Política

A Cruz e a Espada: o voto “moralmente superior” em Bolsonaro ou Haddad

Bolsonaro: Arquivo do Estadão / Haddad: Nilton Fukuda

por Eduardo Wolf

I. “Inesquecível, padres!”

Na noite de sexta-feira (05/10), a OSESP executou um programa todo voltado às “Américas”: Leonard Bernstein, Villa-Lobos, Ginastera e a “Sinfonia do Novo Mundo”, de Dvo?ák. E foi durante o “Prelúdio” das Bachianas Brasileiras No 4, segunda peça da noite, que eu não consegui segurar o choro provocado por muito mas do que a beleza da obra de nosso maior compositor. O “Prelúdio” avançava, com sua melancolia que sempre me evocou mais os românticos, antes Chopin que Bach, que lhe serve de base, e na minha cabeça ficava a pergunta: “como foi que chegamos aqui?”.

“Aqui”, é claro, refere-se ao estado de coisas a que chamamos, não sem eufemismos, de cena política. Do lado de fora da Sala São Paulo, lá onde o tempo não ficava suspenso pela melodia de Villa-Lobos, duas candidaturas presidenciais deprimentes seguiam conduzindo o País pela estrada da degradação política radicalizada que parece não ter fim. Do lado de dentro, eu tentava entender esse curioso processo psicológico em que uma obra de Villa-Lobos me levava à pergunta “como chegamos aqui?”, e o fazia não sem o estardalhaço de algumas lágrimas.

O tom pessoal — pelo qual me desculpo de antemão, não é de praxe — vem justificado porque, de fato, o que me colocou naquele estado foi uma lembrança muito pessoal, uma recordação dos meus 12 anos de idade, dessas memórias formativas que se manifestam o tempo todo no nosso modo de ser, mas que vez ou outra emergem mais vivas, explícitas, deflagradas por qualquer madeleine que nos caiba provar. Pois bem, a minha madeleine foi o “Prelúdio” da Bachiana No4, e o fato para mim é que aquelas notas sempre estiveram associadas a Gianfrancesco Guarnieri, na série de televisão Anos Rebeldes, com voz embargada, relatando em um só fôlego o modo como a Missa de Sétimo Dia do estudante secundarista Edson Luis de Lima Souto, na Candelaria, foi vandalizada pelo exército, que atacou com golpes de sabre proferidos por sua cavalaria, homens, mulheres e crianças que tinham ido à Igreja rezar e prestar solidariedade a um estudante pobre que, porque fazia suas refeições no restaurante Calabouço, foi morto com um tiro no peito.

Homens, mulheres e crianças cercados pelos cavalos do exército, que sitiava uma missa; o gás lacrimogênio penetrando a própria Igreja; 600 pessoas no templo a ouvir os cascos dos cavalos da tropa, “misturados ao ranger dos freios das viaturas da polícia”. E Gianfrancesco Guarnieri emocionado, eu sabia que era de verdade, como era verdade o que vinha relatado, declamando lindamente o texto e a música subindo. A música era o “Prelúdio” da Bachiana No. 4.  A cena toda, o que ela representava de lição humana para muito além do que eu podia compreender, tudo isso, e os meus 12 anos — havia apenas 7 anos que o País encerrara o capítulo “ditadura militar” de sua história — que não alcançavam muito bem aquilo tudo, e a melodia do “Prelúdio” de Villa-Lobos ajudava o momento a chegar a seu final: os padres formando um cordão de isolamento, protegendo com os próprios corpos os presentes, apartando-os da bestialidade do exército, permitindo que deixassem a Igreja e chegassem até a esquina da avenida Rio Branco. E Otto Maria Carpeux, o liberal ateu ao lado da juventude de esquerda, a exclamar: “Inesquecível, padres”.

II. Autoritarismo circense, impostura política: seu voto não é moralmente superior

O texto, eu vim a saber alguns anos depois, era do Zuenir Ventura, 1968: o ano que não acabou. A história ali relatada, a intensidade dramática desse episódio cujo ecumenismo é tão simbólico quanto necessário, nunca me abandonou. E diante do quadro eleitoral que se desenhou para o Brasil de 2018, não me parece ter sido gratuita e evocação daquele abril de 1968 em que a Cruz se ergueu para enfrentar a Espada.

