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A catástrofe das equivalências: a controvérsia Nancy-Agamben

por Giuseppe Cocco

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A pandemia

A pandemia já se tornou uma catástrofe planetária que veio para durar. A emergência sanitária se sobrepõe à crise da democracia que se agudiza desde os impactos sociais e políticos da crise financeira de 2008: entre o ciclo das revoluções árabes e a violentíssima restauração que hoje se tornou guerra de alta intensidade na Ucrânia.

No primeiro ano da pandemia (2020), parecia haver uma correlação inquietante entre eficácia das respostas sanitárias e a fraqueza das instituições democráticas: os países que melhor controlavam a difusão do vírus eram aqueles governados de maneira autoritária — como a China. Assim, uma epidemiologista francesa constatava que, no campo democrático, somente as ilhas como Austrália ou a Nova Zelândia eram eficazes[1]. Mas, o negacionismo de vários governos de extrema direita como o de Donald Trump nos Estados Unidos e de Jair Bolsonaro no Brasil indicava outras correlações: um descontrole da pandemia diretamente proporcional ao nível de autoritarismo e degradação da democracia. A destruição da linguagem com a difusão das teorias conspiracionistas produz um paradoxo que seria irónico se não fosse trágico: governantes que aspiram concentrar o poder em suas mãos (como Trump e Bolsonaro) negam o vírus e as medidas sanitárias, em nome da luta contra a ‘ditadura sanitária’ tentam implementar uma ditadura mesmo.

Contudo, essas correlações não são nem lineares nem nítidas. Por um lado, temos o macabro resultado do negacionismo nos Estados Unidos consolidado mesmo depois da derrota eleitoral de Trump na recusa da vacina por parcela importante da população (mais de um milhão de mortos até maio de 2022). Pelo outro, temos as medidas autoritária do regime chinês na tentativa de manter uma política de “zero covid” diante da difusão de variantes muito mais contagiantes que a versão originária do Sars-CoV-2[2].

Precisamos apreender outras clivagens. Se alguns antropólogos que pesquisavam, já antes da Covid-19, novos modelos de enfrentamentos das epidemias emergentes (as zoonoses) falavam do paradigma da caça (cinegético) no lugar daquele do biopoder[3], o debate sobre biopolítica e bioeconomia nunca foi tão pertinente e polémico no meio da pandemia de Covid-19.

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Nancy versus Agamben

Os termos da polémica entre Giorgio Agamben (filósofo italiano) e Jean-Luc Nancy (filósofo francês), logo nas primeiras semanas da crise pandêmica, nos permitem de introduzir o debate sobre as relações entre pandemia, catástrofes e biopolítica[4]. Já em fevereiro de 2020, quando o governo italiano — antes de decretar o lockdown nacional — estava desesperadamente tentando controlar a epidemia por meio da implementação de algumas limitadas “zonas vermelhas”, o filósofo italiano escreveu uma coluna publicada por um jornal da esquerda italiana no dia 26 de fevereiro. O título é esclarecedor e, talvez, estarrecedor: “A invenção de uma epidemia”[5]. Para Agamben, a emergência não teria fundamento: a Covid-19 seria apenas uma “gripezinha”. Era a mesma posição que  manifestavam os presidentes do Brasil (Jair Bolsonaro[6]) e dos Estados Unidos (Donald Trump) .

No dia seguinte, Jean-Luc Nancy publicou uma crítica ácida e irônica ao Agamben[7]. Em primeiro lugar, Nancy confuta os dados mobilizados pelo Agamben sobre a realidade do vírus: usando as mesmas fontes, diz ele, é possível saber que o novo vírus mata “30 vezes mais que o da influenza”, sendo que nesse caso “não tem vacina”. Em seguida ele usa uma anedota: “Lembrei que Giorgio é um velho amigo. Lamento trazer à tona uma memória pessoal, mas não me afasto, afinal de um registro de reflexão geral. Quase trinta anos atrás os médicos julgaram que eu deveria fazer um transplante de coração. Giorgio foi uma das poucas pessoas que me aconselhou a não os escutar. Se tivesse seguido seu conselho eu provavelmente teria morrido em pouco tempo. Podemos errar. Giorgio continua sendo um espírito de uma delicadeza e gentileza a que se pode chamar de — e sem a menor ironia — excepcional”[8] .

