Política

A agenda pós-pandemia: cinco itens

por José Eduardo Faria

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Quando a pandemia da Covid-19 chegou à Europa no começo de 2020, vários países europeus enfrentaram as consequências das políticas de austeridade fiscal impostas por governos ultraliberais, dada a obsessão em assegurar a solvência estatal e o desprezo à definição de prioridades no campo social.

Por um lado, os sistemas de saúde desses países haviam sido minados pela conversão de atividades essenciais do poder público em serviços ou negócios privatizados. Por outro, apesar da tragédia humanitária, vários ministros da economia resistiram às propostas de revisão das funções do Estado e à adoção de medidas emergenciais de expansão de gastos, reafirmando mais uma vez as virtudes de uma economia de mercado liberta de todo e qualquer constrangimento jurídico. Ou seja, defendendo uma economia desregulamentada, onde a regra é a exploração ilimitada da conjuntura, com os agentes tentando maximizar todas as vantagens possíveis de curto prazo ao mesmo tempo em que fazem vistas grossas a suas responsabilidades para com os outros e para a comunidade.

O mesmo que ocorreu naqueles países europeus aconteceu no Brasil. No segundo semestre de 2019, a Lei 13.874, originariamente proposta pelo governo por meio de medida provisória com o objetivo de assegurar a “liberdade econômica”, e que parece ter sido escrita por um gestor de fundo de investimento e não por um ocupante de um cargo público, afirmava que no exercício das atividades econômicas o Estado teria somente uma intervenção “subsidiária” e “excepcional”. Tanto o texto quanto seu espírito colidem frontalmente com a Constituição, que, de modo taxativo, define o Estado como agente normativo e regulador da atividade econômica, atribuindo-lhe, entre outras, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento.

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Paulo Guedes (Foto: Wilton Jr./Estadão)

São concepções excludentes sobre o papel do Estado. Ao partir da premissa de que governar é cortar gastos, deslegalizar e privatizar, o viés programático ultraliberal da Lei 13.874/19 na prática tende a corroer a distinção entre o público e o privado. No limite, é como se submetesse o primeiro ao segundo, esquecendo-se de que as ideias de interesse público e bem comum vão muito além da simples interação entre ações privadas. Na hierarquia das leis, contudo, é inadmissível que qualquer MP esteja acima da Constituição. E a Constituição brasileira, apesar das críticas que sempre recebeu, tem o mérito de explicitar que política pública e gestão privada podem ter objetivos e valores distintos, ainda que os critérios de eficiência e competência sejam essenciais nos dois tipos de ação. Também deixa claro que um programa econômico — independentemente de ser social-democrata ou liberal— não pode ser implementado e executado fora dos marcos normativos postos pelo Estado, marcos esses que na ordem jurídica do mercado envolvem os direitos das obrigações contratuais, do consumidor, da concorrência e regulatório.

Ulysses e a Constituição (Arquivo ABr)

Neste momento em que o mundo inteiro começa a discutir uma agenda para a retomada do crescimento pós-pandemia, custa crer que a equipe econômica do governo brasileiro, presa a um dogmatismo fiscal e incapaz de compreender a necessidade de um Estado ativo e indutor para que os mercados voltem a funcionar em tempos de crise, mais uma vez esteja desprezando formas de cooperação e o diálogo social entre empregadores e empregados. Não teve criatividade — e, principalmente, vontade — de formular uma rede de proteção social de emergência. Também voltou a tentar restringir por meio de simples decretos e MPs a ordem jurídica do mercado, inclusive afrontando a hierarquia das leis. Está, novamente, aproveitando as dificuldades econômicas causadas pela pandemia para retomar ideias antigas, como, por exemplo, (a) promover cortes de servidores públicos, e com isso comprometendo a burocracia profissional do Estado em tempos de crise,  (b) privatizar o ensino público, convertendo-o em mercadoria ofertada por grupos privados com ações negociadas em bolsa, (c) reduzir ainda mais os direitos trabalhistas, a ponto de cogitar a contratação de trabalhadores com baixa proteção jurídica sob a justificativa de minimizar o alcance do desemprego, (d) promover uma abertura econômica radical num mundo em que a pandemia está levando os Estados nacionais a reduzir cooperação internacional baseada num liberalismo extremo, voltando a atenção às demandas locais e regionais, às normas trabalhistas e à proteção do meio ambiente, e (e) recriar um imposto sobre movimentações financeiras cobrado tanto nos pagamentos quanto nos recebimentos — um tributo que, por seus efeitos em cascata,  prejudica as cadeias de produção longa, distorce os valores de bens e serviços e piora o já ineficiente sistema tributário brasileiro.

Quando a Covid-19 passar e o país tomar consciência da distância entre os problemas socioeconômicos por ela acarretados e a efetividade das leis em vigor, o ultraliberalismo da equipe econômica do atual governo terá de voltar para as gavetas de onde jamais deveria ter saído e a rediscussão do papel do Estado nacional e dos direitos estará na ordem do dia. A meu ver, cinco pontos são essenciais nesse debate.

Em primeiro lugar, não se pode perder de vista que normas, intervenções regulatórias e instituições de direito desempenham papéis essenciais no livre jogo de mercado. São decisivas para preservar a propriedade material e imaterial, assegurar o cumprimento das cláusulas pactuadas entre as partes nos diferentes tipos de contratos antes da pandemia, orientar o processo de reequilíbrio das relações entre os agentes econômicos por negociação direta ou por mediação e coibir o abuso do poder econômico.