Sejamos claros: o desenho final da eleição presidencial brasileira em 2018 traz a escolha entre, de um lado, um deputado federal do baixo clero que, para além de sua mediocridade absoluta, inteiriça, não fez mais em suas décadas de ácaro nos tapetes do Congresso do que atacar, e sempre, todas as instituições fundamentais da democracia, glorificar o passado da ditadura militar e louvar tudo o que fosse forma de violência política à direita no espectro político, e, de outro, um candidato-fantoche, representante de uma força política responsável por comandar os mais terríveis esquemas de corrupção e de ataque à democracia brasileira e, de quebra, fiadora de variadas formas de autoritarismo político. Foi diante dessa escolha que se desenhou um tipo de fenômeno muito específico, o único que me interessa aqui neste breve ensaio que quase sai como um desabafo das minhas perplexidades pessoais. Refiro-me, é claro, à baixíssima adesão, entre parcelas específicas e expressivas do eleitorado brasileiro, às convicções humanistas, democráticas, liberais e tolerantes que, em uma democracia madura, estão consolidadas e bem distribuídas em todo o espectro político.

O histórico do primeiro, Bolsonaro, é amplamente conhecido, e eu mesmo tive o desprazer de tratar de sua natureza fascistóide temperada por elementos circenses já há um par de anos. Em maio de 2016, escrevi para a revista Veja um artigo intitulado “Quem criou Bolsonaro?”. Nele, resgato esse perfil estatólatra, autoritário e inimigo da democracia:

No dia 17 de março de 1995, o presidente Fernando Henrique Cardoso enfrentou um protesto em frente ao Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), no Rio de Janeiro. Convocado por sindicalistas e militantes de oposição ao governo, o ato contava com a Central Única dos Trabalhadores (CUT), a União Nacional dos Estudantes (UNE) e diversas outras entidades. No carro de som do Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro, no entanto, vociferava uma figura menos carimbada em protestos da CUT e de seus satélites: Jair Bolsonaro, deputado federal eleito com 135 000 votos pelo então PPB do Rio de Janeiro (atual PP). Discursando ao lado dos sindicalistas, aos quais chamou de “companheiros”, atacava Fernando Henrique, a reforma do Estado e os políticos do Congresso.

Que esse seja o mesmo Jair Bolsonaro, hoje no PSC-RJ, que na votação do impeachment da presidente Dilma Rousseff no último dia 17 deu seu votou “pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff”, rendendo homenagem a notório torturador da ditadura militar, não deveria ser motivo de espanto para quem acompanha a política brasileira. Na verdade, o capitão da reserva do Exército brasileiro defendeu, em 1999, o fuzilamento do então presidente Fernando Henrique Cardoso; pediu, em 1992, o fechamento do Congresso, e até cuspiu em documento oficial em sessão plenária em 1994. Já foi eleitor de Lula no segundo turno das eleições presidenciais de 2002 e já defendeu o comunista Aldo Rebello para o ministério da Defesa no primeiro governo do ex-presidente petista.

Atavicamente incapaz de alguma coerência política ou ideológica e instintivamente refratário a qualquer princípio democrático, a única constância na vida do deputado foi a longa lista de insultos homofóbicos, machistas e racistas que lhe garantem alguma fama e muitos votos. Servem, os insultos, para pontuar de histrionismo perigoso o folclore nacionalista e a defesa dos interesses corporativos do Exército que resumem sua existência política até recentemente irrelevante.

Há pouco de novo a acrescentar sobre o fenômeno Bolsonaro. Os cientistas políticos, muito mais aptos a fazerem esta reflexão do que eu, vão tratar de temas importantes, como os efeitos pífios do tempo de televisão e das alianças com o Centrão em face da força orgânica de Bolsonaro; o impressionante uso das redes sociais por seus eleitores; a confusão ideológica e programática de um candidato cuja vida se política se deve à defesa de privilégios corporativos convertido a um liberalismo de ocasião, etc. Meu interesse não está aí. Não é para analisar pelos olhos da ciência política a candidatura do ex-Capitão que escrevo estas linhas. Antes, interessa-me tentar compreender como foi possível que uma candidatura que fez questão de se construir, ao longo dos últimos anos (no mínimo, os últimos 4 anos) em torno de valores e ideias abertamente iliberais, autoritárias e anti-democráticas conseguiu se consolidar, em certos discursos, não como um movimento de massas, não como um voto de rejeição, mas como uma escolhe consciente em nome de uma posição moralmente superior no âmbito da política.

