Literatura

Quem se importa com Machado de Assis?

por Hudson Caldeira

A excelente nova tradução de Memórias Póstumas de Brás Cubas, feita por Flora Thomson-DeVeaux e publicada nos Estados Unidos sob o selo Penguin Classics, tornou-se imediatamente um sucesso de vendas. O triunfo editorial de Machado de Assis (e de sua tradutora) nos EUA teve grande repercussão no Brasil, com direito a matérias de imprensa, artigos e entrevistas. A primeira tiragem da nova tradução se esgotou em apenas um dia, fato comentado com grande entusiasmo por meus amigos leitores, alguns dos quais o pintavam como uma vitória de Davi contra Golias, ou como a conquista brasileira de um campeonato de futebol.

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The Posthumous Memoirs of Brás Cubas, da Penguin Classics, na tradução de Flora Thomson-DeVeaux

Li a nova tradução do Memórias Póstumas com calma, ao longo das últimas semanas — em formato digital, porque seu sucesso de vendas tornou difícil obter um exemplar físico ainda no começo de junho. Tudo o que eu esperava era uma tradução competente, como têm sido outras de Machado para o inglês nos últimos anos. Para minha surpresa, o trabalho de Thomson-DeVeaux excede imensamente essas expectativas. Não é exagero afirmar que esse Brás Cubas em inglês será um marco na história da obra, o que se deve não tanto ao fato de ter se tornado um best-seller, mas à qualidade da tradução e de seu aparato crítico. Além de ampliar, no espaço e no tempo, o alcance de ressonância de um dos melhores romances já escritos em língua portuguesa, a tradução lança nova luz, inclusive para leitores brasileiros, sobre aspectos menos evidentes do original.

Embora minha intenção fosse escrever uma resenha, este texto acabou se tornando, também, uma pequena reflexão sobre a recepção da literatura brasileira no exterior e sobre como ela afeta a nossa autoestima coletiva. No fundo, é um texto sobre o que essa nova tradução representa para nós, leitores brasileiros, nos dias de hoje.

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I.

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“Ouço daqui uma objeção do leitor: — Como pode ser assim, diz ele, se nunca jamais ninguém não viu estarem os homens a contemplar seu próprio nariz?”

Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas, Capítulo XLIX

Machado de Assis (Reprodução: Arquivo Nacional)

Machado de Assis, como a literatura brasileira em geral, é pouco conhecido no exterior. Esse fato causa perplexidade não somente a brasileiros, mas também a alguns críticos estrangeiros que, como Harold Bloom, consideram Machado um dos maiores ficcionistas da literatura mundial. O Bruxo do Cosme Velho é um quase desconhecido inclusive entre nossos vizinhos falantes de espanhol na América do Sul.

É curioso como certos autores, certas obras, ou mesmo gerações inteiras de escritores de certo país se tornam mundialmente conhecidos, enquanto outros parecem acorrentados a sua língua materna. A literatura brasileira não é a única “injustiçada”; muitas outras têm também seus gênios desconhecidos. Não é fácil explicar, por exemplo, por que a grande epopeia de Dante Alighieri é tão mais conhecida, traduzida e lida que as magníficas epopeias do iraniano Ferdusi ou de Luiz de Camões. Tampouco é fácil explicar por que nosso maior romancista é tão pouco lido fora do Brasil. Ainda assim, arrisco dizer que duas razões podem ter sido preponderantes para limitar, ao longo das décadas, o alcance de Machado de Assis no exterior: uma linguística, outra contextual.

A primeira diz respeito ao fato de Machado ter escrito em português, língua de alcance  relativamente limitado. Enquanto eu escrevia este texto, um bom amigo me recomendou a leitura do ensaio “An Exact Art”, de George Steiner. Nesse ensaio de 1982, em que fala principalmente sobre a ética da tradução, Steiner menciona o fato de terem poucos tradutores os romances brasileiros:

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“A presença nos Estados Unidos de um punhado de tradutores talentosos e produtivos do espanhol foi decisiva para dar à ficção e ao verso latino-americanos sua incandescente elevação recente. Concomitantemente, a relativa escassez de tradutores do português significou que o romance brasileiro (julgado por observadores competentes como capaz de rivalizar a prodigalidade colombiana, mexicana, venezuelana ou argentina) passou em grande parte despercebido”.

