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Poesia em Casa – Leonard Cohen e a escuridão mais escura

por Pedro Gonzaga

Em um tempo de luminosidade total, de dispositivos que são idolatrados por sua iridescência, de ativistas cegados pelo refulgir inerme de suas ideias redentoras, talvez caiba aos artistas, aos artistas legítimos, reivindicar o espaço sagrado da escuridão, tantas vezes sinônimo, ao longo de milênios, de intimidade e recolhimento, daquilo que é noite – dissolução e mistério -, daquilo que está sempre no além do que veremos: a morte, escuridão sem a qual a própria essência do humano tende a se dissolver em um meio leviano, de laços frouxos, convicções rápidas e muito pouca reflexão. (É só quando envolvida no breu que nasce a nitidez única das imagens no interior das câmaras escuras.)

Aos 82 anos, com You want it darker, Leonard Cohen não parece disposto a abrir mão de sua busca por gravidade, desenvolvida ao longo dos cinquenta anos de carreira como músico, e desde antes como escritor: uma busca sobretudo estética. Da voz às letras, dos arranjos às melodias, sua obra avança em um todo coerente, escapando, feito um milagre, aos apelos da simplificação e do formulismo, em um projeto esboçado ainda em 1959, visível no trecho de uma carta enviada a seu editor, que retiro da competentíssima biografia de Sylvie Simmons, I’m your man, em que ele dizia desejar que seu trabalho fosse acessível a “adolescentes autossuficientes, amantes mergulhados em diversos níveis de angústia, platônicos desapontados, consumidores de pornografia (..), escritores não-publicados, músicos curiosos, etc, todos os seguidores sagrados de minha Arte”.

Já na abertura, na faixa-título, Cohen apresenta suas intenções, que, se não são inéditas (o tema da escuridão tem sido central em seus álbuns desta década), parecem se intensificar uma vez mais:

They’re lining up the prisoners
And the guards are taking aim
I struggled with some demons
They were middle class and tame
I didn’t know I had permission to murder and to maim
You want it darker

(Eles alinham os prisioneiros
Os guardas alçam suas miras
Eu enfrento alguns demônios
Eles são de classe média e amestrados
Não sei se tenho permissão para matar ou mutilar
Você quer que fique mais escuro)

Os aficionados do compositor canadense há muito estão familiarizados com suas sombrias visões do porvir. Como esquecer das desolações previstas em The future, o assassínio transformado em gesto banal em um mundo no qual todas as diferenças, crenças políticas e religiões foram eliminadas? Agora, contudo, temos a visão de um tempo em que a própria ideia do apocalipse envelheceu, onde já não serão possíveis sacrifícios nem ascensões, como em Steer your way, mas apenas o cinismo e o consumo banalizado:

They whisper still, the injured stones
The blunted mountains weep
As he died to make men holy
Let us die to make things cheap
And say the Mea Culpa, which you gradually forgot
Year by year, month by month, day by day
Thought by thought

(Elas ainda sussurram, as pedras feridas (ofendidas)
As montanhas desgastadas choram
Assim como ele morreu para sacralizar os homens
Morramos para baratear as coisas
E profira o Mea Culpa, que você gradualmente esqueceu
Ano após ano, mês após mês, dia após dia,
Pensamento após pensamento)

E antes de seguir, admito acreditar que uma letra, mesmo que possa ter sido um poema, ou que tenha elementos poéticos, é parte indissociável de um todo musical na arte da canção. Se destaquei mais o aspecto verbal, é porque meu meio é a escrita. “Quando as pessoas falam sobre Leonard, deixam de mencionar suas melodias, que, para mim, junto com suas letras, são grande parte de sua genialidade”, diz Bob Dylan, citado no perfil que David Remick escreveu recentemente para a New Yorker, recuperando a vida e da carreira de Cohen. Em Steer your way, mencionada acima, o cantor atinge uma interpretação vocal que está entre as melhores da carreira, secundada por um violino entre o country e o clássico, que é uma das conquistas que trouxe de suas performances ao redor do mundo. You want it darker é, neste sentido, todo ele, um grande disco. A voz quase subsônica, a qualidade dos arranjos – desde a clássica batida que soa eletrônica até os coros litúrgicos – são um sopro de esperança no cenário atual. Vale destacar a introdução de Leaving the table, com sua guitarra blues, e a progressão harmônica e melódica de Treaty, uma releitura de Anthem, talvez umas das mais conhecidas canções de Cohen, que, no entanto, parece soar nova, longe de um retorno condescendente a lugares já explorados. Tenho para mim que isso se explica pela postura profética de Cohen. Por seu destemor à escuridão.

Os poetas estão acostumados a percorrer dois caminhos, o da poesia celestial e o da poesia terrena. O primeiro caminho englobaria as fantasias, as visões das religiosas, a própria metafísica e a poesia conceitual. O segundo apontaria para uma ligação com a natureza, com a sociedade, com as forças e fraquezas da criatura humana, com o estar no mundo, subjugado às pulsões de vida e de morte. Seria possível pensar em muitos poetas e cancionistas, o próprio Cohen, que trilharam um ou outro caminho, ou os dois algumas vezes. Há uma terceira estrada, contudo, pouco percorrida. Ela tem seus primeiros líricos no Velho Testamento, aqueles solitários, a um só tempo crentes e descrentes na continuidade deste mundo, em sua transcendência, ora impuros, ora castos, ora ímpios, ora santos. São os profetas. O raro caminho profético é o da admoestação e da ternura, da tolerância e da revanche. Os gritos no deserto, os gritos projetados da cova escura tentam defender, a todo custo, o valor de cada experiência humana para fora do tempo, em sua face imortal. O caminho preferido de Cohen, em especial nos últimos anos.

A primeira vez em que percebi isso, foi ouvindo Everybody knows, e lá se vão duas décadas, nos tempos da faculdade. Há um par de versos que nunca esqueci: Everybody knows that naked man and women/ Are just a shinning artifact of the past. (Todos sabem que os homens e mulheres nus/ Não passam de um luminoso artefato do passado). E não será difícil encontrar exemplos em outras letras desse caminho que indiquei. Eles estão em Tower of song, Waiting for the miracle, A thousand kisses deep, ou na recente It seemed the better way, quando ele diz “soava como verdade, mas hoje não é verdade”.

Vindicação de sentido, o caminho do profeta. Um caminho escuro, da mais escura e necessária resistência.

Pedro Gonzaga

Pedro Gonzaga é poeta, tradutor, músico e professor. Doutor em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, é autor de A Última Temporada, Falso Começo e O Livro das Coisas Verdadeiras (Arquipélago Editorial), sua estreia na crônica. Seu livro mais recente é Em outros tantos quartos da Terra.