Há duas observações cautelares, aqui. A primeira é bastante óbvia: no universo de votos de Jair Bolsonaro, que parece ser da magnitude de 40, 42% do total de votos válidos, as razões para que se vote nele são as mais variadas. Rejeição às alternativas, voto de protesto, escolha com vistas pragmáticas para a economia brasileira, o conservadorismo de costumes algo retrógrado do brasileiro médio, o antipetismo radical que se consolidou sobretudo na elite socioeconômica da país. Esses e tantos outros motivos podem ser apresentados de maneira verdadeira, honesta, pelo eleitor para justificar seu voto. Para cada uma dessas razões, é possível ter diferentes graus de informação esclarecida sobre as posições iliberais, autoritárias e antidemocráticas do candidato. A mim, interessa aqui apenas aquele voto que, por qualquer que seja a razão, e em qualquer que seja o estrato socioeconômico, se dá consciente dessas posições. A segunda é que, nesse universo de justificativas, todas elas podem vir acompanhadas ou não de uma convicção de que esse voto é moralmente superior à alternativa de voto concorrente. Interessa-me, nesse caso também, o cenário em que o eleitor acredita nessa superioridade moral de seu voto em Bolsonaro. Assim, é o voto consciente do histórico e do discurso iliberal, autoritário e antidemocrático e moralmente orgulhoso disso, convicto de uma superioridade moral nessa escolha, que me interessa.

De pronto, creio que podemos eliminar uma parcela enorme de votos. Muitos eleitores de Bolsonaro em 2018 foram eleitores de Lula ou de Dilma em 2006, 2010 e 2014, ou de Alckmin, Serra e Aécio. O contingente de eleitores, acima dos 40%, não é de eleitores oriundos do nada, do mesmo modo como não são eleitores cujo voto é rígido e altamente ideológico. Além disso, há uma parcela não inexpressiva de pessoas que votará em Bolsonaro por qualquer uma das razões expostas acima (antipetismo, aposta econômica, rejeição ao sistema político), mas que, possivelmente reconhecendo o histórico negativo do candidato em matéria de princípios e valores democráticos, não vê sua escolha como sendo moralmente superior a nenhuma outra.

Resta aquele eleitor que, mesmo que não seja numericamente o mais importante para as eleições, é aquele que me inquieta, que despertou em mim o interesse pelo assunto. É o eleitor que me veio à mente uma bela sexta à noite ouvindo Villa-Lobos na Sala São Paulo e lembrando de Gianfrancesco Guarnieri recitando o relato daquela terrível truculência militar na missa da Candelária.

Esses eleitores, ao atestarem sua consciência do iliberalimso antidemocrático de Bolsonaro e, a isso, adicionarem a crença em uma superioridade moral em sua escolha por essa alternativa, estão afirmando que o elogio a ditaduras, o louvor a torturadores, o desrespeito sistemático, planejado e continuado às instituições que constituem uma democracia (Congresso, partidos, liberdade de imprensa, respeito ao adversário político, que jamais deve ser tratado como um inimigo, e pesos e contra-pesos que impeçam uma tirania da maioria sobre a minoria) são, política e moralmente falando, ou bem secundários, ou bem irrelevantes. Alguns desses eleitores o fazem com certa discrição, tergiversando, esquivando-se do ponto central, mas não conseguem se evadir de todo do dilema moral: não consideram moralmente problemática a defesa explícita de um discurso iliberal, autoritário e antidemocrático. Outros, ainda mais ousados, fazem pior: é porque o discurso é iliberal, autoritário e antidemocrático; é porque o candidato pratica revisionismo histórico e transforma torturadores em heróis, ditadores em ícones, violência em atitude política, perseguição a inimigos em prática corrente e ataque à imprensa em demonstração de coragem que votam nele e consideram esse todo moralmente superior. Assim, pior do que serem secundários ou irrelevantes, os valores do liberalismo, da democracia e do pluralismo são francamente negados, reputados como negativos.