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George Steiner

O português tem, relativamente, poucos tradutores no exterior. É quase paradoxal que uma das línguas mais faladas do mundo (atualmente a sexta em número de falantes nativos) tenha projeção internacional limitada. Mas o fato é que, embora nove países tenham o português como língua oficial, a grande maioria dos falantes nativos (quase nove entre dez) está em apenas um deles: o Brasil, cujo mercado editorial é pequeno. Além disso, o português é pouco estudado como segunda língua se comparado, por exemplo, ao espanhol. Essa dificuldade era ainda maior quando Machado escreveu o Brás Cubas, no fim do século XIX. Ainda hoje, o fato de ser o português pouco estudado contribui para limitar a disponibilidade de bons tradutores, além de diminuir as chances de que editores e críticos estrangeiros (e mesmo os jurados dos principais prêmios literários) sejam capazes de ler obras brasileiras em sua língua original.

A barreira linguística é parte da resposta, mas não é suficiente para explicar o sucesso limitado de Machado fora do Brasil. A primeira tradução do Memórias Póstumas para o inglês tem quase sete décadas, mas em todo esse tempo, e apesar de traduzido outras vezes, o livro nunca tinha alcançado vendas expressivas ou causado grande alvoroço. Tampouco tiveram sucesso estrondoso outras traduções de seus romances e contos para o inglês, apesar de críticas favoráveis. Assim, embora bons tradutores da língua portuguesa constituam pré-condição para que autores brasileiros alcancem o sucesso internacional, sua mera existência não é suficiente. Existe ainda outra barreira persistente, de natureza contextual.

Susan Sontag, grande admiradora da obra de Machado, escreveu que o patrono das letras brasileiras seria mais conhecido se não tivesse passado sua vida inteira no Rio de Janeiro (entenda-se: um lugar muito distante dos grandes centros ocidentais no século XIX). A observação de Sontag pode parecer superficial à primeira vista, mas alude ao problema de como o contexto pode dificultar a recepção da literatura brasileira no exterior. A fruição da literatura é sempre um ato comparativo, que pressupõe atribuir à obra lida um contexto; o leitor a relaciona com seu conhecimento prévio para posicioná-la, ainda que de maneira vaga, na paisagem cultural mais ampla que já conhece. Mesmo para os padrões latino-americanos, o Brasil é um país complexo, de difícil compreensão. É natural, para um leitor brasileiro, relacionar a obra de Machado a seus contextos literário, social e cultural. Mas para um leitor estrangeiro, que não conheça o Brasil, isso pode ser quase impossível.

Susan Sontag

Os aspectos mais conhecidos do Brasil no exterior têm pouco ou nada em comum com a sociedade retratada nos romances de Machado — quando não são inteiramente fantasiosos. Estrangeiros que esperassem encontrar o Brasil de florestas místicas e serpentes devoradoras de gente descobririam que nada disso existe em suas páginas. Seus romances e contos são quase sempre sobre a classe alta do Rio de Janeiro, não tão diferente da classe alta de São Petersburgo na mesma época ou dos americanos ricos retratados por Henry James. Mas se a sociedade mostrada por Machado encontrou pouca ressonância no exterior, tampouco fizeram sucesso internacional os romances “indianistas” de José de Alencar — provavelmente por outros motivos, mas talvez porque nem mesmo o Brasil das florestas místicas fosse uma ideia muito difundida no exterior.

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Casa do Cosme Velho, número 18; nesta residência, Machado de Assis e Carolina viveram grande parte da vida (Arquivo Nacional)

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O problema do contexto pode ser ilustrado por meio de uma comparação com o êxito internacional da ficção russa — de cujos mestres Machado foi contemporâneo (Os Irmãos Karamazov, por exemplo, foi publicado apenas um ano antes de Memórias Póstumas). É verdade que os russos tiveram boas traduções para o francês já no século XIX; Ary Quintella, em seu texto A Vitória, comenta que a primeira tradução de Guerra e Paz para o francês foi feita por uma russa, a condessa Irina Paskevitch, e publicada em 1879. Mas a questão essencial é que mesmo antes das traduções já havia, na mente dos franceses, algum contexto com que imaginar a sociedade russa. O trauma da campanha de Napoleão contra o Tsar teve, como um de seus efeitos duradouros, o de tornar mais presente para o público francófono certa ideia da Rússia, colorida por frios invernos, sons da balalaica e chá no samovar… A despeito da distância geográfica entre São Petersburgo e Paris, os franceses tinham muitos elementos, fantasiosos ou não, com que contextualizar as personagens fortes da ficção russa. Assim, o fato de serem Tolstói, Dostoiévski e Turguêniev autores estrangeiros, em uma língua difícil e de um país distante, não impediu que fossem avidamente lidos na França e, posteriormente, em todo o mundo.

