Economia

Tributando o carbono: o verdadeiro imposto do futuro

por Henrique Rodrigues da Mota

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O debate da CPMF está de volta. No “museu de grandes novidades” da reforma tributária, Paulo Guedes exibe o imposto sobre transações financeiras, rebatizado de imposto digital, como se fosse o tributo do futuro. Trata-se, na realidade, de uma taxa pró-passado: ela onera a inovação das moedas e carteiras digitais, o e-commerce, os sistemas de transações rápidas bancárias por meio do celular, as maquininhas de cartão, tudo em favor do uso mais ativo e maior presença do papel-moeda em nossas vidas.

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Paulo Guedes

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Existe, contudo, uma exigência do futuro que bate à porta: a transição ecológica e a necessidade efetiva de desestimular fortemente as emissões de gases do efeito estufa e reverter a tendência de aumento para uma de queda.  Segundo o relatório do IPCC, Aquecimento Global de 1.5º C, para evitar um aquecimento de mais de 1.5º C no planeta Terra, a humanidade precisará reduzir suas emissões anuais de carbono em 45%  até 2030, em relação aos níveis de 2010, e nos tornar neutros na emissão de carbono até 2050. Tendo como referência o ano de 2005, o próprio Brasil prometeu reduzir suas emissões em 43% até 2030, segundo o acordo de Paris, o que significaria, a níveis de 2010, manter nossas emissões quase constantes, a despeito do crescimento econômico e populacional.  Para isso, é preciso um imposto sobre o carbono, o verdadeiro tributo do futuro.

As ideias de precificação de carbono não são novas nas ciências econômicas. A fundamentação teórica de um imposto sobre a poluição já está nos estudos de Arthur Cecil Pigou no seu influente livro The Economics of Welfare (1920). Para este autor, existem circunstâncias em que há desalinhamentos na economia de mercado entre os custos e benefícios privados e aqueles da sociedade de um modo em geral, tratam-se das falhas de mercado. Há externalidades negativas quando uma atividade econômica gera custos à sociedade que não são plenamente captados pelos custos privados. Este é o caso, por exemplo da poluição, embora Pigou não tenha considerado este problema explicitamente em sua época. As externalidades positivas são aquelas em que o benefício privado de uma ação não reflete inteiramente seus ganhos sociais. Um exemplo da atualidade: o uso de máscaras não só ajuda a proteger o indivíduo que a utiliza da covid-19, mas protege também todos aqueles que potencialmente estariam em risco se este indivíduo tivesse sido infectado — ou seja, gera uma externalidade positiva para essas pessoas. Aos impostos que visam punir externalidades negativas, e aos subsídios que visam estimular uma externalidade positiva, damos o nome de impostos e subsídios “pigouvianos”.

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Arthur Cecil Pigou

O que é particularmente novo das circunstâncias atuais é o amplo reconhecimento entre os economistas da importância e da urgência da precificação de carbono como instrumento para melhorar o bem estar das gerações futuras. Isto é reflexo das crescentes evidências da climatologia e das ciências geofísicas do agravamento do aquecimento global e de seus riscos. Já nos anos 1970, foram estas evidências que levaram William Nordhaus, Nobel em Economia de 2018, a integrar a modelagem econômica à modelagem climática, no chamado Integrated Assessment Model (IAM), de modo a prescrever políticas de controle de emissões que maximizassem o bem-estar humano por meio de uma análise de custo-benefício. Em artigo de 1977, Economic Growth and Climate: The Carbon Dioxide Problem, Nordhaus já considerava a precificação de carbono, uma taxa sobre o carbono, como um potencial mecanismo para esse objetivo. Hoje, Nordhaus considera esta necessidade muito mais urgente, uma vez que muito pouco foi feito nesse sentido em escala global.

William Nordhaus

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Os pilares dessa discussão foram se popularizando nos últimos 50 anos e a precificação de carbono é hoje uma quase unanimidade entre especialistas da Economia. Não à toa que outro Nobel da área, Joseph Stiglitz, e o reconhecido Nicholas Stern, a convite da Carbon Pricing Leadership Coalition (CPLC) e com o apoio do Banco Mundial, lideraram uma comissão que produziu relatório em prol de um imposto crescente sobre carbono neste século XXI, a fim de atingir os objetivos do Acordo de Paris.  Em janeiro de 2019, mais de 3500 economistas, incluindo 4 ex-presidentes do FED e 27 vencedores do prêmio Nobel, assinaram o maior abaixo-assinado da profissão nos Estados Unidos em favor de um imposto sobre carbono e sua distribuição para população na forma de “dividendos de carbono”.