As demonstrações de orgulho desse eleitorado com as posições iliberais e antidemocráticas de Bolsonaro oscilam entre o revanchismo com a esquerda, de um lado, e as convicções autoritárias genuínas a despeito da esquerda, de outro. Mas elas são claras: a imprensa passou a ser tratada com fúria maior do que fazia o PT em face de notícias negativas, a perseguição, inclusive física, a jornalistas atingiu novos patamares, e as manifestações de tipo racista, homofóbico e de louvor a práticas ditatoriais ganharam, nesta grande paisagem da insensatez que é a internet em tempos de de eleições, cores muito vivas e convictas. E o mais triste é que, talvez, esse nem seja o fato mais surpreendente, afinal, ao menos parte desse voto moralmente convicto vem de segmentos supostamente esclarecidos, muitos dos quais, aliás, responsáveis de primeira hora pelo embate contra o PT no governo supostamente por seu autoritarismo, desrespeito à democracia e práticas iliberais no governo.

“Como chegamos aqui?”, era a pergunta que eu me fazia naquela sexta à noite na Sala São Paulo ouvindo Villa-Lobos e recordando a expressão pungente de Gianfrancesco Guarnieri relatando a Missa de Sétimo Dia de Edson Luis, no longínquo abril de 1968. Passaram-se 50 anos daquele episódio. Passaram-se 30 de nossa Constituição. Mas não conseguimos criar uma cultura de convicção liberal, democrática, pluralista e tolerante capaz de resistir aos extremos iliberais que sempre existem, sempre vão existir. E choca, abala, perturba o espírito, mesmo, constatar que as convicções de lideranças que se apresentam como liberais no novo cenário brasileiro são capazes de praticar esta grande abjeção que é revisar a História, edulcorar o passado do autoritarismo e da tortura, endossar o presente de irresponsabilidade antidemocrática e violento, e ainda crer-se moralmente superior às alternativas. Percebemos, assim, que não havia uma onda liberal, mas apenas uma onda de rejeição ao governo de turno; não havia rechaço efetivo à perseguição à imprensa e aos jornalistas, mas apenas uma rejeição daquele partido ou governo atacando a imprensa; não havia resistência à autoritária aposta em uma nova constituição sem povo, mas apenas uma recusa a que o PT conduzisse esse processo; não havia uma rejeição ao desrespeito aos direitos humanos, mas apenas uma instrumentalização contrária àquele partido ou governo apoiando e financiando regimes que desrespeitam os direitos humanos.

Qual a lógica da superioridade moral nessas posições iliberais? Que superioridade moral pode haver no autoritarismo circense e na impostura política que representa Jair Bolsonaro?

III. Crime organizado e violência política: seu voto também não é moralmente superior 

A perplexidade — e eu disse que mais discorreria sobre a minha perplexidade do que qualquer outra coisa — que tomou conta de mim ao recordar aquele grande momento da dramaturgia com Gianfrancesco Guarnieri, o “Prelúdio” de Villa-Lobos de tema, aquela melancolia forte e continuada a conduzir o pensamento, podia se resumir nisto: “Como chegamos até aqui? Chegamos porque não conseguimos aprender muita coisa”. Não conseguimos, e talvez seja uma ilusão acreditar que possamos conseguir, consolidar verdadeiramente os valores do pluralismo e da tolerância, e mais de três décadas depois do fim da ditadura militar, não apenas ainda é possível elogiar com convicção o arbítrio, a perseguição, a tortura e o assassinato político, como tornou-se fator de identificação política e orgulho moral de certos eleitores.

Quer isto dizer que estamos à beira do retorno aos anos de chumbo, ao horror ditatorial, à perseguição e à eliminação de opositores, caso Bolsonaro vença? Não acredito em hipótese alguma nesse cenário. Qualquer que seja a ameaça populista autoritária de direita que Bolsonaro venha a representar, ela não será isso. Novamente, tenho certeza de que os cientistas políticos estarão muito melhor preparados do que eu para avaliar cenários futuros, mas não vejo ninguém sério apostando em uma reedição do passado.