Teria Machado se tornado mundialmente famoso se fosse russo? Sontag parece ter acreditado que sim; eu acho impossível dizer. Pensemos, por exemplo, em Ivan Gontcharóv, autor importante em seu país, considerado escritor de primeira ordem por Dostoiévski e Tchekhov, que ao fim da vida se ressentia por não ter feito sucesso na Europa. Gontcharóv culpou Turguêniev por seu insucesso fora da Rússia, mas seus argumentos não são muito convincentes. A verdade é que não há uma razão clara para Gontcharóv não ter feito sucesso no Ocidente ainda em vida; um motivo qualquer, ou mesmo um simples acaso, pode ter influenciado os destinos de seus livros. Fatores como o momento da publicação (ou da tradução), encontros fortuitos entre editores, ou mesmo uma única crítica escrita por figura célebre… Todos podem ser decisivos. Deixando de lado essas variáveis, o que podemos supor é que, se fosse russo, Machado provavelmente teria sido traduzido ainda no Século XIX e muito mais portas teriam sido abertas para sua obra. Em todo caso, esse é um exercício de imaginação inútil: afinal, se tivesse sido russo, não teria sido Machado.

Ivan Gontcharóv

Essa longa digressão sobre as barreiras invisíveis que dificultam, há mais de um século, a popularização de nossa literatura fora do Brasil não é sem propósito. Anteriormente, Memórias Póstumas de Brás Cubas teve três traduções para o inglês, publicadas em 1952, 1955 e 1997. Nenhuma delas fez de Machado um autor conhecido nos países anglófonos. Será diferente com a nova tradução? A cobertura por ela recebida na imprensa brasileira parece insinuar que sim. De fato, não é todo dia que um brasileiro (ainda mais um romancista do século XIX) é levado à posição de best-seller no exterior. O caminho que se faz é normalmente o inverso: hoje em dia, a maior parte das vendas de ficção no Brasil corresponde a best-sellers traduzidos do inglês. Sob esse ponto de vista, o presente sucesso do Brás Cubas talvez pareça quase tão incrível quanto as vitórias do gaulês Asterix, herói das histórias em quadrinhos francesas, contra as legiões comandadas por Júlio César. Na vida real, a Gália foi conquistada pelos romanos no século I a.C., e nada indica ter havido, naquele tempo, algo similar à aldeia gaulesa inexpugnável de Astérix le Gaulois. Mas há algo de estimulante nessas histórias em que heróis improváveis conquistam uma vitória impossível. Entusiasmados, nos alegramos com o sucesso de vendas da nova tradução como se fosse uma surpreendente virada de jogo. Mas ainda não se sabe se a nova tradução poderá fazer de Machado um autor de fama internacional. Caso possa, cabe perguntar o que torna a nova tradução diferente das anteriores, que não puderam fazê-lo.

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II.

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[…] a gente grave achará no livro umas aparências de puro romance, ao passo que a gente frívola não achará nele o seu romance usual; ei-lo aí fica privado da estima dos graves e do amor dos frívolos, que são as duas colunas máximas da opinião.”

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Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas, Ao Leitor

Machado de Assis c. 1905, pintado por Henrique Bernardelli

É interessante pensar sobre Memórias Póstumas de Brás Cubas como o objeto de um processo tradutório. Por um lado, a prosa de Machado de Assis não é particularmente difícil em termos gramaticais, especialmente se comparada à de outros romancistas brasileiros do Século XIX. Por outro, a leitura aparentemente fácil pode ser enganosa, pois Machado explora continuamente, na narração oblíqua, os sentidos evidentes e ocultos de palavras, ideias e ações.

