Política

Derrotismo anti-OTAN e as forças vivas da história

por Bruno Cava

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O sentido histórico, quando reina irrefreado e traz todas as suas consequências, erradica o futuro, porque destrói as ilusões e retira das coisas a atmosfera dentro da qual ele poderia advir.

Nietzsche, ‘Sobre os usos e a desvantagem da história para a vida’ (1874)

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Hotel Beau Séjour, local da conferência de Zimmerwald, 1864

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Em agosto de 1914, quando o Império Alemão invadiu a Bélgica, provocou o racha irreconciliável da Segunda Internacional socialista. Diante da eclosão da Grande Guerra, a federação internacionalista composta por partidos e agremiações de esquerda de vários países se dividiu em dois campos. De um lado, os defensistas, a favor de cerrarem fileiras com os respectivos governos nacionais para reforçar o esforço de guerra. Do outro lado, os derrotistas, para quem a guerra era querela entre os patrões e os trabalhadores não deveriam aceitar serem jogados uns contra os outros como bucha de canhão, em prol do interesse capitalista. O agitprop socialista, na linha derrotista, consistia em canalizar o ódio nacionalista incitado pela propaganda de guerra na direção do inimigo real de classe: capitalistas de todos os países.

Na França, o socialista Jean Jaurès assumiu a proa do movimento antiguerra na imprensa. Acabou assassinado por um ultranacionalista em 31 de julho de 1914, quando Jaurès tomava o desjejum no Café du Croissant, no Boulevard Montmartre em Paris. Três dias mais tarde, a Terceira República Francesa decretava a mobilização geral e a guerra era formalmente declarada aos Impérios Centrais. Liebknecht, o antimilitarista alemão, discursava com todas as letras, dentro e fora do partido socialista (a SPD), que os soldados deveriam parar de atirar uns nos outros e se confraternizarem diante dos oficiais. Em 1916, Liebknecht chamou uma pequena passeata antiguerra em Berlim, rapidamente cercada pela polícia do exército. Não se dando por vencido, o socialista gritou “Abaixo a guerra! Abaixo o governo!”, pelo que foi condenado por traição e passou os demais anos da Grande Guerra numa prisão alemã.

Para escapar das perseguições, os derrotistas começaram a se reunir na Suíça, um país neutro. Reagruparam-se em 1915, no pequeno povoado de Zimmerwald, onde foram lançadas as bases programáticas do que viria a ser, no futuro, a Terceira Internacional ou Comintern (1919-1943). A tese principal da “Esquerda Zimmerwald”, como passaram a ser conhecidos na tradição marxista, era que a Grande Guerra deveria ser classificada como uma guerra imperialista. A guerra respondia à compulsão estrutural do capitalismo em crise. Sob a égide do capital financeiro desde a década de 1860, a guerra era consequência lógica do acirramento das disputas capitalistas por mercados e lucros. O estágio monopolista e financeiro da competição entre impérios europeus os tinha induzido, primeiramente, a partilharem a África e a Ásia entre si para desaguarem capitais excedentes e, depois, a combaterem entre si por um quinhão maior da partilha. Por coação de uma necessidade interna, os imperialismos projetaram guerras brutais nas colônias que, uma vez exasperadas, terminaram por restituir a mesma barbárie mecanizada nos centros europeus do sistema — como de fato ocorreu em agosto de 1914, com a eclosão da Primeira Guerra Mundial.

Entre os derrotistas de Zimmerwald, Lênin era tão veemente a ponto de escrever a tese internamente controversa que, se algum dos impérios beligerantes tinha de ser derrotado, deveria ser a Rússia. O império dos czares era visto por Lênin como o pior dos imperialismos da época, pois “oprimia um maior número de nações e uma maior massa de populações da Europa e da Ásia” [1]. O czarismo representava naquele tempo o pior dos dois mundos, da modernização espoliatória dos trabalhadores na cidade e no campo e da conservação das estruturas retrógradas do Antigo Regime. A tríade sagrada do imperialismo russo, composta de autocracia política, ortodoxia religiosa e russificação cultural [2], mantinha-se inalterada mesmo com a chegada da industrialização no final do século XIX.

