Wolfianas n° 4 – Classe artística e intelectuais defendem a liberdade de expressão. Bem-vindos!

Artistas e intelectuais manifestaram-se em defesa da liberdade de expressão e contra censura. Será para todos ou apenas para os que estão "do lado certo" da agenda ideológica?

por Eduardo Wolf

A liberdade de expressão está em baixa. É curioso constatar isso agora que esta coluna completa dois meses aqui no Estado da Arte, especialmente porque dois ensaios foram dedicados diretamente a esse tema (aqui e aqui), e calhou que eu escrevi praticamente apenas sobre isso desde agosto (como aqui). Os desdobramentos das marchas de supremacistas brancos e neonazistas em Charlottesville fizeram com que usássemos este espaço para publicar artigos, entrevistas e textos clássicos sobre liberdade de expressão e compromissos democráticos plurais e tolerantes, o que nos levou de John Milton e sua Areopagítica a Ian McEwan (em texto inédito em português, aliás), passando por excelentes debates nossos contemporâneos.

Passados quase dois meses daqueles episódios na Virginia, a verdade é que as condições de exercício da liberdade de expressão deterioraram-se a olhos vistos, apenas que, agora, aqui no Brasil. Um ambiente intolerante e muito próximo da violência física, estruturado fundamentalmente em uma lógica de exclusão da dissidência e da voz divergente, engajado na eliminação do pluralismo e da abertura à diversidade de perspectivas veio se instalando ainda mais confortavelmente em nossos meios sociais. Os casos nesse sentido, aliás, têm se sucedido já há algum tempo.

O episódio mais recente foi o de Daniela Thomas, que estreou na direção com o longa Vazante, filme bastante elogiado na Berlinale e muito aplaudido em sua exibição no Festival de Brasília. Daniela acreditou que, na manhã seguinte à estreia do filme no festival nacional, teria um debate com público, crítica e colegas do meio audiovisual. Em vez disso, os batalhões que vêm se formando na sociedade brasileira em luta continuada e cada vez mais violenta contra a liberdade, a arte e o pensamento, agindo sempre em nome de agendas ideológica e moralmente estreitas, aguardavam-na para um triste episódio de enquadramento policialesco. Nas palavras da própria diretora em seu texto para a revista Piauí“O lugar do Silêncio”,

No tal debate, depois de quase duas horas de violentos ataques por parte de algumas poucas pessoas que se impuseram com ameaças ou gritos pela posse do microfone, e que, quando não de posse dele, sinalizavam um absoluto horror às minhas palavras, com gestos grandiloquentes, socos na cadeira, interjeições de nojo, gargalhadas irônicas e outros assombros, sendo que a mediadora, também acuada, não fazia qualquer movimento para acalmar os ânimos ou retomar a lista de debatedores que havia pacientemente escrito em seu caderno, eu finalmente capitulei.

As “acusações” terríveis a que foi submetida a diretora nesse verdadeiro processo inquisitorial eram claras: não sendo negra, resolveu filmar sobre a escravidão no Brasil, e o resultado não agradou a moralidade e a política defendidas pelo movimento negro. Em meio à agressividade dos inquisidores, chama muito a atenção a postura de um crítico de cinema que, mesmo diante da capitulação de Daniela e de seu pedido de desculpas (foi bem isso, ela o admite) por ter feito o filme, não cede e conclui: que Daniela, então, não lance o filme. Que Daniela não mostre o filme que produziu ao país.

Ora, o leitor há de concordar que essa não é a avaliação de um filme, mas a decisão final de um tribunal de censores. Assim funciona o obscurantismo ideológico e moral dos que, seguros de que são detentores da verdade absoluta, legislam sobre o que é arte e o que não é; qual seu papel em sociedade; quem deve executá-lo e como. Quando grupos assim passam a fazer pressão pública, motivados por razões morais e políticas, contra a livre expressão das ideias, da arte e do pensamento, o resultado só pode ser o triunfo da censura, a criação de um ambiente de pesado autoritarismo e o cerceamento das mais elementares liberdades.

Imaginei que classe artística, intelectuais e acadêmicos sairiam em defesa da diretora, da liberdade de expressão e da dignidade da arte como um valor inegociável das sociedades democráticas, livres e plurais. Não encontrei nada disso. Pelo contrário, houve expressiva manifestação de críticos de cinema nas redes sociais criticando, em verdade, Daniela Thomas. Claro, tal atitude não foi unânime, e o excelente crítico da Folha de São Paulo, Inácio Araújo, descreveu o que viu sem meias palavras. Aqui neste Estado da Arte, Valeska Silva examinou, com fôlego de ensaio, o estado crítico do que passa por crítica em nosso tempo.

O que devemos pensar de uma situação como essa?

Em primeiro lugar, que a situação não é nova. Ainda neste ano, o Festival de Cinema de Pernambuco foi objeto de um “boicote” – e, hoje sabemos, boicote por divergências artísticas ou de opinião política é um outro nome para “censura”. Assim, o documentário O Jardim das Aflições, de Josias Teófilo, foi alvo do ataque de outros sete diretores que teriam seus filmes exibidos no Festival, mas recusaram-se a participar. Acusado por uma das cineastas-censoras de “falar sobre um dos principais nomes da direita conservadora”, o filme é sobre Olavo de Carvalho, controverso intelectual brasileiro radicado nos Estados Unidos e que desempenhou papel importante na formação de movimentos conservadores brasileiros contemporâneos.

