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Andy Kaufman: brincando de John Cage

por Jacques Fux

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Everyone lives in his own fantasy world,
but most people don’t understand that. No one perceives the real world.
Each person simply calls his private, personal fantasies the Truth

Frederico Fellini

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Andy Kaufman e Jerry Lawler

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1.

Há trinta anos o público aguarda ansiosamente pelo seu retorno. O retorno do filho amado, odiado, brincalhão. Aquele que zombou, quando ninguém imaginava que caberia ali uma sátira. E que falou sério, quando ninguém mais acreditava em suas palavras. Ele inventou um personagem. Vários protagonistas de inúmeras vidas. Diversas celebridades de um grande circo real. Mas ninguém jamais compreendeu quem ele era efetivamente. Ele transcendeu os limites do real. Do simbólico. Da imaginação e do próprio imaginário. Há trinta anos Andy Kaufman saiu de cena. E desde 1984 todos aguardam pela sua volta, especulando se ele, de fato, teria ludibriado até a própria morte.

Desde pequeno Andy era uma criança especial. O primeiro neto, o primeiro filho, o primeiro com raízes equivocadamente americanas. Nasceu em 1949 em Nova York. Quatro anos depois do término Evento que atestaria o fim da poesia. O epílogo de um utópico romance. O extermínio da possibilidade da ficção. Ele foi concebido nesse mundo ferido. Em uma família marcada pela constrangedora, e atenta, presença do olhar do outro. Uma comunidade que, mesmo não tendo vivido Auschwitz, nunca mais poderia deixar de sentir esse enorme terror.

Mas ele era diferente. Ele tinha que ser diferente. O mundo sempre lhe foi por demais verossímil. Assim, desde muito jovem, ele quis fugir de toda essa realidade. Dessa dor permanente no imaginário do seu povo. Desse outro que ele nunca conheceu. Desde muito jovem ele criou um interlocutor para suas fantasias. Um personagem para se entreter, além de declarar que algo além, muito além da própria imaginação e realidade, pudesse existir. Seu primeiro espectador foi Dhrupick. Ele era Andrew Geoffrey Kaufman, mas também era Dhrupick. Este último não herdou nenhuma lembrança dolorosa. Não viveu em um mundo repleto de preconceito, amargura, desentendimento. Não tinha nenhuma amarra, e nenhum medo. E Andy aprendeu, muito cedo com Dhrupick, a se divertir, muito seriamente, com a possibilidade de ser um Outro. E de olhar para si próprio. “Every once in a while, every week or two, I would wake up in the morning and I would say ‘I think I’ll be Dhrupick’”.

Seus colegas de infância o chamavam de louco. Um dia ele foi a escola trajando um quimono. Ridículo e divertido. Seu professor lhe perguntou o motivo dessa vestimenta. Ele respondeu que essa era sua roupa habitual, afinal ele era o irmão gêmeo de Andy, Dhrupick, e sempre usava essas roupas em público. Ele teve que ser enviado para a diretoria, que o mandou ver um psicólogo.

Ele era o estranho. Ele era aquele que brincava e que todos achavam que falava sério. Aquele que negava a própria mentira, mas que não se tornava uma verdade. Aquele que inventava, e falseava, a própria ficção, tornando-a mais próxima de uma realidade inconcebível e perfeitamente real. Ele era louco ou gênio?

Seus amigos, a mídia, o show business, e até Hollywood, também nunca souberam dizer se ele era um gênio ou um louco, nem mesmo quando ele interpretava um papel que seguia um roteiro. O mundo se encantava, mas também detestava as criações, invenções e devaneios desse performer. Ele desejava o ineditismo, o extraordinário, o incomum. E foi isso que ele conseguiu.

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Andy Kaufman (Reprodução)

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2.

Seu pai Stanley nasceu em 1922. Formado na prestigiosa Penn University, foi convocado para o exército em 1944, e enviado à Normandia cinco dias antes do D-Day. Ele realmente viu a morte de perto. Participou de uma das noites mais sangrentas da história. Viu amigos morrerem. Teve mais do que sorte. Ferido, regressou aos EUA, e pediu a mão de Janice Bernstein em casamento.

