa sem mangas que eu juraria que havia vestido há vinte anos. Ficou parada ali segurando um cone de papel usado pelos merceeiros para pesar cem gramas e olhava para nós. Em seus olhos havia a mesma fascinação infantil da qual eu me lembrava da época em que eu lhe contava histórias.

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Lentamente, Shosha colocou o cone de açúcar na mesa e tirou sua blusa. A silhueta dela permanecera infantil, embora eu tenha detectado sinais de peitos. Sua saia era mais curta do que aquelas na moda e era difícil dizer à luz do gás se era azul ou preta. Era assim que as roupas ficavam quando haviam passado por desinfecção durante a guerra – encolhidas, vaporizadas, desbotadas. O pescoço de Shosha era longo, seus braços e pernas finos. (pp. 71-72).

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Shosha é ainda mais simples que Irena. Suas principais características são uma aparência extremamente frágil e infantil, o que faz com que seja constantemente confundida com uma criança, ainda que, no excerto acima, ela tenha aproximadamente 27 anos. Mentalmente, Shosha corresponde à figura corporal: não tem instrução formal devido à pobreza em que vive, não é capaz de desenvolver raciocínios que vão além do presente, não vislumbra uma mudança em sua vida porque esse próprio pensamento não lhe ocorre. Suas frases são curtas e diretas, como as de uma criança, e seu vocabulário é mínimo, o necessário para a sobrevivência diária e o contato com a mãe. Não conheceu verdadeiramente ninguém e jamais abandonou a rua onde morou a vida inteira, retirada em seus afazeres cotidianos.

O contraste com Aaron é ainda mais gritante do que o entre Irena e Ernst no romance de Appelfeld. Aaron é dado a ler literatura e filosofia, além de história, e busca nos livros a resposta para a condição humana, especialmente em tempos de retorno da perseguição aos judeus. Cultiva hábitos noturnos, boêmios, e tem prazer em discutir filosofia com seus amigos mais próximos. Sua alma é complexa, com múltiplas contradições e diversos episódios de crise, afundados em banquetes, jogos, bebidas, mulheres e literatura. Shosha é precisamente o oposto: tem pensamento pedestre, plano, cuida de sua mãe como a única figura humana em seu mundo pequeno. Sua alma é desprovida de desejo e ambição. Melhor dizendo, exceto um.

Descobrimos, no desenrolar desse encontro, que Shosha nutriu um único desejo em sua vida: reencontrar Aaron e ter uma vida com ele. Durante todos esses anos, Shosha enxergou em Aaron aquele que lhe dera atenção; como religiosa, similar a Irena, cultivou a esperança de que D’us o enviasse em seu caminho. Portanto, a aparição de Aaron ali era como a realização de uma profecia particular. Aaron, por seu lado, reencontra em Shosha o sentido daquilo que mais lhe faltava: o amor simples. Suas relações, até então, deixavam uma marca melancólica após noites de sexo, o que aprofundava o vazio que sentia. A simplicidade de Shosha cativou-o e, assim, negou riqueza e um amor vazio com Betty e decidiu permanecer em Varsóvia com Shosha.

Para não correr o risco de mensagens raivosas, interrompo aqui o relato para evitar o odiado spoiler.

À semelhança de Irena com Ernst, Shosha provoca uma profunda alteração na vida e na personalidade de Aaron. Este enxerga na maneira simples e infantil dela um retorno ao conforto da infância, época em que suas preocupações eram simples, de tempo presente, sem as inúmeras distrações da vida de artista que gostaria de levar. Ao juntar-se a Shosha, Aaron reencontra um acalanto perdido, uma certa paz de espírito que sempre lhe fugiu e refugia-se no olhar cintilante e infantil de sua companheira, que escuta suas ideias, seus planos e suas histórias com atenção pueril. Os demais personagens, especialmente as femininas, não compreendem a súbita alteração de Aaron e rebaixam Shosha, chamando-a de “miserável”, “coitada”, “brinquedo”. Ainda que Aaron o saiba, sua atração emocional a Shosha não esmorece; ao contrário, cresce durante a narrativa.

Assim como Irena, Shosha ganha uma importância que está além de sua descrição imediata no romance. Sua dimensão cresce, pelo contraste, pela síntese que se estabelece entre ela e seu companheiro, o qual, porém, não se planifica. Shosha tampouco se torna mais complexa como personagem, porém o contato entre os dois, usemos uma imagem de um poeta, é como estrelas que colidem. Shosha transmite a Aaron uma segurança que ela própria não tem, como se sua presença em si fosse o bastante para que a mudança se operasse nele. Shosha, enquanto personagem, transcende a si mesma e se torna, na tessitura narrativa, a presença que impulsionará o próprio enredo.