Não teria sido o caso de uma vigorosa manifestação pública contra esse tipo de atitude persecutória, que invariavelmente resulta em censura e estreitamento das liberdades, em estreitamento dos espíritos? Raras, no entanto, foram as vozes que trataram do tema com serenidade e objetividade na imprensa e no meio cultural. Foi o caso de Jerônimo Teixeira, em seu blog em Veja, e Ruth Aquino, em matéria para a revista Época. De resto, o silêncio e a conivência do meio cultural, acadêmico e intelectual deram, já naquela ocasião, a tônica.

Talvez fosse o caso de supor uma certa supresa: quem sabe a classe artística, os intelectuais e os acadêmicos não estivessem acostumados a lidar com isso. Quem sabe, poderíamos pensar, perplexos diante de isoladas atitudes de censura e de intimidação física, mesmo, contra artistas e cineastas, o millieu não soube como reagir. Ora, mas nada disso era novidade. Já em 2016, na aula magna que proferiria na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo em 17 de fevereiro daquele ano, o sociólogo e professor emérito daquela universidade, José de Souza Martins, foi impedido de falar por manifestantes que, não satisfeitos em apresentar suas reivindicações ou deixar claro seu protesto, exigiram nada menos que o silêncio do professor, cassando-lhe a palavra, impedindo que desse sua aula (tratei do tema em artigo para a revista Veja à época).

Poderíamos recuar, quem sabe, para 2015: a encenação de “A Mulher do Trem”, da companhia Fofos Encenam, foi cancelada após protestos de parte do público e de militantes do meio, que identificaram em um ator pintado de negro a prática de blackface, considerada racista. Nem todas as explicações técnicas dos envolvidos na produção para esclarecer que não se tratava disso adiantou: o Itaú Cultural cancelou a peça e promoveu sessões de algo poderíamos descrever como reconciliação ideológico-espiritual entre os envolvidos — agora, condenar o cerceamento da expressão artística, bem, foi algo que não ocorreu a praticamente ninguém.

Será que, diante desse quadro de terríveis ataques às liberdades mais elementares de expressão artística e do livre pensar, não haveria de mobilizar os artistas, os diretores de cinema, os dirigentes de instituições culturais, os acadêmicos e jornalistas a se manifestarem vigorosamente em defesa da liberdade de expressão? Pois bem: eles se manifestaram.

Agora mesmo, circula nas redes sociais um vídeo-manifesto da classe artística e de intelectuais contra a “censura e a difamação“.  Publicado no domingo (08 de outubro), a manifestação da classe, assim como um vídeo da artista Fernanda Montenegro que defende, sem tergiversar, que “a única cultura que constrói um país (…) é a cultura da liberdade”, surge na esteira dos protestos de segmentos conservadores da população, especialmente religiosos, mas não apenas, que boicotaram e atacaram — chegando às vias de fato da violência, em alguns casos — as exposições Queermuseu, no Santander Cultural de Porto Alegre, e a performance “La bête”, no Museu de Arte Moderna de São Paulo.

É irônico que, depois de filmes boicotados, professores silenciados, palavras cassadas e cineastas submetidos a inquisições ideológicas, foi necessária uma performance em que uma menina de 5 anos foi constrangida a tocar um homem adulto nu para que a classe artística julgasse que não deveria ser submetida à censura de segmentos da população que resolveram decidir o que é arte e o que não é; qual seu papel em sociedade; quem deve executá-lo e como. É curioso que, apenas agora que obras de conteúdo explícito, reconhecidamente de adultos para adultos (como na frase de Adriana Varejão sobre sua obra polêmica na exposição do Santander em Porto Alegre) foram objeto de mostras educativas para crianças, as reações inflamadas, inquisitoriais e persecutórias do populacho provocaram nos artistas e intelectuais a necessidade de defender a liberdade de expressão e de não aceitar a imposição de nenhuma agenda moral e política sobre os domínios da expressão artística e do pensamento, não importa de que grupo venha.

Irônico, sim; curioso, sem dúvida. Mas que bom! Antes tarde do que nunca. Que bom que, agora, a classe artística e os intelectuais estão mobilizados contra a ideia de que uma parcela da população, se quiser, fecha exposição, cancela peça de teatro ou retira filme de exibição. Isso não é bom para a liberdade, não é bom para o pluralismo democrático. Que bom que, agora, a classe artística e os intelectuais estão conscientes de que a arte e o pensamento devem ser livres, não podendo se submeter a nenhum tipo de pressão popularesca, moralista, ideológica ou política.

Classe artística, intelectuais: sejam bem-vindos!

Agora, só para confirmar: não vale nenhuma censura, mesmo, certo? Não pode nenhum moralismo, correto? Patrulha político-ideológica alguma está autorizada, de acordo? Ou a liberdade de expressão só vale quando a patota decide que vale? Porque, sejamos francos, classe artística e intelectuais, o histórico de vocês na defesa da liberdade de expressão, como eu mostrei acima, não é nada bom. E se a liberdade só vale para a patota, bem, a única coisa que as recentes manifestações da classe artística e dos intelectuais  terão comprovado é que a classe artística e os intelectuais não defendem, nunca defenderam, a liberdade de expressão. Restarei convicto, aqui, de que isso não poderia ser verdade, e de que estamos, de fato, evoluindo para um consenso em defesa da liberdade para valer.

Veja mais:

A liberdade de expressão na arte

Queermuseu – Cidadãos citadinos

Eclosão conservadora

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