A figura dos pais sempre marcou a vida de Andy. Ele sempre quis mostrar aos pais que sua profissão era importante e que estava fazendo algo inovador e ousado. Ao atuar, imaginar uma cena, um evento, um acontecimento, Andy sempre pensava na recepção de seus pais. Mas eles também faziam parte das invenções e pegadinhas do performer. Nunca souberam muito bem quando quem era o filho deles. Qual dos personagens era o legítimo filho que eles tanto se preocupavam. Eles, desde a tenra infância do filho, não compreendiam o seu mundo. Não entendiam as criações e as excentricidades do filho. Nunca decifraram o misterioso olhar do garoto.

            Ele foi uma criança extremamente tímida. E um adulto também, apesar da ironia. Seu primeiro dia de aula foi horrível. Um trauma que revisitou várias vezes quando atuava. No início do ano, todas as crianças tinham que se apresentar para a turma. Nada muito complicado, considerando que eram ainda muito jovens. E ele repassou sua fala por diversas vezes. Ele diria o nome, o nome dos pais, da irmã, e do bairro onde moravam. Seria uma declaração simples, sem muita paixão, sem imaginar-se em frente às câmeras, como sempre fazia na sua casa. Mas, ao ser perguntado pela professora, não conseguiu falar. Foi terrível. Viveu o pânico do silêncio. Silêncio que, anos depois, usou sempre a seu favor. Silêncio que o fez reler as criações de John Cage. Mas, naquele instante de pânico diante da impossibilidade de pronunciar uma palavra, apenas seus olhos mostravam o pavor que estava sentindo. O medo de que todos olhassem para ele, e o julgassem. O medo de uma reprovação. Censura. Confronto. No mundo que ele já inventava, ninguém nunca o menosprezava e desaprovava. Ele era o rei, o showman, o grande astro. Mas naquela pequena sala de aula, pessoas muita atentas a qualquer falha prestariam demasiada atenção nele. E ele não estava atuando. Por isso não conseguiu falar. E foi esse instante que Andy decidiu nunca mais viver um de seus muitos ‘eus’. Esse ‘eu’ que era tímido, que tinha medo do julgamento do outro, que tinha medo de atrapalhar o mundo do próximo. Ele deliberou a criação da ficção em prol da sua liberdade.

Mas aquele momento de derrota foi sentida por mais tempo. Na hora do intervalo ele se sentiu diminuído. Inútil. Aterrorizado. Tinha medo de que todos seus colegas, e a professora, fossem tirar satisfação com ele. Ele não tinha conseguido falar seu nome, suas origens, seu endereço, coisa que todos fizeram. Ele esperava que os outros meninos fossem afrontá-lo. Assim passou o recreio com a cabeça literalmente entre as pernas, imaginando o olhar incriminador dos outros. Mas, quando finalmente encarou o mundo, descobriu que ninguém prestava atenção nele. E sua dor foi ainda maior.

E foi nesse instante, talvez, que ele se deu conta que queria ser sempre o centro do show. Mas ele teria que inventar algo diferente para que isso acontecesse. Algo para enfrentar o medo do público, o medo do outro, o medo de si mesmo. Ele teve que conceber outros universos. Outras ficções. Outros personagens. E, a partir daquele dia, nem ele mesmo saberia quem ele se tornaria. Criador? Ator? Louco? Quem era Andy Kaufman?

E sua loucura risível passou a contagiar seus colegas. Ele encenava diversos personagens no recreio do colégio. Sozinho. Só queria fugir da dor da realidade. Ele, e seus outros ‘eus’, eram o seu pública. Mas, uma vez, uma criança chegou e o observou atuando. E gostou do que viu. Achou aquilo muito diferente, divertido e incompreensível. Ele já fazia algo que não era inteiramente lúdico. Era alguma coisa que causava estranhamento e curiosidade. Algo que transtornava. Se encontrava ali um menino, como outro qualquer, falando, gesticulando, cantando e dançando para ninguém, mas atuava para uma plateia de outra dimensão. Isso despertou certo incômodo nesse menino. Andy não queria audiência real, e nem amigos. E, com uma voz risível e com um olhar desconcertado, mandou que o menino observador, saísse daquele lugar. Ele falava muito seriamente, com um olhar de doido, e com caretas e gestos que imitavam um bicho estrambótico. E o menino, admirado com a cena kafkaniana, resolveu ficar. Andy compreendeu sua vocação. E, nos dias seguintes, a plateia de crianças assustadas, jocosas e interessadas, aumentou. Mas ele nunca tentava fazer algo engraçado, apesar dos risos compulsivos que despertava.