O relato de Nancy pode parecer até um golpe abaixo da cintura, mas também pode ser um expediente eficaz para apreender, a partir de um ponto vista que dá conteúdo ético e produtivo, o que está em jogo na biopolítica: a própria produção e proteção da vida. Enquanto pessoa que vivia e produzia graça a um transplante, Nancy não saberia negar a dimensão também positiva da técnica (nesse caso da medicina instrumental e da farmácia industrial que permitem a realização dos transplantes de órgãos) e, por outro lado, o perigo específico que o vírus constitui para sua condição de transplantado e, pois, de uma imunidade enfraquecida pela idade e pelo tratamento que o próprio transplante implica.

Muitos tentam explicar as posições de Agamben diante da pandemia como se fossem fruto de alguma pane. Outros ficam calados e tentam fazer esquecer os litros de tinta que gastaram em artigos e até livros inspirados no filósofo italiano[9]. Na realidade, as posições de Agamben são coerentes com aquilo que ele sempre andou escrevendo. Por um lado, há uma questão filosófica instigante: que vida seria essa que, para ser protegida, se torna uma vida nua, Robert Musil dizia: “sem qualidades”[10]? Dito de outra maneira: para protegermos a vida, podemos aceitar que ela seja suspensa? Pelo outro, a resposta tecnofoba aparece pelo que ela é: uma dupla armadilha. Colocando a biopolítica no mesmo saco que o biopoder, Agamben continua sua procura por uma “ontologia da impotência”[11]. A única novidade é que a catástrofe torna explicitas as convergências com as posições parecidas dos movimentos fascistas e governos negacionistas.

Quando Jean-Luc Nancy diz: “[…] a exceção efetivamente se torna a regra em um mundo onde as interligações técnicas de todo tipo (deslocamentos, transferências de todo tipo, exposições ou difusões de substâncias etc.) alcançam uma intensidade até então desconhecida e crescente junto à população. A multiplicação desta última também inclui, nos países ricos, o prolongamento da vida e o crescimento do número de idosos, e, em geral, de pessoas em risco”. Estamos vivendo “um tipo de exceção viral — biológica, informática, cultural — que nos pandemiza”[12]. Para Nancy, a condição pandêmica é, pois, anterior à declaração formal dessa pandemia, um pouco como escreveram Michael Hardt e Antonio Negri: “A era da globalização é a era do contágio universal”[13].

A pandemia, pois, diz respeito a um sistema técnico que amplifica sem fim a interdependência de tudo com todos e de todos com tudo. A pandemia não é negativa ou positiva, mas nossa condição. Em um outro texto, Nancy tinha apresentado essas reflexões de maneira mais profunda e pormenorizadas: “Em todas as direções que podemos prever, que se trate de ‘aperfeiçoar’ técnicas para controlar ou anular seus efeitos ou de abandonar ou de neutralizar o uso de algumas delas, parece impossível de pensar outra coisa que formas suplementares de interdependência, imbricação e (complexificação) dos procedimentos”[14]. Os usos das técnicas implicam os usos de mais “técnicas de controle e isso de maneira exponencial, (sendo que) essas se entrelaçaram as técnicas medicais, as técnicas da saúde pública, etc.”[15]. O problema, para ele, não está na tradução política da resposta ao vírus, mas na própria dinâmica exponencial de emergência do vírus (em seu “salto” de espécie — do hospedeiro animal para o homem — e depois inter-humano — o contágio de homem para homem) e as técnicas de combate à propagação tanto quanto às patologias. Essas dinâmicas de interdependências e entrelaçamentos constituem um meio ambiente no qual, por um lado, os governos acabam sendo “meros executores” e, pelo outro, a luta pela proteção da vida corre o risco de ser também o mecanismo que a ameaça. A anedota final da crítica ao Agamben explica muito bem porque Nancy mobiliza o exemplo dos transplantes como campo privilegiado desses desenvolvimentos que ele chama de “autogeração técnica”. A exemplificação é justamente aquela dos transplantes de órgãos, que “envolve a pesquisa de substâncias Immuno supressivas cujos efeitos ditos secundários, nocivos ao organismo, devem ser combatidos por outras substâncias que, por sua vez, geram outros efeitos que é preciso combater etc. “São assim fabricados corpos que são verdadeiros complexos químicos”[16].

