Filosofia

Vida com sentido

por Desidério Murcho

Numa certa acepção, todos os seres humanos querem ter uma vida com sentido, mas é de prever que seja estatisticamente irrelevante o número dos que têm sequer alguma orientação sobre o que é tal coisa e o que podem fazer para consegui-lo. Ter sentido na vida é ilusoriamente mais fácil quando se pressupõe que as actividades e valores das pessoas que por um acaso cósmico nos rodeiam, incluindo o mundo mediático em que se está mergulhado, se orientam pelo sentido — caso em que seria então apenas uma questão de fazer como os outros. A má notícia é que caso se esteja rodeado de pessoas com vidas carentes de sentido, valorizar as coisas e actividades que as outras valorizam é um bilhete infalível para a falta de sentido e não para a sua plenitude. Este é um dos muitos exemplos em que uma formação adequada em filosofia fornece uma orientação preciosa para uma vida melhor.

 Antes de avançar para aspectos mais substanciais e interessantes do tema, é importante tirar já do caminho a ressonância enganadora que tem a própria expressão “sentido da vida”. Por motivos que não vem agora ao caso esmiuçar, é comum pensar hoje em dia que o sentido da vida é apenas uma questão de finalidade, propósito ou destino — nomeadamente, depois da morte, num suposto paraíso. Que há algo de errado nisto vê-se assim que se considera que uma vida humana sem fazer coisa alguma, ainda que fosse num imaginado paraíso, e ainda que fosse para toda a eternidade, não é propriamente a imagem da realização humana, mas antes do seu exacto oposto: um inferno insuportável. Os seres humanos são animais — organismos dinâmicos — e é nas diversas actividades humanas, em harmonia com a sua natureza, que se realizam e encontram sentido.

Porque o tema do sentido da vida é tão vago, dando por isso origem a palermices meramente verbais, é uma boa ideia começar pela ponta mais chã e perguntar em que condições uma dada actividade humana, como andar de bicicleta, é dotada de sentido. Ora, emergem quatro condições mal se começa a reflectir com algum cuidado.

Em primeiro lugar, uma actividade tem sentido quando tem um propósito ou finalidade. Caso uma pessoa ande de bicicleta sem qualquer propósito, a sua actividade não tem sentido. A menos que uma pessoa sofra infelizmente de sérias disfunções comportamentais, não é comum encontrar alguém que faça seja o que for sem qualquer propósito. Mas não caminham as pessoas tantas vezes por uma cidade ou numa trilha de montanha sem qualquer propósito? Não; o que fazem é caminhar sem qualquer outro propósito que não o prazer de caminhar. Muitas das actividades a que os seres humanos se entregam não têm outro propósito que não o prazer, satisfação, realização ou sentimento positivo que encerram em si mesmas. Isto significa que é preciso distinguir as finalidades últimas das instrumentais, e estas das meramente instrumentais.

Uma finalidade é última quando não visa outra finalidade que não ela mesma. Já se vê que quem quiser ser algo picuinhas consegue insistir que nenhuma actividade é uma finalidade em si — é o prazer ou satisfação ou realização que as actividades proporcionam que constituem a sua finalidade. Quem anda de bicicleta pelo prazer de o fazer, fá-lo porque isso a satisfaz ou realiza ou lhe dá prazer. Quando se vai nesta direcção aristotélica acaba-se por concluir que é a felicidade humana, ou o florescimento, ou a eudemonia, ou algo nessa direcção que constitui o único fim verdadeiramente último. Dar este importante passo, porém, obriga a esclarecer melhor o que se entende por felicidade, ou florescimento ou eudemonia, tema que tem de ficar para segundas núpcias.

Quando uma actividade não é uma finalidade última, é instrumental ou meramente instrumental: é um meio para outra finalidade. Uma pessoa pode caminhar desagradada sob um forte temporal para ir ao cinema ver um filme que prevê que será bom; a caminhada é meramente instrumental caso a única razão para fazê-la seja outra coisa que não a própria caminhada. Contudo, muitas actividades instrumentais não são meramente instrumentais: uma pessoa caminha para ir comprar pão, mas se ao mesmo tempo apreciar a caminhada, esta é instrumental mas não é só isso.