A Esquerda Zimmerwald original não era pacifista em abstrato, segundo uma defesa idealista que atribui à guerra o mal para definir a paz pelo seu negativo, a não-guerra. A paz não é uma batata. A paz deveria ser o objetivo final de uma construção política capaz de desativar os mecanismos capitalistas geradores da guerra. Após distensionar a mola capitalista da concorrência fratricida, os socialistas deveriam institucionalizar um novo modo produtivo, pautado pela solidariedade, colaboração e ausência de hierarquias entre europeus e não-europeus. Isto somente poderia ocorrer com a superação da sociedade capitalista e a libertação de todos os povos colonizados, em proveito do sistema socialista em todos os países, em escala mundial. Uma das teses mais enfáticas em Zimmerwald consistia no primado da unidade internacional do movimento proletário em relação às esferas nacionais, que nem por isso deixavam de ser espaços decisivos para a atuação dos socialistas.

A maior parte das posições dos socialistas derrotistas propugnava por táticas de agitação entre trabalhadores e soldados mobilizados, sabotagem do esforço de guerra e deserção generalizada das trincheiras e das fábricas de armamentos. As furiosas intervenções de Lênin empurraram a Esquerda Zimmerwald a uma proposta política mais ousada para a ação. Diante da maturação de condições extraordinárias decorrentes da Grande Guerra, a tarefa deveria ser organizar a transição ativa da guerra imperialista para a guerra civil de classe, recolocada entre o proletariado e a classe dominante. Ainda que essa manobra parecesse nebulosa e pouco factível em 1915-16, Lênin insistia que os derrotistas “deveriam trabalhar nesse sentido mesmo assim”, pois estava convicto que os desdobramentos das pressões da guerra ofereceriam a hora propícia. Este se tornou o cerne do pacifismo revolucionário, tal como elaborado no curso da Primeira Guerra Mundial.

A distensão prolongada no tempo e no espaço de trincheiras insuportáveis e ensurdecedoras batalhas provocou um desgaste profundo dos governos envolvidos no esforço de guerra, especialmente daqueles que terminariam o conflito do lado derrotado. O esboroamento das condições de governabilidade foi disruptivo na Rússia czarista, cujas desorganizações e carestias em massa reduziram boa parte da população à miséria e à fome. Nesse contexto, os derrotistas propagavam mensagens de fim da guerra articulando-a com o fim das privações e a instauração de um novo regime de propriedade e produção. Em outubro de 1917, o êxito do assalto ao Palácio de Inverno pelos bolcheviques foi pressentido pelas esquerdas como demonstração do acerto visionário da linha derrotista da Esquerda Zimmerwald. Depois daquele júbilo, que parecia confirmar o teorema leninista, as peças do dominó capitalista começariam a cair uma após a outra por iniciativa do proletariado dirigido pelas vanguardas socialistas.

Como se sabe, o entusiasmo não durou. O fracasso das subsequentes tentativas revolucionárias na Alemanha e na Hungria mostravam que o sistema capitalista ainda não havia esgotado todos os recursos. Sitiados na fortaleza vermelha, os bolcheviques aos poucos foram se deixando cooptar pelos imperativos da sobrevivência. Nesse processo tortuoso, as formas de opressão contra as quais passaram a vida discursando e se batendo foram aos poucos retornando, transfiguradas e por vezes pioradas, para assombrá-los e o movimento comunista como um todo.

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Quando, em fevereiro de 2022, Putin decidiu pela invasão da Ucrânia, a primeira imagem que me veio à mente foi o pãozinho de Sartre. Entre setembro de 1939 e junho de 1940, interlúdio de alta voltagem que precedeu a invasão nazista da França, também conhecido por “Guerra de Araque”, Sartre serviu como meteorologista do exército na região da Alsácia, próxima da fronteira com a Alemanha. Pacifista e antimilitarista de carteirinha, Sartre não hesitou em atender à convocação militar quando soube da invasão da Polônia pelo exército de Hitler. Nos diários de Sartre sobre esse período de serviço ativo, consta a passagem que se tornaria icônica na filosofia existencialista. Sartre relata a experiência de uma angústia terrível sentida durante o café-da-manhã, ao concluir que nada, absolutamente nada, nenhuma força do universo, poderia descaracterizar o ato livre, contingente, de pegar os pedacinhos rasgados de pão do prato e mastigá-los… ou não [3].

