Filosofia

Pluralismo de valores e bem comum

por Denis Coitinho

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Como lidar com o pluralismo de valores em uma democracia contemporânea? Deveríamos afirmar um certo padrão de perfeição como forma de pautar a conduta humana e as políticas públicas visando o bem comum, ou, alternativamente, deveríamos nos contentar apenas em encontrar um “equilíbrio precário”, para usar uma expressão de Berlin, como forma de tornar o desacordo sobre os valores o mais pacífico possível? Veja-se que este problema parece ser o seguinte: ao se adotar um padrão de perfeição em a uma sociedade pluralista, se correria o risco de restrição às liberdades individuais, como a religiosa, de pensamento, de expressão, entre outras, além do risco do Estado ter que oprimir seus cidadãos paternalisticamente para impor esse padrão na conquista da estabilidade social; por outro lado, ao se adotar um padrão de neutralidade de valores, de forma que o Estado não impusesse um padrão normativo monístico aos seus membros, se teria o respeito às liberdades dos agentes e não se correria o risco da opressão estatal, é claro, mas com o ônus de que isso possa conduzir a uma situação de desagregação social, uma vez que as ações conduzidas “livremente” não necessariamente levam ao bem comum.

Lembremos do contexto da pandemia de covid-19 para ilustrar esse problema. Desde o início da pandemia em 2020, as nações no mundo todo adotaram medidas sanitárias para conter a disseminação do vírus, como a obrigatoriedade de isolamento social, lockdowns, uso de máscaras em espaços fechados e, posteriormente, a obrigatoriedade da vacina para a entrada em vários lugares. Além disso, este poder estatal fez uso, inclusive, da linguagem das virtudes para cobrar um comportamento virtuoso dos cidadãos, exigindo prudência, solidariedade, resiliência e até mesmo justiça em oposição à ganância. O problema é que em democracias liberais, como as em que vivemos, em razão do pluralismo valorativo, não estamos acostumados a viver em um mundo social em que o Estado determina o comportamento correto. Apenas pune quando os cidadãos desrespeitam as leis, como as do código penal. Penso que por isso essas medidas foram vistas por muitos como autoritárias, pois elas restringiram o direito de ir e vir em razão da defesa da saúde dos demais, impedindo até a reunião familiar e de culto, de forma similar que no passado o Estado passou a limitar o consumo de tabaco em locais fechados, com o objetivo de preservar a saúde dos não fumantes.

Esse problema é conhecido em filosofia política como a oposição entre liberalismo e perfeccionismo. Grosso modo, o modelo liberal pode ser explicado como uma defesa intransigente da neutralidade valorativa estatal, se contrapondo ao perfeccionismo, que teria o paternalismo como principal consequência negativa. Com a perda do fundamento religioso da política a partir da modernidade, os liberais defenderam a distinção entre as esferas privada e pública da vida, significando que o Estado só poderia obrigar os indivíduos no âmbito político, assegurando os direitos à vida, propriedade, integridade e liberdade, para ilustrar, enquanto na esfera privada, como a religiosa e moral, eles deveriam exercitar sua autonomia. Isto implicou em uma distinção entre os deveres perfeitos, como o de não matar e roubar, que podem ser exigidos pela lei via punição, e os deveres imperfeitos, como ser caridoso e moderado, que devem ser decididos individualmente. Isso é assegurado pelo princípio do dano, como formulado por Mill no On Liberty, que excluiria qualquer intervenção estatal no que diz respeito ao próprio bem dos cidadãos, permitindo o uso do poder coercitivo apenas para evitar o dano aos outros. Questões comportamentais, como o consumo de cigarro e bebidas alcoólicas e mesmo o comportamento sexual, deveriam ser decididas individualmente.

Contemporaneamente, autores liberais como Rawls, Larmore e Quong, entre outros, defendem que o liberalismo se contrapõe claramente ao perfeccionismo, pois ele desrespeitaria o princípio da neutralidade, enquanto autores como Raz, Sher e Wall, para citar alguns, ao contrário, defendem que não haveria de fato essa oposição. John Rawls, por exemplo, em sua teoria da justiça como equidade, defende um tipo de liberalismo antiperfeccionista, e isso em razão do receio de que a adoção de um padrão de perfeição como base de um princípio de justiça tivesse por consequência a retirada das liberdades individuais e a opressão estatal. Na obra A Theory of Justice (1971), Rawls contrapõe o seu contratualismo ao perfeccionismo, dizendo que as partes na posição original sob o véu da ignorância recusariam um princípio de perfeição como forma de defender suas liberdades e adotariam um princípio que assegurasse a maior liberdade igual possível, consistente com uma liberdade semelhante aos outros, o que implicaria na afirmação de uma igualdade ontológica de valores e, assim, uma neutralidade estatal (1971, p. 325-332). Por outro lado, Joseph Raz, em The Morality of Freedom (1986), advoga que uma teoria liberal poderia ser pensada sem essa defesa enfática do antiperfeccionismo, podendo o Estado favorecer certas atitudes dos cidadãos e mesmo intervindo em certas questões controversas, visando favorecer atitudes consideradas positivas dentro do espaço político, a exemplo da defesa da autonomia pessoal como um componente essencial do bem-estar e que seria coerente com uma concepção pluralista  e objetivista de  bem (1986, p. 369-401).

