Artes

Sentimentos Sociais na Arte: A afirmação de si

por Isabelle Anchieta de Melo

“Somente somos grandes quando fiéis a nós mesmos”
Nietzsche¹

Amar-se é o mais difícil de todos os exercícios da alma. Porque aprendemos a nos negar, a priorizar os outros, os filhos, a família, o parceiro, os colegas de trabalho, os amigos. O amor por si, há muito, deixou de ser o que é: um sentimento natural. Há de se empreender um grande esforço para ter-se em conta em uma sociedade que nos ensinou, durante séculos, o sentimento social da culpa, do arrependimento e do pecado, condenando e confundindo o mais forte de nossos instintos humanos com o “vergonhoso” ato narcísico, com o orgulho, com a vaidade e o egoísmo.

Amar-se não é humilhar o outro, não é julgar-se superior. É uma aceitação incondicional de si mesmo, dos seus defeitos. É a capacidade de rir de si, de perdoar-se alegremente. É também um incentivo as nossas forças e talentos. A nossa vontade de potência. E, ao contrário do que se pensa, encontrar a sua paixão, vivenciá-la, expressá-la, pode ser o mais genuíno ato de generosidade social. Porque o seu talento particular é a melhor forma de contribuir com a sociedade, inovando-a e renovando-a técnica e esteticamente falando. É nessa direção que o Zaratustra de Nietzsche reafirma a passagem Bíblica, invertendo as prioridades, dizendo: “Ofereço-me ao meu amor, e ao meu próximo como a mim mesmo”.²

O amor de si, esse impulso primeiro da vida, foi assim domado por um longo aprendizado social. “A luta do ser contra o não ser”.³ O amor ao próximo. Esse belo (e nobre) exercício de pacificação e democratização social que, se não for contrabalançado corretamente, pode ter, como efeito colateral, a negação de si. O ódio. O vazio. A frustração consigo, a falta de sentido, a melancolia, a depressão, a inveja, o ressentimento.

Hoje, a sociedade hedonista aparenta ter reencontrado o prazer de ver representada a sua própria face. Ou o selfie ainda oscila entre a afirmação e a culpa? Entre estar (ou não) no enredamento social?

Neste selfie emblemático, ou mais precisamente dizendo, neste autorretrato, a pintora italiana do século XVII Artemisia Gentileschi avança sobre um quadro que não está ao alcance da nossa visão. Mas podemos curiosamente ver o resultado final. Ela nos oferece a visão dos bastidores do ato que engendra a sua própria imagem. Seus olhos comprimem-se serenamente tentando olhar para o que ela simultaneamente dá a ver a cada pincelada.

Autorretrato como alegoria da pintura, de Artemisia Gentileschi

Uma luz parece emanar do quadro sobre o seu rosto em um jogo de reciprocidades. Ela forma a sua própria imagem, mas as imagens também formam Artemisia, a pintora. Através da arte, ela torna-se a primeira mulher reconhecida em toda Europa, inaugurando uma atividade até então socialmente restrita aos homens. Conquista a estima dos mais nobres personagens de sua época recebendo encomendas importantes. O autorretrato é assim uma dupla maneira de legitimar-se, na medida em que ultrapassa uma mera representação de um reconhecimento, mas também o instaura.

No pescoço, traz um colar com um pingente em forma de uma máscara que parece nos fitar diretamente. Um lembrete incômodo do teatro social, do qual ela mesma está atada. Pois, o que é Artemísia, senão uma representação de uma mulher pintora que se sustenta sobre um conjunto de telas? A alegoria da pintura é também a alegoria do teatro social das identidades, onde somos, sobretudo, imagens.