Nenhuma explicação para a invasão russa na Ucrânia, por mais eloquente e sagaz que seja, por mais que reivindique um mosaico de fatores estruturantes de longa duração, consegue elidir o fato que Putin poderia ter decidido não invadir a Ucrânia. Da parte dele, não foi uma decisão coagida pelas circunstâncias e muito menos forçada. Nos preparativos da decisão, teria sido possível arregimentar uma legião de motivos para justificar a decisão oposta, de não invadir. Como na história apócrifa de que Brizola, atribuladíssimo nos afazeres da campanha eleitoral, respondeu a um assessor que programa de governo ele mandava vir pelo correio. Até dois, se fosse o caso. Também Putin poderia ter encomendado a algum de seus asseclas talentosos preparar uma completa justificativa histórica, econômica e geopolítica para a invasão e outra de igual competência para a não-invasão, podendo a seguir escolher entre elas como Sartre escolheu seu pãozinho matinal.

Toda narrativa histórica quando busca explicar um ato contingente convida o experimento tentador de livre associação, em que o historiador pode costurar a lógica dos acontecimentos em pontos notáveis e quadros gerais de inteligibilidade. Tais costuras explicativas guardam um inevitável sabor ex post facto. Frequentemente, elas recortam do tecido delicado que chamamos de presente os fios do que julgamos prolongar a experiência acumulada do passado de maneira adequada. Não é caso aqui de exaltar o acaso nem negar a possibilidade de conhecimento e de virtude em meio à nuvem de imprevisibilidades e fatores imponderáveis. A escola renascentista florentina de Maquiavel e Guicciardini dedicou capítulos inteiros sobre como a política se faz dentro da neblina, na materialidade fugidia das mutações do tempo. As decisões são tomadas diante de um quadro incompleto e dinâmico, na oscilação entre virtù e fortuna.

O caso aqui é apontar como a decisão por invadir, isto é, por uma ação em detrimento a uma inação, fascinou um conjunto de simpatizantes e mesmo de pessoas não-alinhadas. E compreender o que isto significa, em termos de possibilidades futuras de perceber, sentir e agir, se pensarmos do ponto de vista da transformação do mundo e não somente de sua interpretação sedentária. Por que esse conjunto de pessoas, várias das quais nem poderiam ser listadas entre apoiadores de Putin ou da Rússia putinista, se sentiu atraído — quase uma fissura obsedante — pela húbris embutida na escolha de invadir por Putin. Em parte, suspeito, isto se deu pelo desafio descomedido lançado por Putin, com todos os pingos nos is, à ordem internacional liberal, entendida como a globalização convergente e unipolar resultante da vitória do imperialismo ianque na Guerra Fria — o único “mundo possível”. Com o sentimento vingado, ato contínuo à invasão de 24 de fevereiro, ativistas e intelectuais de esquerda e anti-imperialistas preferiram rasgar bandeiras americanas a bandeiras do estado invasor.

O mal disfarçado júbilo ressoa com aquele que certos grupos “irredutíveis” manifestaram quando as torres gêmeas desabaram, depois do atentado de 11 de setembro de 2001. Naquela tragédia para dezenas de milhares de novaiorquinos, comentava-se insensivelmente como os Estados Unidos estavam colhendo o que haviam plantado. Seguia lista das intervenções no Oriente Médio e na América Latina, o golpe de estado no Chile, na mesma data em 1973. Assim como hoje, analogamente, se diz que a culpa pela invasão da Ucrânia não é da autoridade que a decidiu, mas do Ocidente arrogante. Segue-se a mesma lista, acrescida das intervenções da OTAN nas últimas duas décadas.

O ex-ministro Celso Amorim comentou numa entrevista como Putin errou, mas “foi levado por paixões violentas”. Aceitou a autoimagem que o autocrata oferece no varejo, a de um homem imprevisivelmente violento e irascível, talvez extraído de “Os Irmãos Karamazov”, disposto a ir até o fim na perseguição de seus apetites. Outros críticos melhor informados adotaram modelos racionais de realismo, inspirados pela desusada história política pautada pelos grandes homens, para chamar Putin de grande estrategista. O gênio russo à altura de Pedro o Grande ou Ivan Terrível, que arrombou as portas de um sistema internacional esmaecido pelo determinismo apolítico das relações financeiras e das verdades do mercado. Golpe de audácia de fazer tremerem os realistas duros, pois Putin nos teria restituído a decisão soberana, a Razão de Estado, o descortinamento da desejada Nova Guerra Fria, o elemento político bruto. O início de uma nova era.