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Andy (Reprodução)

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3.

Ele sempre viu o mundo como uma ilusão. Uma invenção. Uma fantasia total. Mas de quem era essa invenção? De um deus a jogar dados? De um sonho de um outro, sem cabeça e montado num monstro, como o sonho de Kafka em Praga? Do seu próprio devaneio?

Ele sempre concebeu o mundo como uma grande fábula. Então, por que não atuar o tempo todo? Por que não ludibriar a si próprio e ao outro? O próprio conceito de mentira não se enquadrava em sua natureza e crença. Pela sua lógica, única, e talvez a verdadeira, tudo era cenário, tudo era semblante, tudo precisava ser interpretado. E assim o fez com maestria. Ele pode contemplar e apresentar o seu exótico mundo. Estranho, muito mais estranho que a própria ficção.

Aos quatro anos ele já brincava com as suas quimeras e inverdades: “Apparently, he was playacting all the time, really a showman”. Qual era a dor que ele escondia? Qual era o pânico que ele recalcava? Qual seria a memória herdada que ele gostaria de fugir? Seus pais ficavam preocupados, mas não sabiam o que fazer. Era algo inocente, revelador e criador, mas que despertava um receio na sua ‘normalidade’.

E como diagnosticar poesia, criação, originalidades? Nem mesmo um médico poderia tratar disso: “He was playacting even for the doctor lady, so how could anyone know the truth?” O médico também havia se tornado um telespectador. E Andy tinha que fugir dele também. Será que ele foi o verdadeiro, e único, ‘caso de poesia’ que o Drummond uma vez mencionou? Andy era Paulo? “Paulo tinha fama de mentiroso. Um dia chegou em casa dizendo que vira no campo dois dragões-da-independência cuspindo fogo e lendo fotonovelas. A mãe botou-o de castigo, mas na semana seguinte ele veio contando que caíra no pátio da escola um pedaço de lua, todo cheio de buraquinhos, feito queijo, e ele provou e tinha gosto de queijo. Desta vez, Paulo não só ficou sem sobremesa como foi proibido de jogar futebol durante quinze dias. Quando o menino voltou falando que todas as borboletas da Terra passaram pela chácara de Siá Elpídia e queriam formar um tapete voador para transportá-lo ao sétimo céu, a mãe decidiu levá-lo ao médico. Após o exame, o Dr. Epaminondas abanou a cabeça: -Não há nada a fazer, Dona Coló. Este menino é mesmo um caso de poesia”.

O que é a realidade? O que é ficção? O mundo ficcional é parasita do mundo real. “Por um lado, na medida em que um universo de ficção nos conta a história de algumas poucas personagens em tempo e local bem definidos, podemos vê-lo como um pequeno mundo infinitamente mais limitado que o mundo real. Por outro, na medida em que acrescenta indivíduos, atributos e acontecimentos ao conjunto do universo real (que lhe serve de pano de fundo), podemos considerá-lo maior que o mundo de nossa experiência. Desse ponto de vista, um universo ficcional não termina com a história, mas se estende indefinidamente”. Era isso que Andy se propunha. Ele propunha engrandecer e multiplicar o real, que não existe. Ele queria transpor os limites e as amarras do convencional, do banal, do perceptível. Ele almejou verdadeiramente criar algo além. Ele habitou a terceira margem, entre a loucura, sanidade, e a imaginação.

“Mas quanto ao mundo real, com a infinidade de cópias que é possível fazer dele, não sabemos ao certo se é infinito e limitado ou finito e ilimitado. Contudo, há outro motivo pelo qual nos sentimos metafisicamente mais à vontade na ficção do que na realidade. Existe uma regra de ouro em que os criptoanalistas confiam — a saber, que toda mensagem secreta pode ser decifrada, desde que se saiba que é uma mensagem. O problema com o mundo real é que, desde o começo dos tempos, os seres humanos vêm se perguntando se há uma mensagem e, em havendo, se essa mensagem faz sentido. Com os universos ficcionais, sabem sem dúvida que têm uma mensagem e que uma entidade autoral está por trás deles como criador e dentro deles como um conjunto de instruções de leitura”. São essas as questões de Andy. Ele mistura real com ficção e, por isso, ele embaralha mais a recepção de sua obra. Ele mistura e perturba o tempo. Há alguma mensagem codificada ali? Ele está atuando ou não? Ele é criador naquele instante ou um mero telespectador? O que ele faz, o que ele lê, o que ele supõe? Loucura ou certeza criadora?