Clarificada que está a primeira condição para que uma actividade tenha sentido — ter um propósito ou finalidade — vê-se desde logo que muitas actividades não têm sentido apesar de obedecerem a esta condição. Quando uma pessoa sobe uma longa avenida para ir à farmácia mas está enganada porque a farmácia fica na direcção contrária, a sua caminhada não teve sentido. Claro que ela acreditava que tinha sentido e foi por isso que empreendeu aquela caminhada, mas a verdade é que não o tinha. Assim, para que uma actividade tenha sentido é preciso que, além de ter um propósito, seja um meio adequado para o alcançar. E esta é a segunda condição do sentido.

Também isto não basta, pois em alguns casos é a própria finalidade que não é alcançável. Por mais que uma pessoa treine natação adequadamente com o fito de atravessar o Pacífico a nado, é a própria finalidade que lhe falha e por isso, seja o que for que faça, está fadada à frustração. Conclui-se assim que há três condições importantes para que uma actividade tenha sentido: ter um propósito ou finalidade, ser um meio adequado para atingi-lo e este ser susceptível de ser atingido.

Porém, a condição mais importante, e que mais confusões é de prever que provoque, é a quarta: ser uma finalidade objectivamente valiosa. O exemplo que usei no livro Viver para Quê: Ensaios sobre o Sentido da Vida (Lisboa: Dinalivro, 2009) é o de um casal que tem o propósito de casar debaixo de água e faz todos os preparativos apropriados para tão bizarra finalidade. Mesmo que todas essas actividades tenham um propósito — casar debaixo de água — e mesmo que sejam meios adequados a essa finalidade, e apesar de essa finalidade ser susceptível de ser alcançada, nada daquilo tem o mínimo sentido se a finalidade for em si frívola e sem qualquer valor apropriado. Antes de se esclarecer melhor o que se entende então por “valor objectivo” vale a pena fazer uma pausa para ver o que já se conseguiu esclarecer.

Há quatro condições necessárias — talvez sejam também suficientes — para que uma actividade tenha sentido: ter uma finalidade, e essa finalidade ser susceptível de ser alcançada; é preciso, além disso, que a actividade seja um meio adequado para alcançá-la, e que esta finalidade tenha valor. Quando uma actividade comum não tem uma destas condições é apropriado considerar que não tem sentido. De notar que ter sentido e fazer sentido são conceitos relacionados e próximos. Algo faz sentido quando é inteligível ou compreensível; dar saltos para chegar à Lua não faz sentido precisamente porque não é um meio adequado para o propósito visado. Em qualquer caso, o que interessa para o sentido da vida não é sobretudo o conceito de inteligibilidade ou compreensibilidade mas o sentido na outra acepção.

Importa também fazer já notar que as quatro condições apresentadas não são à prova de bala porque a vida humana é plena de excepções, situações desagradáveis, escolhas terríveis e outras infelicidades que resultam do controlo muito limitado que temos sobre todos os factores que têm impacto nas nossas vidas. Numa situação de vida ou de morte parece ter sentido tentar uma saída desesperada que se prevê com frieza que não irá resultar; mas se não houver alternativas que não a morte certa ou o sofrimento, não se perde em tentar e essa tentativa tem sentido numa acepção razoável, ainda que não o tenha noutra. Nunca se deve esquecer, ao reflectir sobre o florescimento humano ou o sentido da vida humana, os abismos de desespero em que infelizmente nos encontramos demasiadas vezes.

Em qualquer caso, em condições comuns, é razoável considerar que as actividades humanas que têm sentido obedecem aproximadamente àquelas quatro condições. Daqui é razoável concluir que uma vida humana tem tanto mais sentido quanto mais for preenchida por actividades que tenham sentido. Uma vida humana sem sentido é precisamente a que é sobretudo preenchida por actividades sem sentido, frívolas, vazias, que não visam finalidades genuinamente valiosas, ou que não são meios adequados para finalidades apropriadas.

