Política

Pós-verdade e déficit democrático

por Davi Lago

Tzvetan Todorov destacou os perigos em torno da noção de “verdade” nas comunidades políticas desde o Iluminismo. Para entender sua argumentação é preciso retomar a distinção iluminista de ação/discurso em dois tipos: aquele cuja finalidade é promover o bem e aquele que aspira estabelecer o verdadeiro. Os iluministas traçaram uma dicotomia entre o domínio da vontade, cujo horizonte é o bem; e o domínio do conhecimento, orientado para o verdadeiro. O exemplo da primeira ação seria a atividade política; o da segunda, a ciência. Os iluministas concebiam, assim, uma diferença entre fato e interpretação, ciência e opinião, verdade e ideologia.

Nessa perspectiva, o bom desempenho da vida política numa república estaria ameaçado por dois perigos simétricos e inversos: o moralismo e o cientificismo. O moralismo reina quando o bem domina o verdadeiro e, sob pressão da vontade, os fatos se tornam uma matéria maleável. O cientificismo se impõe quando os valores parecem decorrer do conhecimento e as escolhas políticas se travestem em deduções científicas, sendo definido por Todorov como “uma doutrina filosófica e política, nascida com a modernidade, que parte da premissa de que o mundo é inteiramente passível de conhecimento; então passível de transformação de acordo com os objetivos que nos colocamos”.[1]

De acordo com Todorov, nos regimes totalitários do século XX, moralismo e cientificismo foram engolfados por um terceiro fator ainda mais danoso: a apropriação do Estado da própria noção de “verdade”:

Não é somente que nele os homens políticos recorram ocasionalmente à mentira — eles o fazem em todo lugar. É antes a própria distinção entre verdade e mentira, verdade e ficção que se torna supérflua, face às exigências puramente pragmáticas de utilidade e de conveniência. É por isso que nesses regimes a ciência não é invulnerável aos ataques ideológicos e a noção de informação objetiva perde seu sentido. A história é reescrita em função das necessidades do momento, mas as descobertas da biologia ou da física podem também ser negadas se forem julgadas inapropriadas.[2] 

Para Todorov, moralismo, cientificismo e as mudanças no estatuto da verdade foram gravemente comprometidos após as experiências totalitárias do século XX. Contudo, essas ameaças às estruturas sociais não deixaram de existir, simplesmente assumiram novas formas no início do século XXI.

Advento da pós-verdade e novo déficit democrático

O termo “pós-verdade” foi escolhido como Palavra do ano 2016 pelo Dicionário Oxford. A noção de pós-verdade é definida como “momento em que os fatos objetivos são menos influentes do que as emoções e as crenças pessoais na modelagem da opinião pública”.[3] Ou seja, “pós-verdade” é essa situação em que os debates políticos se transformam em discussões emocionais, demagogas, sem que a realidade concreta importe tanto.

Para a difusão da pós-verdade há um vetor fundamental: o advento das mídias digitais. As novas possibilidades tecnológicas minaram o poder de influência da imprensa tradicional e das fontes centralizadoras de explicação do mundo. Em especial os conglomerados dos meios de comunicação — que desde sempre estão atrelados ao poder — passaram a perder sua capacidade de manipulação da opinião pública, com a proliferação de blogs, canais no YouTube, fóruns de discussão on-line, “memes”, listas de transmissão em aplicativos de mensagens por smartphones.

Mas as implicações dessas novas tecnologias vão além da drenagem de poder da grande mídia e da capacidade de realizar imensas mobilizações sociais. As novas mídias fragmentam de tal modo o conhecimento, os dados e as percepções que viabilizam o crescimento da “pós-verdade” e da política “pós-factual”, isto é, debates políticos menos atrelados aos fatos e mais ligados aos achismos, às circunstâncias efêmeras e à falta de rigor conceitual. Os cidadãos passam a cercar-se e a munir-se apenas das informações, opiniões e “narrativas” que os agradem. Porém, as “guerras de narrativas” aniquilam a possibilidade de diálogos produtivos pois são meros monólogos simultâneos. Isso é problemático porque a participação de múltiplos grupos sociais no debate das ideias, propostas e caminhos para o país é o cerne da democracia.

A democracia se distingue justamente por ser o sistema político no qual o povo participa das decisões. Por definição, sem diálogo não existe política ou democracia, apenas politicagem e demagogia. Assim, o desinteresse ou a incapacidade em deliberar os rumos da nação com os diversos atores da sociedade, especialmente por parte dos detentores do poder, desemboca cedo ou tarde em clima autoritário. Fatores como a ausência de um programa claro de governo, improvisos recorrentes na gestão pública e oposição desqualificada e igualmente indisposta a dialogar, abrem cada vez mais espaço para a demagogia nas democracias. Frank Cunningham afirma:

[…] isso torna possível não somente a demagogia do tipo frequentemente aspirado por políticos populistas, mas também autoritarismo mascarado de democracia […] Demagogos são especialistas ao tomar vantagem cínica desses aspectos da democracia, e os populistas autoritários usam-nos para justificar o governo autoritário.[iv]

O Brasil vivencia seu mais longevo período democrático – mesmo com dois impeachments presidenciais. Mas a história não deixa dúvidas de que democracias são frágeis. E como disse Timothy Snyder: “a pós-verdade é o pré-fascismo”.[5]

Notas:

[1] Tzvetan Todorov. O espírito das Luzes. São Paulo: Barcarolla, 2008, p. 88.

[2] Op. cit., 2008, p. 95.

[3] English Oxford Dictionaries. Post-truth. Disponível em: <https://en.oxforddictionaries.com/word-of-the-year/word-of-the-year-2016>. Acesso em: 19 de fev. de 2017.

[4] Frank Cunningham. Teorias da democracia. Porto Alegre: Artmed, 2009, p. 30-31.

[5] Timothy Snyder. Sobre a tirania: Vinte lições do século XX para o presente. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, p. 69.

Davi Lago

Davi Lago é Mestre em Teoria do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e autor de Brasil Polifônico.