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Joseph Stiglitz

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Impostos sobre emissões de gases poluentes, embora não estejam presentes na maioria dos países, apresentam diversas modalidades no mundo. Em geral, cobram-se, sobre os produtores e os importadores de combustíveis fósseis, um valor equivalente aos níveis de emissões de CO2 do litro do combustível, multiplicados por um preço referente à tonelada de carbono. Este preço é determinado pelo governo, sendo a quantidade de emissões finais subproduto desta tarifa.

Existem sistemas alternativos, com o preço determinado pelo mercado de autorização de emissões, denominados de cap-and-trade. Esta alternativa tem sido explorada pela União Europeia já há algum tempo, bem como tem se expandido nos EUA, com destaque para o estado da Califórnia, e na China. Nestes casos, firmas comercializam em mercado suas autorizações de emissões, que são limites impostos pelo próprio governo. Se as empresas emitirem mais do que um determinado patamar máximo, devem comprar autorizações adicionais com aquelas que não ultrapassaram. Nesse caso, portanto, as emissões totais são estabelecidas pelo governo e o preço é a consequência.  Estes sistemas, em geral, apresentam problemas: são menos transparentes e de maior dificuldade de compreensão para população, tendem a apresentar alta volatilidade do preço do carbono (como é o caso europeu), e, mais importante, exigem forte capacidade estatal para verificação das emissões de carbono. Logo, são de difícil aplicação no Brasil. Um imposto sobre combustíveis, por outro lado, já é comum na nossa história, sendo a CIDE um exemplo.

Na realidade nacional, um imposto sobre carbono terá, na prática, duas funções. A primeira delas é a mais essencial: precificar as externalidades negativas à vida humana das emissões de gases do efeito estufa. O aquecimento global terá custos enormes para as próximas gerações de brasileiros: extinção massiva e perda de patrimônio natural da biodiversidade, desertificação do bioma do Cerrado, savanização do bioma amazônico, perturbação grave nos ciclos das chuvas, ampliação dos eventos climáticos extremos, como secas e enchentes, além dos incontáveis prejuízos que estes processos podem gerar a nossa agricultura e indústria. Além disso, as emissões já tem custos corriqueiros no cotidiano das pessoas: a chuva ácida que corrói plantações e infraestrutura urbana e as doenças respiratórias provocadas pelas emissões de gases poluentes são apenas alguns dos exemplos. Estes são custos distribuídos por toda a sociedade brasileira, quando, na realidade, deveriam ser pagos principalmente por aqueles indivíduos ou firmas que mais poluem.

(Foto: Gabriela Biló: Estadão)

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Em segundo lugar, o imposto sobre o carbono nos dá espaço fiscal para melhor lidar com os desafios do século XXI: estruturar uma rede de proteção social para uma nova realidade tecnológica no mercado do trabalho e investir na economia verde. Bráulio Borges, em artigo recente no blog do IBRE, e com base em dados do FMI, estabelece que um imposto sobre carbono, que tivesse se iniciado em junho de 2020, no valor de US$ 25/t CO2e (25 dólares por tonelada de gás carbônico equivalente) em progressão linear até US$ 75/ t CO2e, em 2029, seria capaz de gerar algo próximo de 600 bilhões de reais neste período de dez anos. Para colocar este valor em perspectiva, a reforma previdenciária aprovada no último ano, prevê economias de 800 bilhões de reais para período semelhante.

Parte desses novos recursos poderia ser revertida em reduções de outros tributos, mas, com a forte restrição orçamentária dos próximos anos, pelo menos no médio prazo, um imposto sobre carbono não deve ser neutro do ponto de vista de arrecadação. Uma parte deste tributo deve ser utilizado para o cumprimento de superávits primários futuros. Outra parte deve contribuir a um novo Fundo de Transição Ecológica, que pode atuar como um garantidor final para empréstimos verdes, facilitando a transição de empresas com problemas de restrição de crédito, ou financiando pesquisa em inovação na produção de energia limpa. Por fim, é crucial que parte da arrecadação se destine a gastos entre a população mais pobre, em especial, entre aqueles não atendidos pelo atual sistema de proteção social.

