por Heloisa Pait
A escola pública deve aproveitar o enorme potencial criativo da sociedade brasileira. Nas sociedades modernas, a escola está removida das exigências do dia-a-dia, o que dá espaço para a empreitada educacional e, mais tarde, para o ensino superior e a pesquisa. Entretanto, quando a distância é completa, a escola perde a razão de ser.
Vários fatores contribuem para que tenhamos hoje uma separação indesejada entre o ensino público e a sociedade como um todo. As secretarias de educação, que deveriam servir como ponte entre instituições naturalmente conservadoras e a sociedade em transformação, são de modo geral opacas e burocráticas. O divórcio social entre escolas públicas e privadas significa que pais com formação superior e profissionais liberais dificilmente frequentam a escola pública, resguardando-a de suas demandas e valores.
A regular entrada de novos professores poderia trazer novas idéias à escola, mas o ensino pouco prático das faculdades de pedagogia e cursos de licenciatura reduz essa possibilidade: muitos chegam à escola dispostos a resistir a mudanças, especialmente no que diz respeito a transformações no mundo do conhecimento. Para completar, apesar de iniciativas de valorização do ensino feitas por organizações não-governamentais, dedicamos pouca energia ao debate sobre educação, que compete com outros temas urgentes no diálogo nacional.
Alguns têm proposto a adoção de vouchers e charter schools, seguindo o exemplo americano. Vouchers são créditos públicos para a matrícula em escolas privadas, como o ProUni. Charter schools são escolas privadas apoiadas com recursos públicos, em geral com missões específicas. No Brasil, o governo de Goiás encontra resistências legais para delegar a organizações sociais a administração de escolas públicas. Essas parcerias com o setor privado, segundo seus proponentes, poderiam tornar o ensino mais eficiente, mas estudos sucessivos têm mostrado seu fracasso.
Como, então, integrar nossos alunos a uma sociedade que, mal ou bem, produz, cria, é democrática e dinâmica? Como fazer da escola um lugar interessante, que apresenta desafios reais, que trata os alunos como gente capaz? Como ajudar a sociedade a colaborar com a escola, da qual todos nós dependemos, seja como pais, como cidadãos ou como empregadores? Aqui vai uma proposta.
A escola deve se abrir às contribuições dos cidadãos, sejam eles profissionais liberais ou trabalhadores de quaisquer outras áreas, na sala de aula ou na administração escolar. Esses amigos da escola doariam seu tempo, na forma de aulas ou serviços, do mesmo modo como hoje já doamos a programas sociais cadastrados, recebendo em troca abatimentos em impostos. Vejamos algumas colaborações possíveis.
Um arquiteto poderia dar aulas sobre arte, sobre urbanismo, ou mesmo sobre o ofício de arquitetura, para jovens do ensino médio. Um falante de alemão poderia dar aulas desta língua ou de literatura alemã em português. Um padeiro poderia dar aulas sobre seu ofício ou sobre o gerenciamento de seu negócio. Ex-atletas poderiam compartilhar suas experiências com os jovens e explicar as dificuldades da profissão. Prestadores de serviços poderiam auxiliar em pequenos reparos. Aposentados com experiência gerencial poderiam auxiliar na administração escolar.
Essas doações de tempo teriam um efeito duplo. Em primeiro lugar, a escola se enriqueceria com a pluralidade de experiências humanas, abrindo horizontes para os jovens. Esse seria o objetivo imediato, aumentando o leque de opções profissionais, intelectuais e artísticas dos jovens e, portanto, dando sentido ao ensino como um todo, mesmo daquelas matérias menos atraentes aos jovens. Por exemplo, ver um arquiteto falando de sua obra pode estimular os jovens no estudo da matemática, que ganha valor concreto. Ouvir um escritor pode alertar para a importância da gramática, e assim por diante.
Em segundo lugar, a sociedade aprenderia mais sobre a escola e o debate público a seu respeito se tornaria mais simpático, mais sofisticado. Sairíamos das visões exageradas da professora abnegada e do grevista insensível e passaríamos a enxergar o professor da escola pública como profissional, que precisa de boas condições, que sofre com a burocracia e que pode se aprimorar. Acredito que muitas sugestões gerenciais simples sairiam dessa convivência, assim como demandas por transparência na gestão de recursos.
Essas contribuições seriam individuais, feitas por pessoas de profissões e momentos de vida distintos, dificultando a criação de grupos de pressão que em geral decorrem de colaborações entre público e privado. Mesmo que houvesse a compensação do abatimento de impostos, o caráter voluntário da ação seria preservado, pois ninguém poderia obter seu sustento desta atividade.
No caso específico de São Paulo, com a riqueza da sociedade civil organizada, da economia e em particular das comunidades de imigrantes, essas organizações poderiam apoiar a iniciativa, produzindo materiais didáticos e facilitando a vida dos voluntários com treinamento ou transporte. Mesmo o setor privado poderia colaborar. Por exemplo, uma corretora de valores poderia bolar um curso de educação financeira e estimular seus funcionário a serem voluntários, ou simplesmente publicar o material didático de tal modo que outros pudessem usá-lo. Em suma, o conhecimento agregado da sociedade seria canalizado para a escola, resgatando sua função primordial, que é exatamente transmitir aos jovens o que sabemos nós, os adultos.
São Paulo é uma cidade gigantesca. Alguns cursos poderiam ser oferecidos nos fins de semana, para estudantes da rede pública como um todo, em escolas próximas a estações de metrô, de tal modo que todos tivessem acesso a uma gama de oportunidades. Poderíamos ter, com investimento inicial mínimo, escolas interessantes, cheias de coisa, e ao mesmo tempo oferecendo horizontes profissionais aos jovens. Imaginem o encantamento dos jovens em ver à sua frente, falando com orgulho de seu ofício, um engenheiro, um veterinário, um cozinheiro, um programador?
A escola é o lugar onde uma geração entrega a outra o mundo que ela criou: é onde os adultos passam o bastão aos jovens. Por inúmeras razões, nós no Brasil passamos a ver na escola outras coisas: um local de redenção para nossos pecados, como se pudéssemos começar do zero, ou de comprovação de nosso fracasso, como se fôssemos impotentes para mudar. A escola é, entretanto, apenas um lugar de encontro entre duas gerações onde nada é transformado – e tampouco terminado. É um lugar de encontro, diálogo e continuidade. E não de apocalipse.
Esse projeto ajuda a resgatar a missão essencial da escola, perdida em LDBs (Leis de Diretrizes e Bases da Educação) e guerras culturais, a do encontro entre pessoas, algumas com experiências, outras com fome delas. Sei que você já está pensando quais cursos poderia dar e ficou com vontade de entrar agora numa dessas escolas e ver como é. Fale com a diretora da escola mais próxima, e depois com seu deputado ou vereador, e veja por onde começar.
Para saber mais
- Democracia e Educação, livro de John Dewey.
- A Crise na Educação, ensaio de Hannah Arendt.
- Inteligências Múltiplas, livro de Howard Gardner.