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O Brasil dos Catrumanos: nossa realidade atual?

por Kathrin Holzermayr Rosenfield

(Detalhe da illustração da capa da nova edição de ‘Grande Sertão, Veredas’, de Guimarães Rosa, inspirada em bordados de Bispo do Rosário. Foto: Companhia das Letras)

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Nesse momento, o Brasil soma ao caos social, sanitário e econômico mais um escândalo com graves suspeitas de corrupção, agora instalada na mesma instituição que deveria ser o lastro de uma sociedade organizada. A proporção e a vileza dessa disfunção atinge proporções que já desafiam nosso vocabulário disponível, exigindo novos termos que captem essa inédita degradação humana. Devem expressar adequadamente as regiões cavernosas do opróbrio dos membros da classe governante executiva. Gostaria de abordar aqui apenas alguns detalhes que me parecem ser sintomas de algo mais grave, algo que vai além dos deslizes e crimes da política comum. São sintomas de uma incompreensão radical não só da sociedade democrática, mas da sociedade como tal.

Começo com dois exemplos: primeiro, o caderninho da esposa Queiroz com suas anotações de somas surrupiadas da Assembleia. Nele estão também os nomes de milicianos que oferecem apoio eficaz em caso de prisão. Detalhe mais picante: o fato de a família extensa ter se beneficiado do fundo de emergência destinado aos mais vulneráveis na atual crise. Em segundo lugar, o gesto do presidente na rampa do Palácio, enxotando um cidadão que o interpelou com uma legítima preocupação, sobre o que a Presidência e demais autoridades têm a dizer para os parentes das vítimas do coronavírus. Bolsonaro já havia dito que que “morrer faz parte da vida”, mas também acrescenta “Agora já pode ir embora daqui!” — ou seja, sumam daqui ou soltarei a tropa de choque.

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Toda essa indiferença, alguns diriam, lembra o nosso velho Brasil mítico captado, no século passado, em obras paradigmáticas como Os Sertões de Euclides da Cunha, Casa Grande e Senzala de Gilberto Freyre e Grande Sertão: Veredas de J. G. Rosa. Mas outros dirão: está para além disso, para aquém. Algumas semelhanças mesmo assim: é um Brasil saudoso do bom mando, o Brasil ansioso de permanecer na simplicidade arcaica de uma estrutura hierárquica. Que tragam de volta os patriarcas, os guerreiros de antanho saindo do meio das névoas. O mando bem mandado e obedecido. E que venham os acólitos para fazer os serviços domésticos, religiosos e outros. Que sejam caninos em sua obediência.

Achávamos que essa mentalidade de fundo estivesse superada. Que tivéssemos instituições sólidas que garantam na realidade essa superação louvável. Tomara que essa superação se sustente no lodaçal de crises que podem sim fragilizar as aspirações mais nobres partilhadas por muitos brasileiros (tomara que sejam 70%)! No entanto, um comentário: há nisso tudo um traço constante, uma pendor recalcado ou, pior, radicalmente posto fora do âmbito do questionamento racional. Chama atenção, em ambos detalhes (e em inúmeros outros que a crise do coronavírus trouxe à tona no Brasil), isto: as atitudes associais, os gestos pré-sociais, desumanas e, mais, inumanas, que parecem dispensar até mesmo a ideia mais primitiva e arcaica de um contrato social.

Para o espanto de cidadãos esclarecidos (e até dos muitos brasileiros que elegeram o atual governo), o atual presidente não se constrange de acenar com a força militar. A imprensa já começa a cansar dos relatos de gestos à toa, sem qualquer propósito e necessidade, a não ser a simbolização e a intimidação. A opinião começa a dizer: cão que ladra não morde… Mas, cuidado: vamos ver se essa ideia se sustenta à luz da sabedoria mítica milenar (que o presidente e seus generais evidentemente ignoram).

Esses gestos revelam não uma concepção de governo (nem tradicional-autoritário, nem moderno), mas impulsos de dominação primários. Todas as sociedades arcaicas ocidentais (e mesmo as mais refinadas do Oriente) temeram esses impulsos. Mesmo os mitos arcaicos salientam a necessidade do controle dessas funções, para construir uma comunidade. O grande antropólogo Georges Dumézil analisou os mitos indo-europeus, com seus relatos fundacionais que organizavam a estrutura social numa estrutura imaginária tripartite. Três funções básicas hierarquizam a sociedade — a primeira categoria é daqueles que vertem sangue (guerreiros-conquistadores); a segunda, dos que governam (soberanos e sacerdotes); a terceira compreende todos os que trabalham (todo o resto da sociedade). Esses mitos, num segundo momento, parecem prever um conluio entre os impulsos primários da agressão sangrenta e o governo em si mesmo. Em todos está previsto, sem exceção, que os guerreiros e conquistadores, por mais meritórios sua tarefa de conquistar terras e condições para a sobrevida da comunidade, devem ser honrados apenas fora dos limites da cidade e do território da vida social civilizada. Os guerreiros em tais mitos sequer têm direito de entrar nas cidades. No interior do espaço social, apenas o soberano e os sacerdotes desempenham rituais (lentos, graves, solenemente respeitosos da vida dos cidadãos) que recusam, ponto por ponto, os gestos típicos da vida guerreira (impulsiva, rápida, sumária, crua, violenta). E os mitos também alegam com clareza as razões pelas quais devemos desconfiar da força guerreira e limitar sua presença no estado e na sociedade: Sua formação é o inverso da formação social. As habilidades para as quais são treinados os guerreiros são o contrário das que sustentam a vida da sociedade.