Em Le Siècle, Badiou discute como o século XIX anunciou, prometeu e sonhou com a humanidade nova, a ser inteiramente refeita pela historicidade contingente. Mas somente o século XX entregou o produto. É isto que “apaixona sujeitos e militantes” [4]: a convocação por forças prometeicas para participar do recomeço da construção do ser humano, a partir de um tempo em aberto, tempo-argila. Aquele fora o século da luta sem quartel, da destruição sem limites e das soluções finais. A invasão da Ucrânia reacendeu o páthos do século perdido, o que Badiou conceitualiza como paixão do real. As promessas da guerra híbrida desterritorializada foram descumpridas, já que esta vai se configurando à moda antiga, com veículos verde-cáqui, entrincheiramentos territorialistas e bloqueios navais. Assistimos às primeiras imagens da invasão como se voltássemos a um filme antigo que ainda nos é familiar. Que dizer da figura de Putin, o mesmo personagem pré-internet que, como o embalsamado Maverick no novo Top Gun, é uma espécie em extinção, “mas não hoje”.

O livro de Badiou não condena a paixão do real como negativa em si e critica a estigmatização do século, que participaria do teorema totalitarista que conjuga aspirações revolucionárias e estados distópicos. A passion du réel é usada no livro como um terreno de colocação dos problemas, pedra angular para a compreensão da economia afetiva dos movimentos de transformação do século XX, desde as vanguardas artísticas aos programas políticos, passando pelas escolas de filosofia. Apesar disso, numa nota de rodapé, Badiou ressalva como de qualquer modo existem “variações perversas” da paixão do real. O exemplo fornecido é a vida acadêmica em Cambridge durante os anos 1930, no auge do estalinismo [5]. O filósofo se refere a jovens intelectuais inebriados ao descobrirem a “extraordinária potência da ignorância”, decorrente da entrega voluntária aos deuses sanguinários da História. Badiou cita alunos da universidade inglesa que se adaptaram com tranquilidade às funções de espionagem ou de polícia secreta, colocando-se a serviço internacional da antiga União Soviética. Nikolai Yezhov, cabeça do NKVD durante os expurgos de 1937-38, era “um refinado intelectual, bem conhecido no ambiente dos poetas e escritores”.

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Os partidos socialistas de hoje e alguns movimentos sociais se sentem mais à vontade manifestando-se contra a OTAN do que em organizar protestos para que o autocrata desista da empreitada imperial e decida parar a invasão. Partidos de centro-esquerda, sob o estímulo de influenciadores como Pablo Iglesias, Mélenchon, Varoufakis ou Corbyn, têm sido oportunistas em criticar nos respectivos países os ricochetes das sanções econômicas e dos custos do apoio à resistência ucraniana. No final de junho, munidos de slogans pacifistas, manifestantes com bandeiras vermelhas organizaram atos contra a cúpula da OTAN em Madrid, onde seriam decididas novas medidas de apoio à Ucrânia.

A chegada de um mundo multipolar que Putin vem anunciando desde a conferência de Munique, em 2007, encanta os corações anti-imperialistas. Mas essa não é a multipolaridade da reforma necessária da ONU, para desenvolver organizações supranacionais fortes, normas cogentes de direito internacional público e um Conselho de Segurança inclusivo, sem privilégio de veto. O fim do mundo unipolar de que fala Putin é a reversão do que teria sido a “pior catástrofe do século XX”, o colapso da URSS, o que na realidade não figura nem mesmo entre as dez piores. A imaginação de novo mundo “multipolar” proclamada por Putin é meramente multi-imperialista. Nessa visão megalomaníaca, Putin alucina sentar-se com outros Grandes Estadistas para juntos redesenharem as linhas de divisão do mundo em zonas de influência, como na foto famosa da Conferência de Ialta de 1945, com Churchill, Roosevelt e Stálin.

