Resenha

Não, Vânia não tem razão! Uma quase resenha de O anel de Giges

por Carlos Alberto Gianotti

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“… seja qual for o objeto do desejo de um homem,

ele o chama de Bem, e tudo que odeia, de Mal.”

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Hobbes, tirado de O anel de Giges

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Como sempre acontece em se tratando de escrito de Eduardo Gianetti, foi-me prazerosa a leitura do há pouco lançado O anel de Giges. Fez-me lembrar de Autoengano, obra desse autor que li quando publicada, em 1998. À época, fiquei surpreso diante desse livro, na medida em que, precisamente por ter sido escrito por alguém do mundo universitário, com formação em ciências econômicas e sociais, não se estruturava conforme o enfadonho estilo acadêmico de expressão escrita. Tratava-se de leitura agradável para qualquer pessoa instruída, um ensaio analisando aspecto pouco considerado por cada um de nós na própria condição humana: o sempre presente autoengano. Mas quais autoenganos? Todos, dos miúdos aos graúdos que a toda hora nos autoimpingimos: a começar pelo fato de nos acharmos tipos com princípios éticos inquebrantáveis, amigos da (nossa) justiça, procedendo consoante a melhor moral pública, contidos nas eventuais destemperanças, bons pais, amigos fiéis, verazes no que manifestamos. Enfim, é nesse sentido a análise de Giannetti na obra singular em que se constitui Autoengano: faz-nos entender que nem sempre somos o que acreditamos ser e que fugimos ao diálogo honesto com nós mesmos na busca da individuação.

Agora, mais de vinte anos passados, ao longo dos quais Giannetti nos ofereceu um conjunto de outros títulos, sai do prelo, com o mesmo invulgar e agradável estilo narrativo-ensaístico, O anel de Giges, livro que mantém certa imbricação teórica-conteudista com Autoengano.

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(Reprodução)

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Segundo o historiador Heródoto, Giges, o do título, era membro da guarda pessoal do rei Candaules, da Lídia, no séc. VII a. C. Narra uma trama na corte consumada com o assassinato do rei por Giges, que depois desposa a rainha e se torna monarca faustoso. Na verdade, há outras versões para esse relato de Heródoto.

A fábula do anel de Giges aparece no segundo livro da República de Platão e é desprovida de sentido histórico. Nela, Giges, um modesto pastor, certo dia de tempestade em que estava no campo, viu abrir-se uma enorme fenda na terra. Intrigado, desce ao fundo da fenda e lá encontra um cavalo de bronze, oco, com janelas, dentro do qual estava um cadáver nu; em um dos anulares, um anel de ouro. Giges retira-o do defunto, vai embora levando consigo o adorno. Dias depois, usando o anel, constata que, toda vez que o girava no dedo, fazendo com que seu engaste ficasse voltado para a palma da mão, ele se tornava invisível. Ora, alguém que se pode tornar invisível, será capaz de fazer o que venha a desejar, sem ser punido por o que quer de condenável que o faça. Enfim, Giges percebeu que estava livre para fazer e obter o que lhe aprouvesse.

Partindo desse ponto da narrativa fabular, Giannetti conduz o leitor a, com ele, conjecturar — em tom dialogal — acerca de diferentes possibilidades para quem, imaginavelmente, viesse a possuir um tal anel, a salvaguarda para proceder como desejasse.

Então, a questão posta pelo autor é se àquele que facultasse se tornar invisível para agir, o faria sempre no autointeresse, ou respeitaria os ditames da honestidade e considerando o bem-estar de outrem? Vai adiante, agora com o economista G. Stigler, que acredita que em caso de confronto entre o meu interesse e a ética, na maioria dos casos o meu próprio interesse prevaleceria.

As conjecturas do autor sobre os aspectos morais que advêm do uso do anel são variadas e a análise sobre cada uma é minuciosa. O Giges-guardião da República de Platão, o Giges cristão, Rousseau e o anel, Giges-sem-lei. Giannetti, de estilo elegante, é também um bom frasista, o que torna a leitura agradável, ainda que o contexto se faça, às vezes, desnecessariamente alongado e com passagens em que há repetições de ideias.

Poderá acontecer ao leitor, conforme ocorreu comigo, de, ao concluir a leitura de dois terços das páginas de O anel de Giges, começar a se perguntar: mas aonde o autor pretende chegar? Que ideia final resultará dessas idas e vindas ao longo de um mesmo assunto, qual seja, a especulação acerca do anel de Giges e dos efeitos comportamentais por ele produzidos se, supostamente, estivesse no dedo de diferentes criaturas em diferentes contextos históricos-religiosos? Giannetti não elabora qualquer conclusão, apenas discute, ao longo do entrecho, possibilidades. No que seria o capítulo final do livro, Giannetti questiona: “E se o anel viesse parar no dedo de um de nós? […] Sob a prova do anel, como é que me serei? Que Giges sou eu?”

No Postscriptum, composto por três capítulos de natureza pessoal, que se pode considerar inapropriado ao conjunto, fica claro que o tema da fábula acerca desse anel e seu poder mágico há muito intriga Giannetti; daí o livro, que trata precisamente da conduta moral daquele que presumivelmente possuísse um anel com aquele poder.

Ainda no Postscriptum, o autor transcreve um diálogo com Vânia, sua amiga de há muito, que o vai visitar em Tiradentes, MG, onde ele fazia período sabático para, isolado, redigir a obra. Vânia é a primeira leitora, creio, dos rascunhos dos originais do livro e, nessa conversa, por já ter feito leituras preliminares, enuncia uma crítica, a meu ver improcedente, ao andamento da obra. Diz que Giannetti não se revela no escrito, apenas analisa relações entre possibilidades factuais-comportamentais por ele desenvolvidas, sem “mostrar a cara”, dizer o que ele “pensa, sente e acredita” sobre o explanado. Vânia não tem razão! Giannetti não tem por que dizer ao leitor o que pensa. Para além disso, induz o leitor a pensar a partir do relatado, sem tomar posição. Esse é o estilo ensaístico de Giannetti, como o foi em Autoengano, em O mercado das crenças ou em A ilusão da alma. Ele arrazoa sobre o tema, argumenta, analisa, mas, penso que acertadamente, deixa para o leitor a conclusão.

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Eduardo Giannetti (Evelson de Freitas/Estadão)

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Carlos Alberto Gianotti

Carlos Alberto Gianotti é Professor de Física e editor. É autor de "Falar o que seja é inútil" (Circuito Editorial, RJ, 2016).