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Vemos por esses dois romances que as personagens simples não se adequam a uma caracterização rígida entre personagem simples e esférico. Shosha é fundamentalmente filha de uma tragicidade de sua época, traduzida na precariedade de sua habitação e em sua parca capacidade mental; ela é também o espelho da tragédia que se abaterá sobre os judeus de Varsóvia pouco tempos depois do tempo do enunciado. Essa qualidade trágica é menor em Irena, porém ela tem a capacidade de nos despertar sentimentos para além do cômico. Sentimos empatia por ambas as personagens precisamente porque são personagens simples, filhas do trágico, por assim dizer, e melancolia pelo destino realmente trágico de uma delas. Ambos os romances têm um tom melancólico que subjaz à narrativa: no romance de Singer, pela construção das personagens que se espelham nos ambientes em que vivem; em Appelfeld, pela poeticidade das frases simples e pelas combinações inesperadas de imagens, tão constantes na maior parte de sua obra.

É interessante notar que esses são dois exemplos na literatura judaica de personagens simples que ganham dimensões para além de si mesmas. Podemos citar aqui outros dois romances: , de Joseph Roth (1894-1939), publicado em 1930, e Tévye, o leiteiro, de Sholem Aleichem (pseudônimo de Salomon Naumovich Rabinovich, 1859-1916), publicado postumamente em 1949, baseado em uma peça de sua autoria representada postumamente em 1919 e que foi base para o aclamado musical Um violinista no telhado, de 1964. Ambos os romances contam narrativas de homens simples, profundamente arraigados à vida interior europeia, que, no entanto, tomam uma dimensão maior que si mesmos. O próprio Sholem Aleichem, em seu túmulo, inscreveu: “Do ligt a Id a posheter”: “aqui jaz um judeu, um mais simples”, em ídiche. Seria uma tradição judaica cultivar a história de pessoas simples, porém altamente significativas, ou elas sempre estiveram presentes na cultura ocidental e não as percebemos, talvez como sintoma da indevida importância dada somente aos pretensos protagonistas da narrativa do mundo? Veremos.

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Sholem Aleichem

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Aharon Appelfeld (1932-2018) nasceu na atual Ucrânia e faleceu em Cracóvia. Autor conhecido pelos seus romances que abordam o Holocausto e a perseguição dos judeus, ganhou vários prêmios por suas narrativas. No Brasil, temos traduzidos Badenheim 1939 (Amarylis, 2002, por Moacir Amâncio), Expedição ao inverno (Perspectiva, 2011, por Luis S. Krausz), Meu pai, minha mãe (Carambaia, 2019, por Luis S. Krausz), Volto ao anoitecer (FTD, 2016, por Paulo Geiger), o conto “Berta” na seleção de Rifka Berezin Novo conto israelense (Edições Símbolo, 1978, por Rifka Berezin), e a novela “Tzili: história de uma vida” (Summus Editorial, 1986, por Rifka Berezin).

Isaac Bashevis Singer (1902-1991) nasceu na Polônia e faleceu em Nova York. Ganhou o prêmio Nobel em 1978. Suas narrativas são bastante conhecidas na literatura judaica. Entre as que estão em português, destacamos No tribunal de meu pai (Companhia das Letras, 2008, por Alexandre Hubner), O Golem (Perspectiva, 2010, por Jacó Guinsburg) e A morte de Matusalém (Companhia das Letras, 2011, por Alexandre Hubner).

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Livros mencionados:

Aharon Appelfeld. Suddenly, love. Trad. Jeffrey M. Green. Schocken Books, 2014.

David Grossman. Ver: amor. Trad. Nancy Rosenchan. Nova Fronteira, 1993.

E. M. Forster. Aspectos do romance. Trad. Sergio Alcides. Globo, 2005.

Isaac Bashevis Singer. Shosha. Trad. Joseph Singer. Penguin Modern Classics, 2012.

Joseph Roth. . Trad. Laura Barreto. Companhia das Letras, 2008.

Sholem Aleichem. Tévye, o leiteiro. Trad. Jacó Guinsburg. Perspectiva, 2012.

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Rafael Rocca

Rafael Rocca dos Santos é formado em Direito e Letras (alemão/português), ambos pela USP. É Mestre em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP/FFLCH-Bauhaus-Universität Weimar (Alemanha) com dissertação sobre a figura do duplo na literatura ocidental. Realiza um doutorado em Estudos Literários e Culturais na USP/FFLCH sobre literatura de testemunho do Holocausto. É tradutor do inglês, alemão, latim e espanhol, com traduções publicadas e no prelo. Edita a seção Transmargens da Revista Mallarmargens. É Vice-Diretor da Casa Brasileira Fernando Pessoa. e-mail: rocca.eda@gmail.com.