Lamentavelmente, a militância de esquerda que tem se mobilizado especificamente na campanha que rivaliza com Bolsonaro tem se especializado em fazer crer que uma vitória do candidato do PSL representaria o início de prisões, torturas e mortes. Nesse cenário, não votar no PT e em Haddad seria o equivalente a apoiar o retorno à ditadura e à tortura, a volta do obscurantismo autoritário militar. Há tanta coisa errada nessa posição que fica difícil organizar uma reação a ela. De imediato, contudo, preciso confessar que, ouvindo Villa-Lobos e lembrando-me de Guarnieri a relatar aquele incrível episódio de nossa história, abalou-me profundamente perceber como a esquerda brasileira havia se degradado tanto. Como é possível que não sejam capazes sequer de respeitar a memória daqueles que efetivamente combateram um regime autoritário, que enfrentaram tanques nas ruas, quartéis no comando, prisões solitárias e torturas indescritíveis para, agora, mobilizar esse passado como argumento de defesa de uma quadrilha de corruptos saqueadores do Estado brasileiro?

A doentia e mentirosa retórica do “golpe”, que já se antecipara nos ataques à Operação Lava Jato em 2015, preparou a militância petista para a consolidação dessa narrativa. Assim, os intelectuais petistas acabaram por criar as condições de propagação de uma versão dos fatos recentes da política brasileira segundo a qual os homens responsáveis por saquear o Estado brasileiro, desviando bilhões e bilhões de recursos públicos para os cofres do partido e, frise-se, para suas contas pessoais, como Lula e José Dirceu, acabaram por se tornar “guerreiros do povo brasileiro”, “heróis” de uma resistência imaginada e lutadores por uma libertação que só poderia ser a de seus ativos pilhados aos brasileiros. Lula, em particular, seria “prisioneiro político”. Ainda segundo essa versão da narrativa construída pelos formuladores do PT, a eleição é, antes de qualquer coisa, ilegítima; ocorrendo a eleição, só poderia haver um resultado, que é a vitória de Haddad, escolhido, preparado e orientado por Lula desde a prisão em Curitiba para executar suas políticas.

Assim, os formuladores de narrativas do PT criam uma versão para nosso atual estado de coisas em que não apenas o partido é exclusivamente uma vítima de circunstâncias ou de ataques planejados, como qualquer coisa que não represente adesão ao partido é equivalente ao “fascismo”, quer em sua roupagem militarizada, quer em sua versão “civil” — qualquer candidato opositor ao petismo e simpático ao ou apoiador do processo de impeachment de 2014. Para além de se posicionaram como “mentores intelectuais” dos crimes petistas (articulam sua visão de mundo, consolidam essa metafísica para leitores, para alunos, para o público em geral, e, por fim, justificam qualquer coisa que escape ao senso de justiça das pessoas), a visão desses quadros do petismo na imprensa e nas universidades avilta a memória de jovens idealistas e históricos combatentes de esquerda ao ao nivelá-los aos dirigentes petistas que, aliados à crônica corrupção e ao histórico fisiologismo da direita brasileira (que atende pelo nome mais geral de “Centrão”, as mais das vezes), nada mais fizeram que nadar de braçada no dinheiro público, construir suas fortunas pessoais e usar os pobres brasileiros como escudo humano, protegendo-se com eles do cerco da justiça e da rejeição do eleitorado.

Como seria possível reconhecer em uma candidatura construída nessas circunstâncias qualquer vestígio de superioridade moral em relação ao candidato adversário?

Novamente, é necessário esclarecer que no imenso contingente de votos previstos ao candidato petista (cerca de 25%) há uma grande variedade de motivações e de justificativas para o voto em Fernando Haddad. Há uma considerável parcela de eleitores, sobretudo os mais pobres, que decidem com base na lembrança dos bons tempos da economia brasileira e, por consequência, de suas melhores condições de vida. Não se deve considerar esse eleitor em bloco.

Igualmente, também no caso do eleitor petista, não estou interessado nesse contingente de votos. Tampouco quero fazer alguma análise política da trajetória do PT e de suas atitudes recentes na política brasileira. Interessa-me, como já está claro, o eleitor que, consciente das práticas criminosas e organizadas do PT descritas acima, não apenas escolhe o PT como acredita na superioridade moral de sua escolha.

O grande argumento que vem sendo mobilizado por intelectuais petistas e disseminado por seus eleitores é que se trata de um enfrentamento com o “fascismo”, com a defesa de ditaduras, com  “apologia à tortura”. Bolsonaro representaria esse polo autoritário, ao passo que o PT, mesmo que se considerasse o conjunto de práticas criminosas do PT (coisa que esses intelectuais não aceitam), deveria restar como inequívoca alternativa democrática, anti-autoritária.