O antiamericanismo acrítico de sempre se manifesta na reticência de encarar a invasão da Ucrânia pela Rússia com a mesma indignação com que, nas décadas passadas, foram encaradas as invasões americanas no Iraque e no Afeganistão. É mais grave do que isso, pois no caso da invasão da Ucrânia atual, a brutalidade contra os civis é mais gravosa, e os crimes de guerra ainda mais numerosos por parte do exército invasor, do que aqueles cometidos pelas forças armadas americanas. Os anti-imperialistas preferem gastar milhares de parágrafos para denunciar hipocrisias e aplicações de dois pesos e duas medidas nos noticiários, a examinar as evidências — sobre o massacre de Bucha, ou sobre a derrubada do voo da Malaysia Airlines em 2014, ou sobre o emprego de armas químicas pelo aliado de Putin, em 2013. Exprimem empatia quanto às “preocupações legítimas de segurança” de Putin [6], num coro esquisito com a retórica interestatal de um Kissinger (o mesmo do golpe chileno de Pinochet), ao mesmo tempo que relutam em franqueá-la a quem realmente precisa de empatia: as vítimas e os resistentes. Por acaso, os sujeitos históricos em luta na situação concreta que, metodologicamente, deveriam ser de interesse prioritário teórico e prático para as esquerdas. Pelo visto, o discreto charme do putinismo converteu os anti-imperialistas em multi-imperialistas, num realinhamento preocupante em tempos confusos.

Estaríamos assistindo ao renascimento da Esquerda Zimmerwald, ou seja, a luta pela paz mundial enquanto eixo aglutinador dos socialistas dedicados a instrumentalizar a situação de guerra para mudar o mundo? Não. A posição derrotista, trazida às coordenadas de hoje, é somente uma posição pela derrota da Ucrânia. Em agosto de 1914, os defensistas daquela época correram às bandeiras nacionais para a defesa da pátria. Em 2022, os derrotistas correram para outras bandeiras, as vermelhas, em defesa da paralisia viabilizada pelo símbolo. Sorrateiramente, o pacifismo abstrato dos derrotistas atuais trabalha pela vitória do mais forte, por uma paz nos termos expansionistas da Rússia putinista, e pelo terrorismo de estado nos territórios ucranianos ocupados.

Os derrotistas anti-OTAN precisam entender uma coisa de uma vez por todas: a maioria dos ucranianos que resiste junto de seu governo não o faz por vínculos étnicos, linguísticos, eleitorais ou político-ideológicos, não o faz para defender valores nacionais, soberanos ou democrático-liberais, nada disso é essencial. A maioria da população ucraniana resolveu resistir porque não consegue suportar a possibilidade de viver sob a ocupação do regime abominável que Putin representa. Mesmo que os exércitos russos avancem profundamente no território ucraniano, montando seus campos de filtragem e instalando governos títeres operados por capangas, já ficou claro que continuará a resistência popular, ainda que assimétrica ou de guerrilha.

A linha derrotista da Esquerda Zimmerwald original estava vinculada ao encadeamento de percepções e ações no horizonte da revolução. Era um pacifismo armado, orientado à revolução no futuro. Jaurès, Liebknecht, Rosa ou Lênin inflamavam o ânimo dos ouvintes porque ocupavam o púlpito das assembleias para transmitir nem tanto o núcleo racional das proposições. Mas, sobretudo, a esperança de uma justiça que se avizinhava, de uma felicidade coletiva que estava atrás da montanha em cuja direção eles ao menos caminhavam a passos firmes. Foram mais organizadores da profecia que das massas, pois estas permaneceram ingovernáveis ao longo de todo o período da guerra e do tumulto que a acompanhou e sobreviveu. Os clarões das explosões nos campos de batalha pela Europa propiciavam vislumbrar as luzes da chegada do novo reino da justiça social, anunciado pelo som das rajadas das metralhadoras, como trombetas. A Grande Guerra, a gripe espanhola, a fome nos campos, os êxodos por grandes distâncias, a intimidade pervasiva com a morte, essas mazelas todas na segunda metade dos anos 1910 semearam no continente europeu a expectativa messiânica que o sofrimento será redimido em breve, a qualquer momento.