Assim ele inventa outros personagens, que nem ele sabe quem são. Anos depois de criar seu Dhrupick, ele também se torna Tony Clifton. Este último, um outro de seus muitos ‘eus’ concebido para ofender deliberadamente o olhar e a posição confortável do outro. Ele queria constranger. Para polemizar. Desvirtuar a arte? Deformar o artista? Corromper o olhar do outro? Piada? Chiste? Inconsciente? Ele já começava sua fala pervertendo a figura do performer pago para entreter o espectador. “I don’t have to be here — you’re a lucky bastard to have me!”

Tony Clifton colocava em xeque a questão do chiste. Mas o que é a piada? A ironia? O cômico? Segundo Kant, o cômico tem a notável característica de ser capaz de nos enganar apenas um instante. Mas Tony, Andy, Dhrupick, Latka Gravas, clamava pelo eterno engano. Como encarar, então, essa falta de brevidade do cômico?

Talvez a questão fundamental do chiste seja sua brevidade. Uma das propostas do novo milênio de Calvino? “A brevidade é o corpo e a alma do chiste, sua própria essência”. Essência desprezada por Andy, já que muitas de suas abordagens não eram breves. Ele, muitas vezes, não negou alguma afirmação, não disse que algo era falso, não ‘finalizou’ a piada.

Um chiste diz o que tem a dizer, isto é, em palavras que são insuficientes do ponto de vista da estrita lógica ou dos modos usuais de pensamento e de expressão. Pode-se mesmo dizer tudo o que se tem a dizer nada dizendo. E era sem dizer que Andy concebeu seus personagens.

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Tony Clifton

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4.

Silêncio. Silêncio total. A primeira aparição de Andy em um programa de grande audiência. Saturday Night Live. Andy faz uma performance e permanece em silêncio para perturbar o público. Ele refunda a arte como John Cage. 4’33’’? Seria um incômodo burlesco? Uma licença para mergulhar em seu próprio ser? Esse ‘eu’ completamente esquecido e recalcado? Risível ou terrível?

Em 4’33’’, Cage nos apresenta uma “forma de arte vazia” e nos convida a experimentar o desabitado. Ele permanece sentado, na posição de pianista, sem fazer nada. Nenhum som em quatro minutos e trinta e três segundas. Mas nesses preciosos e inesperados instantes ele está invocando muita coisa. Toda questão artística, sensorial, política e institucional é questionada. Todos os pré-conceitos são interrogados e invertidos. Não há como dizer que se experimenta algum tipo de música através da emoção. Ou uma expressão em forma musical. Ou uma sensação de transitoriedade sonora através da plasticidade do espaço. Ou, apenas, uma simples “escuta” em sentido real ou imaginado. Mas enquanto um performer está sentado em frente a um instrumento musical sob o pretexto de realização de algo, que no caso surpreendentemente foi a execução do mais puro silêncio, os sons dos outros, do ambiente, do fundo da alma, parecem incomodar e despertar o público, já que choca e provoca o questionamento e o mal-estar.

Nada acontece. Mas um turbilhão de emoções começa a desenrolar nos telespectadores. Eles começam a se questionar, inicialmente. Algo está errado? Será que todos estão ouvindo alguma coisa, e só eu que não? O que está acontecimento.

E o tempo vai passando. As pessoas se entreolham. Sorriem. Estão incomodadas. Acham, inicialmente, engraçado. Depois começam a ficar irritadas. Sons começam a serem escutados. O público escuto, primeiro, sua própria respiração incômoda. Depois o som ao redor. E cada segundo a mais que Cage permanece parado e em silêncio, as pessoas começam a se aborrecer. A razão é suspensa. Ninguém sabe o que acontece.

Mas eles estão participando de uma performance único. Aquilo, aquele mal-estar, aquele estranhamente, aquela surpresa, nunca mais poderá ser experimentada. É um acontecimento único. Nunca mais o 4’33’’ despertará essas emoções. Esses incômodos. Essa inovação.