Ocorre que isso simplesmente não procede.

Não é apenas que se deva considerar os crimes petistas na administração da máquina pública brasileira, ideados com a convicção de aparelhar o Estado, controlar-lhe as contas e drenar os recursos financeiros para se manter no poder, como um ataque inaceitável à democracia. É fato que o modo petista de dominar o Estado e de saquear as finanças constituiu, sim, um modelo de crime organizado voltado para o ataque à democracia. Mas não é esse a questão, ainda que essa seja uma bela questão.

O que há de mais escandaloso diante do discurso chapa petista em defesa da democracia e contra o “fascismo” de Bolsonaro é que não há uma única acusação relevante do ponto de vista moral em matéria de liberdades políticas e defesa dos direitos humanos que não possa, em alguma medida, ser feita contra o próprio PT.

Não há partido que mais tenha se organizado para constranger, perseguir e atacar a imprensa e os jornalistas que o PT. Daniela Lima, na Folha de S.Paulo, relembra um episódio recente: “Em 2013, fui cobrir pela Folha o ato de dez anos do PT no governo. Houve tumulto na entrada. Fui checar. Militantes viram meu crachá. Tomei um chute pelas costas e fui chamada de coisas como “cadela do PIG” —termo usado por detratores quando a imprensa era chamada de golpista, e não de esquerdista como agora.” A prática de agredir jornalistas, atacar as sedes dos veículos de comunicação e desprezar a liberdade de imprensa é uma constante do PT, traduzida formalmente na sua obsessão por controlar a mídia com desculpas “sociais”.

Não é nada melhor o histórico do PT em termos de convivência pacífica com os adversários e práticas violentas. Durante toda a história do partido, o que quer que não fosse o PT não tinha direito à luz do dia. Não será ocioso lembrar que o PT se recusou a participar da eleição no Colégio Eleitoral que tirou o País da ditadura e nos conduziu à democracia (expulsando seus dois quadros que decidiram votar em Tancredo Neves); que o PT se recusou — vamos frisar: se recusou — a assinar a Constituição Nacional de 1988; que o PT se recusou a participar de um governo de coalizão nacional após o impeachment de Fernando Collor; que o PT se recusou a apoiar o Plano Real e todas as conquistas econômicas do país dele advindas. Nada de bom que já tenha sido produzido no País pode existir se não for conduzido pelo próprio PT.

Essa incapacidade de conviver com as alternativas em uma democracia não tardou a se traduzir em práticas violentas muito concretas, indo muito além dos usuais ataques a jornalistas. O covarde episódio de agressão a Mário Covas em 2000 (o candidato ainda enfrentava um câncer) dias após o líder petista declarar que o PSDB tinha que apanhar “nas urnas e nas ruas” foi apenas um aperitivo.

Em março de 2015, poucas semanas após Lula discursar ao lado de João Pedro Stédile, do MST, conclamando o líder dos Sem Terra a convocar seus “exércitos” à rua, o chefe petista conseguiu o que queria: o MST foi às ruas com seu exército no dia 11 de março, em grandes e hipócritas manifestações de “defesa da Petrobrás” contra a Lava Jato. Com os exércitos na rua, sem respeito à lei, o MST paralisou estradas e, em uma delas, sem o devido acompanhamento das forças legais quando uma manifestação é autorizada, uma família de três pessoas morreu carbonizada em um acidente em um dos pontos da manifestação dos Sem Terra no Sergipe.

A lista de práticas violentas da militância petista é longa, mas vale citar mais um episódio: em 5 de abril de 2018, um homem que gritou — gritou! — impropérios contra o PT e Lula em frente ao Instituto que leva o nome do ex-presidente foi agredido a socos e pontapés por dois militantes do PT, um dos quais ex-vereador pelo PT em Diadema, o Maninho do PT. O homem sofreu traumatismo craniano.

Será que o leitor conseguirá encontrar os artigos dos intelectuais petistas condenando veementemente essas práticas de organização criminosa, essa coordenada violência política instrumentalizada para fins partidários, essa soberba que bloqueia qualquer diálogo e justifica qualquer prática? Não vai. Vai encontrar alguns acenos, com expressões como “os erros do PT”. Objetivamente: é muito mais do que erro.