Já hoje, a ocupação com a história, embora reivindicada como peça importante do método materialista, termina servindo para negar sistematicamente as forças vivas do presente, subtraindo da percepção o impulso interno vivificador dos acontecimentos. Quando manifestantes em Madrid levantam bandeiras vermelhas e simbologias revolucionárias não estão inscrevendo sua linha de ação a nenhum encadeamento de eventos antes ou depois, nem apontam para qualquer outro horizonte que não seja a defesa idealista de ocos: a paz mundial, o fim do imperialismo, o fim de todas as opressões… No fundo, é um problema de percepção. O socialista hoje corre o risco de passar a vida militante em branco, encantado com a imagem passada da revolução que suprime a possibilidade de enxergar as revoluções de seu tempo. O cultivo programado de casos exemplares da história, sua monumentalização, bem como a ideia que se deva transmitir o vetusto legado socialista às gerações seguintes, no fundo vêm concorrendo pela transmissão da necrose corporal já aceita como fait accompli no presente.

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Primeiro, é preciso reconhecer o fato crucial da resistência, o que por si só deveria impactar a nossa apreensão dos acontecimentos na Ucrânia. Por maior que tenha sido o apoio militar, logístico e informacional que a OTAN venha fornecendo nos últimos anos, isto em nada reduz a importância da vontade coletiva de opor-se ao invasor com todos os meios disponíveis. Tê-lo feito em condições tão difíceis, contra tantos prognósticos, foi a real afirmação de virtù de que falavam Maquiavel e Guicciardini em suas obras. Para os filósofos políticos italianos da Renascença, a virtude decisiva é a de um povo cuja cultura cívica enraizada não coaduna com a imposição da injustiça pelos mais fortes. Por causa da resistência inesperada dos ucranianos, alguns pacifistas derrotistas chegaram a sugerir que melhor para eles seria não resistir e aceitar a perda dos territórios e a ocupação imperial. Afinal, ante agressor tão poderoso e obstinado, a conquista russa virá de qualquer jeito, cabendo às pessoas lúcidas mitigar os danos. É uma mistura de argumento do estuprador, meme Borg e culpabilização da vítima. Mas como escreveu Foucault num de seus textos mais belos, não é inútil resistir [7]. Ao contrário, resistir é o ato anti-estratégico que reabre a história e coloca em xeque os cálculos e previsões consolidadas de funcionamento das relações de poder.

Segundo, o outro fato crucial consiste na revolução ucraniana que eclodiu no período de novembro de 2013 a fevereiro de 2014, com foco na Maidan (“Praça”) em Kiev, mas se alastrando por dezenas de cidades. Apesar das inúmeras contradições, aporias e insuficiências organizativas, comuns a qualquer processo de mobilização de massas desde baixo, aquele acontecimento mudou decisivamente as condições da política na Ucrânia. Ao negar-lhe sequer a abertura de brechas para uma política de esquerda que possa alterar as correlações de força, e negar-lhe ainda o encadeamento de acontecimentos até a invasão, dá-se uma estranha convergência entre os críticos anti-imperialistas da Maidan e a doutrina abertamente anti-Maidan (i.e., anti-Praça) esposada por Putin, onde as primaveras são classificadas como “revoluções coloridas”.[8] Os primeiros realizam uma leitura mecânica na qual a desagregação e a precarização do tecido social no neoliberalismo seriam comunicadas às multidões em ruas e redes, tornando-se presas fáceis para o subsequente aparelhamento dos protestos, derivas fascistas e/ou complôs geopolíticos articulados por serviços secretos. Já os adeptos da doutrina putinista anti-Maidan antecipam na premissa o que nos primeiros aparece na conclusão, ao atribuir às revoluções de nosso tempo o vício na origem de serem desde sempre massas de manobra, hegemonizadas por valores liberal-democráticos (incluso os direitos das minorias) e manipuladas por serviços de inteligência ocidentais. Uns e outros coincidem no veredito: manifestações oblíquas, festivas (gays), narcisistas, à cata do primeiro veículo populista que lhes propiciar a catarse coletiva.