Mas, então, o que fazer para enfrentar este problema que pode ser tomado como um paradoxo das sociedades democráticas atuais?

Creio que uma estratégia interessante seja afirmar um certo padrão de perfeição para pautar a conduta humana e as políticas públicas visando o bem coletivo, sem implicar em paternalismo, mas podendo contar com uma recomendação da sociedade e até do Estado no que diz respeito ao comportamento correto dos cidadãos a partir de uma disticão do âmbito da moralidade privada e pública e observar quando existe uma relação intrínseca entre elas e quando não, podendo-se adotar uma recomendação social-estatal no domínio privado-público da moral, mas interditando esta interferência em seu domínio puramente privado, bem como contanto com a coerção legal no domínio da moralidade pública, conciliando, assim, o liberalismo com um perfeccionismo de tipo moderado.

Creio que essa estratégica seja relevante para evitar os principais erros cometidos tanto pelo liberalismo antiperfeccionista como pelo perfeccionismo abrangente ou extremo. De forma geral, o erro da posição liberal, como a posição defendida por Rawls, é fazer uma separação quase que irreconciliável entre as esferas pública e privada da vida, defendendo certos valores e/ou princípios políticos de forma independente das concepções morais dos agentes, afirmando um tipo de neutralidade em relação às concepções de bem controversas. Acontece que estes valores e/ou princípios já são eles próprios uma afirmação moral controversa, ou não seria controversa a defesa de que a cooperação social e o senso de justiça sejam virtudes obrigatórias aos cidadãos? Por outro lado, o erro do perfeccionismo, como o proposto por Raz, parece ser o de tentar apagar toda esta distinção, reduzindo a esfera pública à sua dimensão privada, subjugando, assim, a política à moral pela fundamentação do justo no bem, o que pode anular toda pluralidade valorativa que se mostra central em democracias. Minha proposta é distinguir dois aspectos da moral, um público e um privado, e defender a necessidade de sua separação, mas identificando uma conexão orgânica entre eles. Mas deixem-me retomar o caso da pandemia de covid-19 para explorar melhor esse paradoxo e esclarecer com mais detalhes o que tenho em mente.

Durante a pandemia de covid-19 várias medidas sanitárias foram adotadas pelas autoridades estatais — tais como isolamento social, lockdowns, obrigatoriedade do uso de máscara e de vacinas em certos contextos — para salvar a vida das pessoas, tendo por foco o bem comum em contraposição ao bem individual, o que implicou exigir uma conjunto de virtudes dos agentes, como a prudência, a solidariedade e a benevolência, entre outras, condenando as ações egoístas e gananciosas, por exemplo, punindo aqueles que desobedeceram essas obrigações através de leis ad hoc. Acontece que em democracias liberais o Estado não costuma exigir um comportamento virtuoso de seus cidadãos, apenas punindo quem descumpre a lei, leis essas geralmente restritas aos deveres perfeitos, que condenariam o assassinato e roubo, mas não o egoísmo e a ganância, e isso para respeitar a pluralidade de valores. Talvez por essa razão essas medidas foram vistas como autoritárias e até mesmo arrogantes e ofensivas por muitos, uma vez que elas restringiram as liberdades individuais. Mas importante notar que em uma situação de exceção, como em uma guerra ou no enfretamento de uma pandemia, se precisa contar com um conjunto de virtudes dos cidadãos para se obter sucesso. O problema é que as virtudes se adquirem em um processo de habituação, mediante educação, com ações repetidas. Mas, como o Estado não defende um ideal de vida boa, ele não pode ensinar e exigir essas virtudes. Assim, como sair desse paradoxo?