E ninguém nunca esperaria que Andy fizesse o mesmo em um programa ao vivo. O público de uma apresentação de piano é bem diferente, e bem menor, que o público da TV. Especialmente de um show como Saturday Night Live. E Andy provoca ao permanecer em silêncio. Esse silêncio constrange, e surpreende. Poucos o conheciam, e ninguém esperava por algo assim. E ele traz a tona uma nova forma de atuar. De brincar. De despertar emoções. Ele se cala, e o silêncio fala muito mais ao outro. Esse outro que queria se alienar é obrigado a refletir sobre o momento. O que está acontecendo? Tem algo errado? Algo errado comigo? E cada um se sente só, único, incomodado pelo outro e por ter que pensar em si próprio. Cage e Andy criam. Desestabilizam estruturas. Rompem conceitos. Sorte, muita sorte e muito azar daqueles que viveram esses momentos únicos e sublimes.

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Andy, SNL (Reprodução)

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5.

E como ludibriar a própria mentira, tornando-a ainda mais falsa?

O wrestling é um esporte, show, evento, concebido para ser mentira. Não há nada ali que não seja combinado. Tudo é ensaiado como um grande espetáculo, que clama por uma realidade. Os lutadores/atores se digladiam em um ringue, atuando como personagens mitificados, banalizados e ridículos. Eles estariam salvando o mundo de grandes vilões, o sendo os próprios criminosos que muitas vezes vencem os bonzinhos. Mesmo descoberta a farsa, esse show continua atraindo milhares de telespectadores, sobretudo os americanos.

Andy sempre gostou de assistir esse espetáculo. Assim como a maioria das pessoas, encantava-se com a performance e com o grande evento. E, também, desconfiava se tudo aquilo era armação ou se havia, de fato, uma disputa verdadeira pelo título da noite. Aquele incômodo, sentido por todos, enfeitiçava o olhar do menino.

Um de seus muitos ‘eus’, desde muito jovem, já praticava wrestiling nas suas fantasias. Mas ele era um garoto fracote, desengonçado e sem nenhuma aptidão esportiva. Mas isso não o incomodava. Havia algo de mais fantástico por trás daquele evento que a própria questão física.

E ele teve a vontade de lutar. De ter o seu próprio show. E que pudesse atuar e brincar com o público. Ele criou um personagem (ou era ele mesmo) que desafiava as mulheres em uma luta. Ele pagaria mil dólares para alguma mulher que o derrotasse. E, nesses shows, ele não cansava de tecer comentários preconceituosos contra o público. Ele, agora, era o Tony Clifton dos ringues. Ele queria ser odiado, detestado, amaldiçoado. E o wrestling, que muito parecia encenação e espetáculo, passou a ser encarado como um campo de batalhas, e as mulheres passaram a almejar uma luta real contra Andy.

Mas Andy acabava ganhando as lutas contra as mulheres. Até que o grande lutador da época resolver interferir. Jerry “The King” Lawler desafiou Andy para uma luta. Disse que aquele era um esporte verdadeiro e que Andy estaria depreciando a idoneidade da luta. Que lutar com mulheres era fácil e que ele deveria enfrentar alguém que soubesse de fato lutar.

E um evento foi organizado. Andy constantemente depreciava a luta e o “Rei”. Mas resolveu lutar, após muita discussão e ofensas. O público estava todo contra Andy. Eles o odiavam. Eles odiavam o ator de Hollywood, rico e famoso (e que fazia questão de jogar isso na cara de todos) e queriam vê-lo tomar uma surra. O público estava contagiado. Era tudo ficção ou não? Mas a emoção era tanta que a própria ideia de encenação foi apagada. E aquela luta, entre o “Rei”, representando o bem, e Andy, representando o abjeto, era a luta da vida de todos.

Lawler entrou no ringue e, após Andy fugir várias vezes de lá, conseguiu pegá-lo e dar um golpe/pilão nele. E o público se calou. O que era aquilo? O golpe era real ou não? Tinha de fato machucado um ator de Hollywood ou era tudo combinado? O que está acontecendo? E depois dos golpes, Andy estava imóvel no chão. Desacordado? E foi removido do ringue e levado para um hospital.