Concluo com a observação que, sim, podemos chamar o rol heterogêneo de esboços revolucionários desencadeados na primeira metade da década passada de revoluções coloridas ou multicoloridas. Podemos chamá-las assim porque exprimem a cartografia dinâmica de degradês, colorismos, claros e sombras de uma multidão que escapou das dicotomias infernais e vivenciou sua autonomia. Compreender a duração delas no tempo e no espaço dependeria de uma análise minuciosa caso a caso, por exemplo, para compreendermos o quanto da Maidan ainda pulsa no interior da guerra popular assimétrica conduzida pelos ucranianos contra o invasor. O quanto ainda habitamos o tempo vivo da longa Maidan, em que a virtù coletiva voltou a ser possível, embora não haja garantias e ela jamais venha fácil. Ao contrário dos tons sépias e das linhas duras dos adeptos da nova Guerra Fria pela esquerda multi-imperialista ou da Santa Aliança da contrarrevolução global pela direita homofóbica, é preciso continuar defendendo a Maidan, suas cores vivas e disformes criativos.

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‘Alucinación parcial: Seis imágenes de lenin sobre un piano’, 1931, Salvador Dalí

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Notas:

[1] – Vladimir Lênin, “The War and Russian Social-Democracy”, novembro de 1914, https://www.marxists.org/archive/lenin/works/1914/sep/28.htm e “War and Revolution”, maio de 1917, https://www.marxists.org/archive/lenin/works/1917/may/14.htm. Craig Nation, “War on war; Lenin, the Zimmerwald Left, and the Origins of Communist Internationalism”, Duke Un. press, 1989. p. 36.

[2] – “Pravoslávie, samoderzhávie, naródnost” ou Ortodoxia, Autocracia e Nacionalidade, os três pilares enunciados pela primeira vez pelo ministro da educação Sergey Uvarov, em 1833, representados pela Monarquia Absoluta, a Igreja Ortodoxa Russa e a Língua Nacional. Depois da revolução, a fim de solapar os pilares czaristas, o governo bolchevique realizou a política das nacionalidades que assegurava a autonomia linguística e cultural das mais de cem nações englobadas pela União Soviética, desde que vinculada à heteronomia política do partido comunista. Em vez de opor kantianamente autonomia e heteronomia, ou seja, particularidade empírica e máxima universal, o Lênin leitor de Hegel compreendia que uma deveria possibilitar e reforçar a outra, organicamente coordenadas do interior, à maneira de uma hegeliana “universalidade concreta”. Uma década depois, Stálin reverteu a política leninista das nacionalidades. Na virada para os anos 1930, foi restabelecido o pilar da russificação e toda manifestação cultural ou linguística das demais nacionalidades passou a ser tratada como inimiga do estado, logo, passível de ser erradicada em defesa da “revolução”.

[3] – Jean-Paul Sartre, “Carnets de la drôle de guerre – Septembre 1939 – Mars 1940”, Gallimard: 1995.

[4] – Alain Badiou, “Le siècle”, ed. du Seuil, 2005, p. 54.

[5] – Ibid., nota de rodapé às p. 25 e 26.

[6] – Em 23 de fevereiro, Mariana Mazzucato tuitou: “Eu não sou fã do Putin, mas sejamos honestos: o que os Estados Unidos fariam se o México, em sua fronteira, entrasse em algum tipo de aliança securitária russa ou chinesa?”. https://twitter.com/mazzucatom/status/1496567628051136519. Poderíamos insistir na hipótese contrafactual: tivesse a Ucrânia entrado na OTAN, como a Polônia ou os países bálticos fizeram, será que a invasão teria ocorrido?

[7] – Michel Foucault, “Inutile de se soulever?”, Le Monde, 11 de maio de 1979.

[8] – Sobre o ciclo reativo anti-Maidan e a oferta russa de serviços repressivos a todos regimes simpáticos interessados, visando à formação de uma Santa Aliança no século XXI, o recente artigo do pesquisador Volodymyr Artiukh: “The political logic of the Russia´s imperialism” (https://www.focaalblog.com/2022/06/09/volodymyr-artiukh-the-political-logic-of-russias-imperialism/), ainda sem tradução ao português.

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Bruno Cava

Bruno Cava é ensaísta e professor de cursos livres de Filosofia. Autor de vários livros, entre eles “A multidão foi ao deserto” (AnnaBlume, 2013) e “Enigma do disforme” (Mauad, 2018).