Em segundo lugar, em face do crescente desemprego dos trabalhadores menos qualificados, do aumento recorde do trabalho informal e do avanço da pobreza extrema, hoje integrada por 13,8 milhões de pessoas, também não se pode esquecer que pertencer a uma ordem jurídica é, igualmente, fruir do reconhecimento da condição humana. E isso não se confunde com assistencialismo e focalismo. Pelo contrário, exige políticas públicas de caráter social, industrial, ambiental e tecnológico coerentes com a resposta dada durante a pandemia à questão sobre o que era mais sensato e racional à época — gastar para controlar a pandemia ou gastar para compensar uma economia paralisada?

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Complexo da Maré, na zona norte do Rio (Foto: Marcos Arcoverde/Estadão)

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Em terceiro lugar, é preciso recuperar a ideia de planejamento — enquanto processo de distribuição ótima de recursos e meios a partir de objetivos dados, cuja fixação decorre de uma decisão política — e de estratégia de médio e longo prazo. Os tempos em que se discutia se o planejamento limita o exercício da liberdade de iniciativa num determinado período, obrigando uma sociedade a se subordinar a opções políticas tomadas no passado, e se o planejamento compulsório para o poder público e o planejamento indicativo para a iniciativa privada poderiam conviver já ficaram para trás. Eram tempos em que, na elaboração de um planejamento, a administração pública tinha de enfrentar problemas e dilemas que exigiam capacidade de gerir a complexidade social, as interdependências e externalidades negativas, sob condições de baixo grau de qualidade de informações técnicas e estatísticas.

Contudo, ainda que sejam vulneráveis a contingências,  incertezas e efeitos negativos não previstos nem desejados, os mecanismos essenciais à formulação do planejamento e à orientação da construção de políticas públicas melhoraram significativamente nas últimas décadas, graças ao advento de modelos matemáticos, de processos de construção de cenários, de análises de impacto regulatório, de cálculos mais precisos da taxa esperada de retorno de projetos e de técnicas de identificação de riscos  — situações em que possíveis desenlaces de fatos futuros e suas probabilidades podem ser entrevistas ou cogitadas.  E, para a implementação de um plano, a importância da noção de estratégia é óbvia. Como alcançar as metas previstas pelos responsáveis pelo processo de planejamento? De que modo coordenar as ações necessárias à sua consecução? Em que período de tempo? E com que nível de investimento?

Em quarto lugar, é necessário retomar a ideia de que, no Estado moderno, há uma enorme diferença entre o que é função e o que é negócio. A função de planejamento no âmbito do Estado, por exemplo, pressupõe a noção de obrigações e responsabilidade da parte do poder público. Certas atividades estatais podem até ser privatizadas, configurando transferências de negócios para novos controladores. O que já não acontece com as obrigações e com os deveres do poder público, que estão na essência da noção de direitos. Em outras palavras, há certas funções que cabem apenas e tão somente ao poder público — e, se isso for relevado, o privatismo comprometerá a própria razão de ser do Estado.

Por fim, o quinto ponto anda esquecido das discussões sobre políticas públicas, ainda que tenha sido debatido em larga escala nas décadas finais do século passado, no contexto das lutas pela ampliação dos direitos sociais e da igualdade de oportunidades, por políticas de ação afirmativa e correção das desigualdades socioeconômicas — contexto esse que, de algum modo, é o contraponto histórico da contribuição de John Rawls para o que chamava de “justiça como equidade”. Trata-se da tensão estrutural inerente à relação entre capitalismo e democracia representativa. Ambos têm como denominador comum o direito ao exercício da livre vontade, seja ele político — combinando sufrágio universal e garantias fundamentais —, seja ele econômico, envolvendo o direito de cada um de fazer a própria escolha em matéria de negociação de bens, serviços, capital e venda da força de trabalho.

John Rawls

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A tensão decorre do fato de que o capitalismo é um processo cuja força motriz é a continuação de uma acumulação sem fim. É por esse motivo que o ultraliberalismo padrão “guedesiano” defende que a acumulação capitalista seja mantida tão desimpedida quanto possível de restrições legais e constrangimentos determinados por critérios de ordem política. É isso que explica sua obsessão pela desconstitucionalização de direitos e por uma intervenção regulatória estatal de caráter meramente “subsidiária” e “excepcional”, como disse acima.

Já a democracia representativa, por responder a interesses definidos com base no voto universal e na regra de maioria, propicia a imposição de limites à lógica capitalista e ao jogo financeiro, com o objetivo de assegurar algum equilíbrio entre enriquecimento privado e justiça distributiva. Permite, com isso, políticas governamentais destinadas a aumentar a igualdade de oportunidades e a corrigir disparidades sociais — o que, por consequência, aumenta a participação do setor público na economia, alterando a relação entre bens privados e bens públicos, em favor destes últimos.

A partir do voto universal e da regra de maioria, a democracia representativa tem assim uma dimensão igualitária, lastreada no princípio de que todos são iguais entre si. Por seu lado, o capitalismo é marcado pela desigualdade em termos de resultados, uma vez que a acumulação dos vitoriosos no livre jogo de mercado tem como contrapartida a geração de uma legião de derrotados. Desse modo, quando a economia trava, a circulação de riquezas diminui, a receita de taxas e impostos cai, políticas públicas são suprimidas em nome da austeridade fiscal e o caminho para o populismo está aberto. E quando a acumulação de poucos é muita e o exército de desvalidos aumenta, o que se tem é uma plutocracia, cuja insensibilidade aos problemas de exclusão tem como contraponto a defesa implícita de um darwinismo social.

Nos dois casos, como se vê, a democracia sai perdendo. Como fazer com que ela sobreviva? Esse é o desafio da agenda pós-pandemia.

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Prof. José Eduardo Faria

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José Eduardo Faria

José Eduardo Faria é Professor Titular do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).