Durante os momentos duros em que agora vivemos, a legislação criada para combater a crise não pode ser, para nós, a presença má do arame farpado, que nos separa do constitucionalismo e de suas proteções.
Dentre todas as catástrofes da presidência Bolsonaro, a única positiva é a desmoralização do liberalismo. A frase é contraditória, mas é isto mesmo: a desmoralização do liberalismo é uma catástrofe e é ao mesmo tempo um lucro.
A resposta é mais simples do que se imagina: porque há uma pandemia e porque há um consenso de que o isolamento social é a medida mais eficaz para a mitigação dos problemas (números x tempo) originados de uma possível contaminação em massa.
Com o desprezo do lado político do conceito de liberalismo, nessa vulgata libertária, fica de lado, por exemplo, uma ideia civilizatória fundamental – aquela segundo a qual pertencer a uma ordem política e jurídica é desfrutar do reconhecimento da condição humana.
Em tempos de crise, o imperativo cultural clássico que demanda que as humanidades humanizem talvez seja exatamente o que torna o pluralismo possível. A neutralização antropológica de uma ideia de cultura, ao postular essa neutralidade mesma, não leva à tolerância, porque incapaz de derivá-la de qualquer fundamento sólido.
Escrevo semanas à frente, semanas estas que podem tornar a realidade muito mais dramática. Da Inglaterra, penso neste texto como uma carta escrita a você, leitor. Uma carta que não poderia deixar de ser pessoal, com impressões fragmentadas, e sem o benefício de grande distanciamento físico, emotivo, ou intelectual.
"Meu amigo, por ser homossexual assumido, vivi certo isolamento social por quinze anos. Vivi a morte por quinze anos. Vivi o risco do desemprego por quinze anos. A História é macabra comigo... com todos os gays da minha idade."
O mais importante durante a crise que teremos pela frente é garantir o salvamento do maior número possível de vidas, com base em critérios eticamente aceitáveis e que tenham sido amplamente debatidos pela sociedade como um todo.
Enquanto cidadãos, somente seremos livres na medida em que pudermos nos realizar politicamente, desenvolvendo-nos como nação e sendo capazes de harmonizar perfeitamente a miríade de interesses privados com o interesse público.