E assim voltamos à ideia de valor genuíno ou objectivo; que quer isso dizer? Não são afinal todos os valores meramente subjectivos, como é comum pensar hoje em dia? A resposta simples é que é pura e simplesmente falso, e obviamente falso, que os valores sejam todos subjectivos em qualquer acepção filosoficamente robusta do termo. Os próprios conceitos de subjectividade e objectividade são filosoficamente fascinantes e merecem um tratamento aprofundado e rigoroso, mas para os propósitos presentes é suficiente fazer notar que se os valores fossem todos subjectivos em qualquer acepção filosoficamente robusta, os seres humanos não poderiam enganar-se quanto a eles. Porém, é evidente que se enganam, e não é pouco. Por isso, conclui-se por modus tollens que é falso que todos os valores sejam subjectivos nessa acepção. Para compreender este aspecto, considere-se aqueles casos em que uma pessoa não pode realmente estar enganada quanto ao que valoriza: gosta mais de salada de tomate do que de agriões, por exemplo. Imagine-se alguém dizer-lhe que é uma tolice gostar mais de salada de tomate porque a de agriões é melhor. Esta advertência é inadequada porque em casos onde reina a subjectividade uma pessoa não pode estar enganada; se ela realmente gosta mais de uma salada que da outra, acabou-se a conversa. É esse o seu gosto, e a sua subjectividade impera soberana e infalivelmente.

Só que isto não é assim em muitos outros casos, em que os seres humanos se enganam e não é pouco. Uma pessoa valoriza algo durante anos e orienta a sua vida por isso, e depois descobre que afinal o que valorizava era ilusório e não tem realmente valor algum. Isto seria conceptualmente impossível se todos os valores fossem subjectivos, pois seria como o caso em que a pessoa gosta mais de salada de tomate e alguém insiste que está enganada. Além disso, se os valores fossem todos subjectivos, seria difícil explicar os conflitos de valores: quem valoriza o prazer que lhe dá fumar mas ao mesmo tempo valoriza a sua saúde, irá descobrir que os dois valores são incompatíveis porque ambos dependem de factos biológicos e químicos independentes da sua vontade. Um dos erros capitais que urge evitar com respeito aos valores é imaginá-los como uma espécie de névoa mística platónica que flutua acima da realidade sensível e independente dela. Isto é uma rematada tolice. Os valores são relações entre um agente capaz de valorar e a coisa ou actividade por ele valorizada, e depende em muitos casos crucialmente da natureza sensível de ambos: valorizamos a água porque somos organismos biológicos com uma dada natureza e porque a água tem propriedades químicas apropriadas à nossa natureza.

Defender que nem todos os valores são subjectivos não é de modo algum defender que existe alguém que sabe sem margem para dúvidas o que é melhor para toda a gente. Este género de aristocracia do valor, que infelizmente se encontra em alguns filósofos mais amalucados, seria risível caso não fosse trágica. Descobre-se no seio da vida, e procurando activamente, com muito rigor e cuidado, o que é melhor para esta ou aquela pessoa, e à excepção das necessidades humanas básicas — não apenas as biológicas, mas também as sociais e afectivas — não é de modo algum de esperar que sejam as mesmíssimas coisas e actividades que são as melhores para todos. A dança clássica é um completo tédio para muitas pessoas, mas para outras é a fonte principal de realização; a literatura é para muitas um entretenimento acarinhado, mas para a maioria das pessoas é um sacrifício e um tédio inenarrável.