Frente ao difícil quebra-cabeça, Flora Thomson-DeVeaux mostra ser uma tradutora extraordinária. A qualidade de sua tradução é aparente não apenas nas inúmeras escolhas acertadas de vocabulário e sintaxe, mas também nas numerosas notas que produziu para a edição. Concentradas ao fim do volume (para não poluir o corpo do texto), as notas oferecem informações preciosas para entender facetas menos evidentes do Brás Cubas e dão pistas sobre o processo criativo de seu autor.

A fidelidade é a questão fundamental para a tradução de literatura. Naturalmente, traduzir literatura é muito diferente de traduzir textos técnicos ou científicos. Uma tradução literária excepcionalmente boa não apenas transpõe o texto traduzido: ela colabora, de certa forma, com o original, trabalhando com os elementos significativos não evidentes do texto, entre eles seus pontos de contato com outros textos. No ensaio “An Exact Art”, que citei há pouco, Steiner comenta o propósito de uma tradução escrupulosa:

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“Recriar o que fora criado para afirmar, para enunciar sua primazia, sua antiguidade de essência e de existência, recriá-lo de maneiras que acrescentem qualidade presente à presença, que preencham o que já está completo: esse é o objetivo da tradução responsável”.

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Conheço pouco as outras traduções de Memórias Póstumas de Brás Cubas para o inglês: a única que li foi a de Gregory Rabassa, publicada em 1997 — uma boa tradução, bastante fiel ao texto de Machado. Considero que, vista de perto, a tradução de Thomson-Deveaux está ainda mais perto do original que a de Rabassa. Cito, por exemplo, o esforço de Thomson-Deveaux para preservar ambiguidades do original, inclusive quando parecem ser pouco importantes. Um exemplo, entre muitos outros, está no Capítulo XV, “Marcela”. Ao admitir que seu crucifixo tinha sido presente de outro amante, “Marcela abanou a cabeça com um ar de lástima.” Em nossa cultura, os movimentos de cabeça podem ser significativos — indicando gestos afirmativos ou negativos —, mas abanar a cabeça é ambíguo. Na tradução de Rabassa, a espanhola “shook her head with a look of pity”, indicando claramente um gesto de negação. Thomson-Deveax traduz o trecho como “Marcela wagged her head with an air of pity”. O verbo to wag, é, assim como o original abanar, usado para descrever o movimento que fazem cachorros com seus rabos. Sua principal qualidade aqui é descrever , assim como o verbo no original, um movimento impreciso.

Flora Thomson-Deveaux (Reprodução: Princeton University)

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É ingênuo, em literatura, equiparar a fidelidade à ideia de uma “tradução literal”. Não são raras as traduções anódinas que têm a literalidade como seu ponto de chegada; nas boas traduções, entretanto, o abandono responsável da literalidade é, às vezes, um procedimento necessário para evitar a perda de características expressivas do original. Tomo como exemplo o título do Capítulo V: “Em que aparece a orelha de uma senhora”. Obviamente, o título não deve ser tomado de maneira literal. Nenhuma orelha aparece de fato no capítulo, em que é revelado terem se amado, “muitos anos antes”, essa senhora e o Brás Cubas. Thomson-Deveaux liga o sentido do título à expressão francesa “montrer le bout de l’oreille”, que significa algo como “revelar seus verdadeiros sentimentos ou intenções”. O decalque da expressão francesa pode ter sido de fácil identificação pela elite carioca do século XIX — geralmente francófila —, mas não dirá nada à grande maioria dos leitores contemporâneos nos EUA, ou mesmo no Brasil. Tendo identificado o sentido do título do capítulo, a tradutora dá a ele o nome de “In which a lady betrays herself”. Sobre o trabalho de pesquisa que informou sua tradução do Memórias Póstumas, em especial quanto ao uso de certos termos do século XIX, a tradutora escreveu um interessante artigo, com o título “A gestação do menino diabo”.