Este último aspecto é essencial para a própria aceitação do tributo, uma vez que o aumento do preço do carbono será necessariamente revertido em maiores preços ao consumidor final. Portanto, a precificação do carbono deve ser implantada em conjunto com a desoneração da folha de pagamentos (especialmente salário-educação e Sistema S) e a expansão de uma nova rede de proteção, uma espécie de renda básica, como aquelas propostas que têm sido discutidas por Daniel Duque e Naércio Menezes, entre outros especialistas. Isto tudo sem perder de vista uma reforma geral dos tributos sobre bens e serviços que simplifique nosso sistema.

O sucesso da inserção diplomática e comercial brasileira neste novo momento histórico depende de uma coalizão nacional de combate à crise climática. As demandas da União Europeia para a integração econômica com o Mercosul são apenas um pequeno exemplo da importância de reforçarmos nossos compromissos com a transição ecológica. O imposto sobre carbono, nessa realidade, é crucial. Diante da ausência de lideranças, no Poder Executivo, comprometidas com uma política ambiental corajosa e eficaz, cabe ao Congresso Nacional ser mais uma vez protagonista das agendas de reforma. A ratificação do Protocolo de Nagoya pela Câmara dos Deputados no mês passado nos indica que há um caminho para o Legislativo atuar em prol da sustentabilidade.

Há uma janela de oportunidade aberta para grande revolução: uma reforma tributária genuinamente verde. A PEC 45/2019, que pretende criar um IVA Nacional, deve incluir também um imposto sobre o carbono. Na própria estrutura do IVA, o Imposto Seletivo, que será utilizado para desincentivar o consumo de bebidas alcóolicas e cigarros, deve tributar diferencialmente os combustíveis, com base em seu potencial de emissões carbônicas. Para que os serviços e bens brasileiros não percam competividade, deve haver ajustes na tributação, que passam por desonerações às exportações e cobranças sobre as emissões das importações, como considera estudo do Instituto Escolhas sobre tributação do carbono. Além disso, a nova legislação pode incluir créditos tributários para empresas que adotem iniciativas de captura de carbono, como a recomposição de florestas nativas, bem como permitir a comercialização em um mercado secundário desses créditos, para que empresas poluentes paguem parte destes tributos por meio de iniciativas de redução direta de emissões.

Uma reforma tributária abrangente, adequando o sistema tributário às intensidades de carbono do setor produtivo, era um dos pontos de luta política do ecologista Alfredo Sirkis, falecido tragicamente em julho deste ano. Em palestra para o Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas em junho de 2018, Sirkis podia até não defender explicitamente o uso do termo “Imposto sobre Carbono”, por motivos, segundo ele, psicológicos de reação da população, mas era completamente a favor de se reajustar os tributos nacionais para melhor representar os custos sociais das emissões dos gases do efeito estufa.  Além disso, a possibilidade de criação de créditos tributários como benefício em troca da captura de carbono é o tipo de medida que Sirkis considerava fundamental para vencer a resistência política a um modelo econômico mais verde, trata-se da precificação positiva do menos-carbono. Isto, é, dar valor positivo econômica e socialmente às reduções de emissões.

Nesse contexto, seria interessante apelidar a reestruturada proposta de Emenda Constitucional, que incluísse um IVA nacional e um Imposto Seletivo sobre o Carbono, de “Emenda Sirkis”. Além de realizarmos uma bela homenagem póstuma, daríamos os primeiros e mais cruciais passos para um Brasil descarbonizado e melhor preparado para os desafios do novo século.

Alfredo Sirkis (Foto: Dida Sampaio/Estadão)

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Henrique Mota

Henrique Mota é mestrando em Ciências Econômicas na PUC-Rio. Graduado em Ciências Econômicas pela PUC-Rio em 2018, dedica sua pesquisa à Economia do Trabalho, Desenvolvimento Econômico e Public Economics.