Para falar mais claro: não há no que foi dito nenhum viés antimilitarista. Todo Estado precisa de uma força militar; todas as sociedades conhecem, treinam e empregam tanto as tropas regulares (o exército) como também certas unidades conhecidas como serviços secretos — mas de preferência não em milícias ou guerrilhas ocultas, trabalhando à revelia do bem maior da sociedade. Tanto o serviço secreto como essas últimas tropas ocultas emergiram das habilidades instintivas de sobrevivência e afirmação primária que já receberam a atenção de rituais de treino e contenção nas sociedades arcaicas. Na Grécia antiga, por exemplo, os adolescentes foram submetidos a um rito de passagem, a Efebia. Eles precisavam mostrar sua capacidade de sobreviver durante dois anos no mundo selvagem, com base nos seus instintos e ardis mais básicos, usando os faros animais e as armadilhas mais traiçoeiras para dominar entre as feras. Mas esse treino permanecia limitado a um tempo (2 anos) e a um lugar (o mundo selvagem, fora da cidade). Depois desse período, eles voltavam para a sociedade num rito solene, cortando o cabelo e largando as armas silenciosas e ocultas, para pôr sua força à serviço da sociedade.

O momento atual recoloca de modo muito sério a questão do bom uso dessas forças com as quais não convêm brincar, nem gesticular com rompantes bruscos.

Pois nenhuma sociedade primitiva, nenhuma comunidade e nem sequer uma tribo arcaica tem condições de criar uma vida social ordenada ou civilizada digna do nome, se ela não lograr conter os impulsos primários da agressividade liberados pela função da caça, da guerra e da vida militar.

Os mitos trágicos mais conhecidos (p.ex., a Oresteia) expõem as consequências catastróficas do espírito guerreiro e dos ardis ocultos quando esses conseguem penetrar no âmago da sociedade e contaminam a sede de poder no palácio.  Os mitos insistem nesse ponto porque sabem que todo ser humano traz dentro de si esses pendores avessos à vida social respeitosa de leis e regras. Se até as sociedades antigas que dependiam de conquistas guerreiras para sua sobrevivência, desconfiavam da força militar e ainda mais da violência oculta, quanto mais nossa sociedade muito mais complexa não deveria desconfiar e denunciar os abusos dessas forças!

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À luz dessas ponderações, que partiram de observações de Minima Moralia para os conhecimentos milenares, podemos e devemos dizer, com toda ênfase, que, nesse momento não estão ameaçados apenas a ordem democrática e o Estado de Direito; o mal está muito mais embaixo, pois este governo parece operar num registro anterior e exterior às regras da linguagem e da ordem moral-social: no covil dos impulsos primários.

Isso se reflete no idioma cada vez mais brutal agora em uso. Nos últimos dois anos passamos das mesóclises aos gaguejos e urros presidenciais. E esses últimos lembram uma cena curta mas marcante no romance Grande Sertão: Veredas — o encontro de Riobaldo Urutu-Branco com os catrumanos. Como já sinaliza o nome Urutu-Branco, Riobaldo se desumanizou para assumir, ao modo de um monstro-réptil insensível, o mando dos jagunços. Mas mesmo esse chefe de guerra selvagem, destemido e louco, sente um secreto arrepio e horror quando topa com os catrumanos, seres das cavernas que não sabem nada de regras e leis. E numa vertigem aterrorizada imagina o que poderá acontecer se esse fundo lodoso inominável da natureza humana começar a invadir sertões e veredas…. Regredimos para aquém da ordem dos jagunços, para aquém do patriarcal romantizado de Seu Ornelas. Para o fora da ordem dos catrumanos.

É bom lembrar nesse momento a sabedoria muito diplomática de J. G. Rosa, que não queria ofender ninguém, mas ao mesmo tempo teve (ele e sua mulher Aracy) os bons impulsos humanos de se opor à barbárie dos que rezam a necessidade dos impulsos primários!

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Kathrin Holzermayr Rosenfield

Kathrin Holzermayr Rosenfield é Professora Titular de Filosofia e Literatura na UFRGS, autora de vários livros sobre literatura, filosofia e arte. Aborda com perspectivas filosóficas, antropológicas e psicanalíticas autores de diversas literaturas. Seu ensaio Desenveredando Rosa — a obra de J. G. Rosa ganhou o Prêmio Mário de Andrade. Atualmente, Kathrin traduz obras ficcionais e ensaísticas do romancista austríaco Robert Musil. Trabalha em projetos vinculando a pesquisa acadêmica e dramaturgia com o público amplo.