Há no Brasil edições escolares anotadas dos romances de Machado, mas suas notas são, em geral, explicações para alguns vocábulos — úteis para estudantes mais jovens, mas de pouco proveito para quem esteja familiarizado com o português de Machado. Por sua vez, as notas de Thomson-Deveaux são, na maioria das vezes, interessantes também para um leitor brasileiro que já leu o Memórias Póstumas. Considero muito úteis os comentários da tradutora sobre referências literárias, lugares, economia (uma das primeiras notas da edição explica quanto valiam, afinal, 300 contos de réis) e outros temas. Cito, como exemplo, uma nota ao Capítulo XCII, “Um homem extraordinário”. Nesse capítulo, se faz menção a certo “despotismo temperado, — não por cantigas, como dizem alhures,  mas por penachos da guarda nacional”. A referência a “despotismo temperado por cantigas” nunca fora clara para mim até que li a nota de Thomson-Deveaux, em que explica tratar-se de alusão às “Mazarinades”, versos satíricos cantados contra os impostos criados pelo Cardeal Mazarino na França do século XVII. A tradutora incluiu também algumas notas de crítica textual, sobre as alterações feitas pelo próprio Machado ao romance entre suas diferentes edições; achei essas últimas, em especial, fascinantes.

Comentei há pouco o problema contextual enfrentado pela literatura brasileira no exterior. As notas desta edição não suprem a quase completa falta de informações sobre o Brasil entre o público anglófono, mas fazem muito para aliviar o problema. Há uma nota ao Capítulo V que explica o significado de “macróbios”, raça lendária de indivíduos muito longevos mencionada por Heródoto. Embora o adjetivo ‘macróbio’ seja dicionarizado em português (no Houaiss, como “aquele que chegou à idade muito avançada”), “Macrobian” não é usado dessa forma em inglês. No Brasil existe, inclusive, um termo derivado, “macrobiótica”. A nota sobre “macróbios” pode ser dispensável para o brasileiro que disponha de um dicionário, mas é certamente necessária para um leitor anglófono.

Para mim, voltar ao Memórias Póstumas munido dos comentários da tradutora foi uma experiência valiosa. É engraçado pensar sobre como os comentários de seus tradutores podem contribuir para a forma como lemos Machado de Assis no Brasil. O exemplo mais conhecido desse fenômeno está em Dom Casmurro, traduzido para o inglês no começo dos anos 50 pela americana Helen Caldwell. Depois de traduzir o romance, Caldwell foi a primeira a escrever (no estudo “The Brazilian Othello of Machado de Assis”, de 1960) que, talvez, Capitu não tivesse realmente traído Bento Santiago, marido ciumento e narrador não muito confiável. Capitu, antes acriticamente condenada por comentadores brasileiros, nunca mais foi lida da mesma maneira. A contribuição de Thomson-Deveaux para o Brás Cubas é mais sutil, mas, ainda assim, significativa; jogando luz sobre tantos pontos do romance, ela dá nova vida ao original.

Helen Caldwell (Foto: UCLA Library Special Collections)

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Nem todo leitor se interessa por notas, contudo, por melhores que sejam. Se julgamos a nova edição apenas pelo corpo do texto, a tradução de Thomson-Deveaux, embora melhor que a de Rabassa, não é tão diferente dela a ponto de revelar um Machado de Assis “inteiramente novo” em inglês. Podemos nos perguntar se as qualidades da nova tradução serão o suficiente para finalmente dar a Machado a fama internacional que ele merece.

O sucesso inicial de vendas da nova tradução é notável: Memórias Póstumas se tornou um dos livros de ficção latino-americana mais vendidos nos EUA em 2020. Não há dúvida de que, com a nova tradução, Machado fica mais conhecido fora do Brasil, por mais leitores e também por mais críticos e editores — e não apenas nos EUA. Quando Machado escreveu o Brás Cubas, no fim do século XIX, o inglês já era uma língua de grande projeção, em grande parte devido ao poderio militar e econômico do Império Britânico. Desde o século XX, contudo, o poder relativo da língua tornou-se ainda maior, agora com sotaque americano. Os meios de comunicação em massa e a poderosa indústria cultural dos EUA contribuíram para levar o inglês à condição de língua franca mundial — com um alcance que supera em muito o que tiveram no passado o francês ou o latim. Nenhum leitor jamais saberá número suficiente de línguas para toda a ficção que gostaria de ler — e para muitos leitores na Índia, no Egito, ou na Dinamarca, traduções para o inglês de línguas que desconhecem, como o português, são muitas vezes a melhor solução disponível.