Creio que a primeira parte da solução seja afirmar um certo padrão de perfeição para pautar tanto a conduta dos agentes como as principais políticas públicas visando o bem comum, de forma não paternalística, a partir de uma distinção entre a moralidade pública e privada e sua conexão específica. Assim, o Estado só poderá punir as ações que descumprem as regras da moralidade pública, desrespeitando os deveres perfeitos, que são os que têm direitos correspondentes, isto é, em casos em que o erro é determinado publicamente, como através de leis como a Constituição, Código Penal e outras legislações, o que parece respeitar o princípio liberal do dano. Na dimensão da moral privada, o Estado não teria legitimidade para coagir os agentes ou promover certo padrão de conduta. Mas poderia ser o caso do Estado promover certos valores, como certas virtudes que são importantes para a garantia do bem comum, sobretudo pensando em sua conexão com a Sociedade Civil. Essa seria uma dimensão em que a moralidade privada parece conectada com a moralidade pública.

Mas, com isso, o Estado não estaria obrigando ilegitimamente os cidadãos, uma vez que haveria um desacordo razoável sobre os ideais de vida boa? Penso que não, sobretudo se identificarmos não haver muita controvérsia a respeito dos bens de agência e os bens prudenciais, bem como não parece haver muita disputa a respeito de um juízo comparativo local sobre uma forma de vida virtuosa e outra inteiramente viciosa no interior de uma comunidade política. Imaginem a seguinte situação comparativa. Durante a pandemia, Augusto respeitou todos os decretos estatais e recomendações médicas, além de demonstrar solidariedade com os vizinhos e parentes. Beto, por sua vez, não respeitou o isolamento social, participando de aglomerações em vias públicas e de festas clandestinas, além de não ter usado a máscara muitas vezes. Creio que seja consensual afirmar que uma vida imprudente e puramente egoísta como a demonstrada por Beto seja pior do que uma vida prudente e solidária como a de Augusto. Parece que nenhuma pessoa razoável iria disputar o julgamento de que uma vida responsável socialmente seria mais valiosa do que uma vida socialmente irresponsável. E, sendo assim, qual seria a ilegitimidade para o Estado e a sociedade afirmarem este ideal específico de vida boa, exigindo um comportamento virtuoso dos agentes quando se trata do bem comum?

A segunda parte da solução é defender que é possível evitar o paternalismo estatal, que é sempre indesejado em contextos de incomensurabilidade de valores, e, ainda assim, poder contar com a promoção de certas virtudes privadas importantes para assegurar a estabilidade social feita pela sociedade civil e mesmo pelo Estado. Aqui é importante distinguir a punição estatal da promoção social. Também, que essa promoção não precisa estar restrita a ações estatais, mas que pode ser executada pelas diversas associações que compõem a sociedade civil. Assim, o Estado, em parceria com a sociedade, não promoveria esses bens de forma coercitiva, mas, ao contrário, criaria um ambiente social que conduza a promoção desses bens, sobretudo a partir de um projeto de educação que contemple a importância de certas virtudes cidadãs.

Isso quer dizer que tanto o Estado como, sobretudo, a sociedade, poderiam recomendar um certo tipo de comportamento virtuoso, seja através de campanhas, políticas públicas e, especialmente, através do processo educativo, sem recair em paternalismo ou opressão estatal, pois não haveria o elemento coercitivo. Ser incentivado a ser prudente não é o mesmo que ser coagido para ser prudente, para exemplificar. E importante frisar que essa promoção de certas virtudes que são chave para o bem comum não precisa ser nem arrogante e nem ofensiva, mas pode estar circunscrita apenas aos deveres comuns em democracias, tais como a curiosidade intelectual, modéstia e mente aberta, ilustrando.

Um último comentário. Penso que é enganador dizer que em sociedades democráticas o Estado não interfere na moral dos agentes, pois o faz, por exemplo, quando exige prudência e civilidade no trânsito e tolerância e razoabilidade no trato com os outros, até porque o desrespeito a esses critérios normativos implicará em punição, como seria o caso da punição por matar alguém em um acidente de trânsito por estar em alta velocidade ou a punição pela discriminação racial ou sexual. E se essa exigência não é paternalista por que seria paternalista a promoção de um certo padrão de perfeição cidadã?

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Joseph Raz (Steve Pyke/Getty Images)

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Denis Coitinho

Denis Coitinho é professor do PPG em Filosofia da Unisinos e Pesquisador do CNPq. Doutor em Filosofia pela PUCRS, com pós-doutorado na London School of Economics e na Universidade de Harvard. É autor de Justiça e Coerência e Contrato & Virtudes, ambos por Edições Loyola.