Do mesmo modo como o PT e seus intelectuais jamais fizeram autocrítica alguma, tampouco foram capazes de mostrar que faziam alguma distinção entre os diversos adversários — que sempre trataram como inimigos. O eleitor moral de Haddad hoje pede votos em sua candidatura para combater o “fascismo” de Bolsonaro, mas tratou como “fascista” Alckmin, Serra e Aécio. O que não for o PT é fascista. Que superioridade moral pode vir disso?

Restaria ao voto no PT que se apresenta como moralmente superior o discurso histórico no âmbito de direitos humanos, isto é, o bolsonarismo, com seu discurso de louvor à ditadura e à tortura por ela praticada, encontraria no PT um objetor moral. Seria ótimo se fosse assim, mas não é.

O PT não foi apenas aliado político de todas a ditaduras de esquerda (ou vagamente populistas e nacionalistas) ao longo de seu período no poder, protagonizando momentos dolorosamente constrangedores para os que defendem os direitos humanos, como foi seu financiador efetivo, articulando Caixa 2, verbas públicas (BNDES)  e propinas para alimentar campanhas e governos em Cuba, Venezuela, Nicarágua e ditaduras africanas. Que moral tem o eleitor petista para falar em ditadura e tortura quando, entra ano e sai ano, o seu partido continua defendendo com unhas e dentes a carcomida ditadura bolivariana da Venezuela, uma das maiores tragédias humanitárias em escala global, hoje? Que moral superior pode ter um eleitor que cegamente deposita sua confiança em um partido que, no governo, conseguiu a façanha de apoiar o regime linha dura antissemita, homofóbico e racista de Ahmadinejad no Irã, com suas práticas de execuções de homossexuais enforcados em guindastes e exibidos em locais públicas?

Foram inúmeras as vezes que o PT pode mostrar que, a despeito de delicadas questões de política internacional, opunha-se a tais práticas. Sua escolha, como sempre foi a escolha da militância de esquerda linha dura, foi a de endossar os desrespeitos aos direitos humanos e culpar a vítima. Lula, em 2009, enquanto o governo iraniano reprimia e matava nas ruas, disse que aquilo era “briga de corintiano e palmeirense”. Em visita a Cuba em 2010, criticou os presos políticos por fazerem greve de fome. Até recentemente, se prestava a ser garoto propaganda dos gângsters do bolivarianismo venezuelano, regime que Haddad fez questão de defender, colocando a culpa pela escalada da crise na oposição.

O eleitor moral do PT, por acaso, julga que o sangue derramado em masmorras bolivarianas é menos sangue do que o daqueles que foram mortos e torturados pela ditadura brasileira? Como se vê, a repulsa do eleitor moral do PT à ditadura é seletiva: certas ditaduras são boas; sua recusa à tortura é cuidadosamente escolhida: os nossos, os da esquerda, são torturadores do bem. Que tipo de superioridade moral pode ser essa?

Como poderia o voto nessas posições iliberais, autoritárias e antidemocráticas ser superior moralmente?

IV. Uma triste conclusão

Agora que este texto vai ao ar, é possível que os resultados surpreendam mostrando a vitória já em primeiro turno de Jair Bolsonaro ou, quem sabe, uma sua larga vantagem para o segundo turno. Repito aqui  que disse acima: não acredito em nenhum tipo de descalabro ditatorial, um inferno persecutório — como é a Venezuela, na expressão de Mário Vargas Llosa — em caso de vitória do ex-Capitão. Nem quero avaliar cenários políticos futuros.

Apenas constato, com uma tristeza que é pessoal, que duas, talvez três gerações acima da minha não conseguiram fazer com que as alternativas no cardápio da jovem democracia brasileira se mantivessem em estrito compromisso com os valores da liberdade, do pluralismo e da tolerância que devem caracterizar uma sociedade moderna e aberta.

E, pior, à esquerda e à direita, percebo que a minha geração não parece conseguir resultado melhor, contentando-se, quando muito, com alguma virada de jogo no terreno das ideias econômicas.

Que algum jovem no futuro, ao ouvir o “Prelúdio” das Bachianas Brasileiras No4, tenha melhores recordações que as minhas — um País com melhores alternativas políticas.

Eduardo Wolf

Eduardo Wolf é Doutor em Filosofia pela USP e fundador do Estado da Arte.