Apesar disso, a tradução de Flora Thomson-DeVeaux não deve mudar, por si, o status de Machado de Assis como um gênio menos conhecido da literatura mundial. Ainda que tenham sido vencidas algumas das barreiras que dificultavam, há mais de um século, a passagem bem sucedida de Machado para o exterior, há hoje outros fatores que inibem sua recepção por leitores ocasionais fora do Brasil: a hiperconectividade e consequente erosão da atenção, a substituição inexorável dos momentos de silêncio solitário em leitura pelo fluxo constante de informações nas culturas de consumidores digitais, as renovadas pressões pelo “uso produtivo” do tempo ocioso — é inteiramente compreensível que poucas pessoas, no mundo atual, tenham tempo, ou energia, para consumir literatura que não seja conceitualmente leve e formalmente convencional. Assim, é muito improvável que Machado se torne no futuro próximo um nome reconhecido por leitores ocasionais fora do Brasil. O que é certo é que sua obra se tornará mais conhecida entre literatos e especialistas, nos EUA e em outros países; de fato, talvez nunca antes tantos fora do Brasil tenham lido, ao mesmo tempo, um romance de Machado de Assis.

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III.

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“Deixa lá dizer o Pascal que o homem é um caniço pensante. Não; é uma errata pensante, isso sim. Cada estação da vida é uma edição, que corrige a anterior, e que será corrigida também, até a edição definitiva, que o editor dá de graça aos vermes”.

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Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas, Capítulo XXVII

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Machado de Assis, em sua imagem clássica colorida pelo Projeto Machado de Assis Real

A nova tradução do Memórias Póstumas dificilmente levará o patrono das letras brasileiras ao mainstream internacional. Mas que importância tem, para nós, Machado de Assis ser ou não ser conhecido no exterior? O reconhecimento de Machado pouco afeta nossa existência cotidiana, mas nenhum de nós existe apenas como indivíduo; vivemos também vitórias e derrotas coletivas, pelas quais sofremos e nos alegramos. E as experiências coletivas não são todas iguais. Nos esportes, uma vitória brasileira é comemorada não importa quem sejam os atletas que vestem, naquele momento, a camisa do Brasil. Na literatura nem sempre é assim. Paulo Coelho é de longe o escritor brasileiro mais lido em todo o mundo, mas seus recorrentes sucessos internacionais não são tão comemorados, no Brasil, quanto tem sido o sucesso de vendas do novo Memórias Póstumas.

Arrisco dizer que comemoramos o sucesso de Machado de Assis porque ele é um de nossos clássicos — na verdade, o maior clássico da literatura brasileira. Não sei se é claro o que quero dizer com isso — a palavra “clássico” pode ser um pouco escorregadia. Nos dicionários, clássico é o “que serve como modelo ou referência”; o que “está de acordo com os cânones estabelecidos” ou que é “tradicional”. Essas definições carregam algumas conotações que mais atrapalham do que ajudam: há quem entenda que um clássico deve ser um “modelo ou referência” também em sentido moralizador (e se for assim, o que fazer, por exemplo, com o caso extraconjugal entre Virgília e Brás Cubas, um dos relacionamentos mais interessantes do Memórias Póstumas?). Por sua vez, a noção de “cânones estabelecidos” liga os clássicos à ideia de algo elitista, uma associação que, infelizmente, está de fato na origem do termo: em latim, o adjetivo classicus era derivado de classis (classe social) — e classicus era aquilo que era “próprio da classe mais alta da sociedade romana” (a associação semântica entre “clássico” e “antigo” é bem posterior). Menciono essas concepções apenas para afastá-las. Neste texto, quando digo que certos autores são nossos clássicos, o que quero dizer é que são autores relevantes, que informam a vida interior de cada leitor brasileiro de ficção: peças fundamentais de nossa bagagem literária — ainda que não sejam as únicas.

Uma tradução bem sucedida de um de nossos clássicos nos importa por causa da centralidade desses autores em nossa experiência como leitores; e porque desejamos ter, inclusive fora do Brasil, a nossa existência interior reconhecida. Ilustro esse sentimento com um trecho do conto O Espelho, do próprio Machado, em que o narrador diz:

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“Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro… […] Quem perde uma das metades, perde naturalmente metade da existência; e casos há, não raros, em que a perda da alma exterior implica a da existência inteira.”

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A pergunta “Quem se importa com Machado de Assis?” parecia respondida já no primeiro parágrafo deste texto: se comemoramos o sucesso de vendas de nosso grande romancista no exterior, é evidente que nos importamos com Machado — ou será que não? Volto à ideia das duas almas, “uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro…” Escrevi algumas linhas sobre a alma que olha de dentro para fora: o anseio de sermos percebidos, externamente, como uma sociedade culta com uma literatura rica. Não posso terminar sem falar um pouco também sobre nossa outra alma, que olha no sentido inverso. Quem somos nós quando olhamos para dentro?