O público não sabia como agir. Eles estavam emocionados, mas não entendiam nada. Aquilo tinha sido uma luta verdadeira? Todo evento era, de fato, verdade? Eles experimentavam um sentimento de culpa. Culpa por achar que aquilo tudo era invenção, ou por ter certeza de que tudo não passava da mais pura realidade? O pescoço lesado de Andy simbolizava o quê?

E Lawler e Andy se encontraram outras vezes. No David Letterman Show trocaram ofensas. Andy foi a público e disse que processaria Lawler. Que ele havia machucado uma pessoa de verdade. Que aquilo era um absurdo. Que ele era um criminoso. Que merecia ser punido. O “Rei” dizia que havia vingado o público. Que ele merecia. Que havia machucado sim, e que o machucaria de novo. E que, já que resolveu destratar um mundo tão sério e importante quanto o do wrestling, que ele devia arcar com as consequências.

E esse espetáculo continuou por anos. Mesmo depois da morte, ou do espetáculo do desaparecimento de Andy, ninguém nunca soube a verdade. Ou se houve de fato uma verdade. Muito tempo depois, com a exibição do filme O mundo de Andy, disseram que tudo aquilo tinha sido combinado. Que era uma grande armação. Verdade? Mentira? Ficção? Fica a dúvida no ar. Tudo poderia ter sido planejado por Andy. Ou não.

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Kaufman em wrestling com Debbie Harry e Caitlin Clarke, 1984

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6.

Ele ludibriou o mundo. Ele criou um personagem que nem ele próprio saberia caracterizá-lo. Ele era louco, gênio ou apenas uma pessoa comum tentando enganar a realidade de um mundo fracassado?

E seu derradeiro show seria o desaparecimento. Ele não poderia morrer como todos os mortais. Ele teria que deixar uma dúvida no ar. Um questionamento. Mais um constrangimento. Ele disse que estava com câncer. Ninguém acreditou. Ele levou a família, e os amigos, ao hospital e mostrou os exames. Descrédito total. Ele começou a definhar, a buscar tratamentos alternativos, a perder a graça. Estaria somatizando sua própria doença? O câncer seria real ou fruto de sua de vontade de realizar a mais inédita morte?

Ele armou um show. Foi se escondendo das câmeras lentamente. E sempre mencionava com os amigos que queria fazer a mais inédita travessura. Ele morreria, mas permaneceria vivo. E o funeral aconteceu. Ele deixou um vídeo gravado. Ele deixou um testamento. Ele tem um atestado de óbito. E sempre dizem que ele vai retornar. Que tudo foi armado. Que ele desaparecia por vinte anos e depois surgiria lutando, ou em algum show de TV. Que ele burlaria a morte.

Dizem que ele se apresenta como Tony por aí. Dizem que Latka continua fazendo suas aparições em pequenos shows, em cidades esquecidas. Dizem que ele estaria interpretando o fantasma de um judeu, sempre perseguido, amado e odiado, e que tem que se inventar e se assimilar em todos lugares. Dizem que ele é o verdadeiro Zelig do Woody Allen. O camaleão, o que se metamorfoseia para ser aceito, mas que ridiculariza a ficção o tempo todo. Dizem, dizem, e continuarão dizendo por aí. Por que a ficção, e a impossibilidade dela, é muito mais rica e mais palpável que a ilusão da realidade.

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Kaufman, 1982

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Ensaio publicado originalmente no Chão de Feira.

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Jacques Fux

Jacques Fux é escritor e professor. Autor de 'Antiterapias', vencedor do Prêmio São Paulo, 'Literatura e Matemática', vencedor do Prêmio Capes de melhor Tese do Brasil e finalista do Prêmio APCA, 'Brochadas', Prêmio Nacional Cidade de Belo Horizonte, 'Meshugá: um romance sobre a loucura', vencedor do Prêmio Manaus, 'Nobel', 'O Enigma do Infinito', 'Georges Perec: a psicanálise nos jogos e traumas de uma criança de Guerra' e 'Ménage Literário'. Doutor em Literatura pela Université de Lille 3 e pela UFMG, pós-doutor pela Unicamp e UFMG. Foi pesquisador visitante na Universidade de Harvard. Seus livros foram publicados em italiano, espanhol e hebraico.