Afirmar-se é um exercício contínuo (e frágil) de criar uma imagem de si mesmo, para si mesmo e para os outros. Um exercício que exige sempre uma dose de preservação, mesmo de nossos defeitos. Como bem nos aconselha Clarice Lispector — ainda que seja acusada aqui de cometer um anacronismo, onde enxergo o eterno retorno dos sentimentos humanos —, cito um longo trecho de uma de suas cartas. Clarice diz à irmã:

(…) Não pense que a pessoa tem tanta força assim a ponto de levar qualquer espécie de vida e continuar a mesma. Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso – nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro. Nem sei como lhe explicar, querida irmã, minha alma. Mas o que eu queria dizer é que a gente é muito preciosa, e que é somente até certo ponto que a gente pode desistir de si própria e se dar aos outros e às circunstâncias. Depois que uma pessoa perder o respeito de si mesma e o respeito de suas próprias necessidades – depois disso fica-se um pouco um trapo. Eu queria tanto, tanto estar junto de você e conversar, e contar experiências minhas e de outros. Você veria que há certos momentos em que o primeiro dever a realizar é em relação a si mesmo.

(…) Do momento em que me resignei, perdi toda a vivacidade e todo interesse pelas coisas. Você já viu como um touro castrado se transforma num boi? assim fiquei eu…, em que pese a dura comparação… Para me adaptar ao que era inadaptável, para vencer minhas repulsas e meus sonhos, tive que cortar meus aguilhões – cortei em mim a força que poderia fazer mal aos outros e a mim. E com isso cortei também minha força. Espero que você nunca me veja assim resignada, porque é quase repugnante.

(…) Minha irmãzinha, ouça meu conselho, ouça meu pedido: respeite a você mais do que aos outros, respeite suas exigências, respeite mesmo o que é ruim em você – respeite sobretudo o que você imagina que é ruim em você – pelo amor de Deus, não queira fazer de você uma pessoa perfeita – não copie uma pessoa ideal, copie você mesma – é esse o único meio de viver. Eu tenho tanto medo de que aconteça com você o que aconteceu comigo, pois nós somos parecidas. Juro por Deus que se houvesse um céu, uma pessoa que se sacrificou por covardia – será punida e irá para um inferno qualquer. Se é que uma vida morna não será punida por essa mesma mornidão. Pegue para você o que lhe pertence, e o que lhe pertence é tudo aquilo que sua vida exige. Parece uma moral amoral. Mas o que é verdadeiramente imoral é ter desistido de si mesma.

(…) Isso seria uma lição para você. Ver o que pode suceder quando se pactuou com a comodidade de alma. Tenha coragem de se transformar, minha querida, de fazer o que você deseja – seja sair nos week-end, seja o que for. Me escreva sem a preocupação de falar coisas neutras – porque como poderíamos fazer bem uma a outra sem esse mínimo de sinceridade?
Que o ano novo lhe traga todas as felicidades, minha querida. Receba um abraço de muita saudade, de enorme saudade de sua irmã,
Clarice [Lispector] ?

NOTAS
*Trechos deste artigo integram o livro 2 “Maria e Maria Madalena”, da trilogia “Imagens da Mulher no Ocidente Moderno”, Edusp, de minha autoria. O lançamento será no dia 05 de dezembro, com bate-papo com Lília Schwarcz, Maria Arminda do Nascimento Arruda e mediação da jornalista Mônica Waldvogel. Será na Livraria da Vila, Lorena, às 18h30. Mais informações: www.isabelleanchieta.com

[¹] Friedrich Nietzsche, Vontade de Potência, parte 1, 2006, Ed: Escala, p. 68.
[²] Friedrich Nietzsche, Zaratustra, Ed: Martin Claret, 2006, p. 79.
[³] Nietzsche, Vontade de Potência, parte 1, 2006, Ed: Escala, p. 71.
[?] Clarice Lispector, ‘Carta’, em “Correspondências”, de Clarice Lispector. [organização Teresa Montero]. 1ª ed., – Rio de Janeiro: Rocco, 2015.

Isabelle Anchieta de Melo

Isabelle Anchieta de Melo é doutora em Sociologia pela USP, jornalista, mestre em Comunicação Social pela UFMG. Recebeu prêmio como Jovem Socióloga brasileira pela Associação Internacional de Sociologia com apoio da UNESCO.