É doloroso admitir, mas talvez sejamos uma sociedade que não se importa realmente com sua própria literatura. Nossas bibliotecas passam por dificuldades ao mesmo tempo em que livrarias se extinguem. Cuidamos de nosso passado com descaso. É muito comum, ao redor do mundo, transformar as casas de escritores célebres em museus. Machado é muito associado ao bairro Cosme Velho, no Rio, onde viveu o fim da vida e escreveu boa parte de sua obra, inclusive os romances Quincas Borba, Dom Casmurro, Esaú e Jacó e Memorial de Aires. Mas a casa de Machado no Cosme Velho não existe mais. Foi demolida para dar lugar à construção de um condomínio residencial. E muito pior do que o descaso com o passado é aceitarmos também a destruição de nosso futuro. Machado de Assis era, no começo da vida, uma criança de pele negra, filha de trabalhadores pobres. Podemos nos perguntar, supondo que esse jovem Machado vivesse hoje, se ele sequer teria as condições mínimas para crescer e se tornar um escritor.

Há 14 anos, no começo de minha vida adulta, uma colega de trabalho americana me viu lendo um livro qualquer durante minha pausa para o almoço. Em tom amigável, mas meio condescendente, ela me perguntou: “Vocês têm algum escritor famoso no Brasil?” Ora, claro que sim! Mencionei logo Machado de Assis, falei de sua prosa irônica e inteligente… Mas vi, por sua expressão, que eu soava para ela como como um provinciano que defendia, com zelo excessivo, um autor menos importante, do qual ela nunca ouvira falar. O problema que eu deveria ter notado, já na pergunta da colega, era seu pressuposto: ela não pressupunha ter o Brasil uma literatura rica, mas por ela desconhecida. Ela pressupunha a inexistência de algo como a literatura brasileira.

Com sua admirável tradução do Memórias Póstumas de Brás Cubas, Flora Thomson-DeVeaux nos faz um favor. Ver um clássico brasileiro ser apreciado no exterior faz bem a nossa autoestima coletiva. Pelas mesmas razões, sermos lembrados do quase completo desconhecimento de nossa literatura pode gerar, em nós, uma pontinha de insegurança. Será que temos uma literatura menor, uma literatura menos inspirada se comparada à de outros países? É claro que não. Uma literatura que tem Machado, Guimarães Rosa e Clarice Lispector (além de poetas da qualidade de Manuel Bandeira e João Cabral) é sem dúvida uma boa literatura, que pode olhar de cabeça erguida para qualquer outra. E a nossa literatura não é como a de uma civilização perdida, com grandes obras, mas presa ao passado: não temos apenas clássicos, mas também excelentes autores vivos e escrevendo hoje.

O sucesso de vendas do novo Memórias Póstumas de Brás Cubas em inglês é uma validação externa muito bem vinda de nossas letras, e é comemorado com razão. Mas a validação externa não é tudo. Espero que este momento de orgulho nos permita também olhar para dentro e refletir sobre a relação que queremos ter, no Brasil, com nossa literatura — e com nossos autores do passado, do presente e, talvez especialmente, do futuro.

Intelectuais, estudantes, amigos e admiradores, entre eles Euclides da Cunha, saem da ABL conduzindo o caixão de Machado até o Cemitério São João Batista, 1908 (Acervo ABL)

P.S. Em junho de 2020, Memórias Póstumas de Brás Cubas ganhou não uma, mas duas novas traduções para o inglês, algo realmente extraordinário. A primeira, publicada em 3 de junho, foi a tradução anotada de Flora Thomson-DeVeaux, que comentei ao longo deste texto. A segunda, publicada em 16 de junho, foi feita a quatro mãos por Margaret Jull Costa e Robin Patterson, que também traduziram, há dois anos, a coletânea The Collected Stories of Machado de Assis, bem recebida pela crítica. Certamente, nunca antes tantos leram, a um só tempo, um romance de Machado fora do Brasil.

Hudson Caldeira

Hudson Caldeira é diplomata de carreira e bacharel em Letras (latim) pela UFMG.