Foi a filósofa Susan Wolf que defendeu uma hipótese filosófica que parece ter entretanto recebido ampla confirmação científica. No seu artigo clássico “Felicidade e Sentido: Dois Aspectos da Vida Boa” (1997) (incluído no mencionado Viver para Quê?), esta filósofa defendeu que “as vidas com sentido são vidas de entrega activa a projectos de valor” (p. 161). Esta mesma ideia foi depois por ela desenvolvida e aprimorada no artigo “Os Sentidos das Vidas” (2007) e finalmente no livro O Sentido na Vida e por que Razão é Importante (Lisboa: Bizâncio, 2011). Começando pela ideia de entrega activa, compreende-se melhor o que está em questão em contraste com o que hoje se chama em psicologia “languidez” e que corresponde ao conceito medieval de acídia: uma falta generalizada de interesse por quaisquer actividades, uma vida de passividade sem paixão por coisa alguma. Wolf considera que não basta um ser humano desenvolver actividades de valor; é preciso também que o faça com paixão. Um enfermeiro que ajuda a salvar uma criança mas o faz por simples cumprimento das suas obrigações profissionais, sem qualquer interesse, não desenvolve uma actividade com sentido. O reverso da medalha é a pessoa que se entrega com muita paixão a actividades destituídas de valor objectivo: frivolidades insusceptíveis de realmente contribuir para o seu próprio florescimento como ser humano. É preciso fazer coincidir a atitude apaixonada da pessoa com o valor objectivo da actividade: “O sentido emerge quando a atracção subjectiva se encontra com o que é objectivamente atraente” (Wolf, “Felicidade e Sentido”, p. 165). E o que é objectivamente atraente? São os valores objectivos; objectivos na medida em que realmente contribuem para o florescimento humano, e não apenas aparentemente. Ou seja, são aquelas actividades ou coisas que nos fazem realmente felizes, num sentido profundo que não se confunde com o mero contentamento momentâneo, nem com a alegria superficial, aproximando-se assim de algo como a eudemonia aristotélica: aquilo que realmente contribui para uma vida humana de excelência.

Acontece que em trabalhos recentes de psicologia positiva se tornou manifesto que a hipótese de Wolf é muito provavelmente verdadeira. Num desses casos, mencionado pelo psicólogo Jonathan Haidt nos seus comentários incluídos no livro de Wolf, descobriu-se o chamado estado de flow ou fluir, que ocorre quando uma pessoa se entrega com esforço a uma actividade criativa que a apaixona. O psicólogo pioneiro neste tipo de trabalho, Csikszentmihalyi (que se pronuncia como “tchic-cent-mi-hai”), descobriu que ocorre esse estado de concentração intensa na qual se perde a noção do tempo, e que contribui crucialmente para dar sentido a uma vida, quando há uma harmonia entre os talentos da pessoa e a dificuldade da tarefa a que se entrega. Caso a pessoa passe a vida entregue a tarefas fáceis para ela, que não são desafiantes nem difíceis, não serão uma fonte de sentido; mas também não o serão caso se entregue a tarefas demasiado difíceis para ela, pois nesse caso serão fonte de frustração e não de realização. É preciso que as actividades estejam um pouco acima do que a pessoa consegue facilmente fazer, para que tenha de se esforçar e dar o melhor de si; mas é preciso que esse esforço resulte em algo positivo e não mera frustração. Note-se que o que para uma pessoa será fonte de realização será para outra uma frustração porque é demasiado difícil, ou será um tédio porque é demasiado fácil.

Este é um caso feliz em que uma hipótese filosófica recebe algo como uma confirmação empírica, mas o mais importante é o que emerge destes estudos e que talvez se possa resumir em duas ideias negativas importantes e outra positiva. As negativas são dois mitos contemporâneos que constituem obstáculos de monta ao florescimento humano. A primeira, já mencionada, é a ideia de que todos os valores são subjectivos. Quem acredita nesta léria não vai com certeza dar-se ao trabalho de tentar descobrir o que tem realmente valor, para o distinguir do que só superficialmente parece que o tem — ainda que seja sancionado por grande parte das pessoas à sua volta. A segunda é a ideia de que a vida boa consiste em não se esforçar para coisa alguma porque tudo é fácil e é só uma questão de escolher os filmes do Netflix e de passar o dia em conversas frívolas no smartphone.É de prever que estas duas ideias empurrem os seres humanos para a languidez, porque tarde ou cedo se descobre que a passividade não nos faz felizes e que os valores genuínos não são fáceis de descobrir. A ideia positiva que emerge destas reflexões e estudos empíricos é que descobrir as nossas paixões e entregarmo-nos a elas decisivamente, impedindo activamente que a frivolidade do fácil nos afaste delas, poderá não ser o caminho fácil da felicidade, sonhada por tantos maus livros de auto-ajuda — mas é um mapa que nos orienta e ajuda a chegar lá.

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Desidério Murcho

Desidério Murcho é filósofo, escritor e professor de Filosofia na Universidade Federal de Ouro Preto. É autor, entre outros, de Filosofia Diretamente e O Lugar da Lógica na Filosofia. Edita o site Crítica na Rede.