A preocupação de Nancy — como filosofo que ainda conseguia escrever porque seu próprio corpo aceitou de entrar na constante transformação química que Agamben lhe havia desaconselhado por considerá-la como o pior dos “dispositivos” de dominação — é de conseguir encontrar um possível eixo ético nessas “arborescências autogeradas e autocomplexificadas” [17]. É aqui que Esposito diz que o problema de Nancy está em não aderir ao “paradigma” da biopolítica: “O fato é que hoje qualquer pessoa com olhos para ver não pode negar a implementação plena da biopolítica. Desde as intervenções da biotecnologia em áreas outrora consideradas exclusivamente naturais como o nascimento e a morte (até) o terrorismo biológico, a gestão da imigração e epidemias mais ou menos graves, todos os conflitos políticos atuais têm em seu centro a relação entre a política e a vida biológica. Mas é precisamente a referência a Foucault que não deve nos fazer perder de vista o caráter historicamente diferenciado dos fenômenos biopolíticos. Uma coisa é argumentar, como faz Foucault, que há dois séculos e meio a política e a biologia estão cada vez mais imbricadas em um nó cada vez mais apertado, com resultados problemáticos e às vezes trágicos. Uma outra coisa é a homogeneização de eventos e experiências incomparáveis”[18].

Temos aqui duas pistas de reflexão. Uma primeira discussão diz respeito à relação entre catástrofe natural e catástrofe moral, como no caso do acidente nuclear de Fukushima (Japão)[19] onde o desastre foi fruto da “convergência” de escolhas humanas (a uso da tecnologia nuclear para produzir energia em local próximo de alta densidade habitacional e altamente sísmico) e natural (o tsunami). A segunda pista diz respeito a como Nancy, sem usar esse paradigma, pensa que a clivagem ética passe pela crítica do mecanismo que torna comensuráveis as arborescências auto gerativas do sistema técnico, o que ele define como sendo a “catástrofe das equivalências”.

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Rousseau contra Voltaire diante do terremoto de Lisboa

Fazendo referência ao acidente nuclear de Fukushima, Nancy escreve que “a complexidade que hoje está em jogo” determina que as “catástrofes naturais não são mais separáveis de suas implicações ou reverberações técnicas, econômicas, políticas”. Isso porque “não se pode mais negar o emaranhamento inextricável das técnicas, das políticas, das economias com o movimento das forças” [20]. É nesse contexto que ele lembra a controvérsia entre Rousseau e Voltaire diante da tragédia de Lisboa (1755) exatamente como a condição de exposição a uma catástrofe que é fundamentalmente aquela do sentido.

Voltaire não acredita nem na punição divina, nem na culpa dos homens. Em março de 1756 ele escreve sob forma de poema: “Direis vós: «Eis das eternas leis o cumprimento. Quem de um Deus livre e bom requer o discernimento?» Direis vós, perante tal amontoado de vítimas: «Deus vingou-se, a morte deles é o preço de seus crimes? Que crime, que falta comentaram estes infantes. Sobre o seio materno esmagados e sangrantes? Lisboa, que não é mais, teve ela mais vícios. Que Londres, que Paris, mergulhadas nas delícias? Lisboa está arruinada e dança-se em Paris.(…)?”[21].  Ele se afasta assim da teodiceia de Leibniz: “Leibniz nunca me ensina por que nós invisíveis. No mais bem ordenado dos universos possíveis. Uma desordem eterna, um caos de infelicidades. A nossos vãos prazeres mistura certas dores que são verdades. Nem por que é que o inocente, tal como o culpado. Sofre do mesmo modo este mal desgraçado[22]. Em 18 de agosto de 1756, Jean-Jacques Rousseau respondeu a Voltaire: “você deveria concordar, por exemplo, que a natureza não reuniu naquele lugar vinte mil casas de seis ou sete andares, e que se os moradores dessa grande cidade tivessem sido dispersados de maneira mais igual e morando mais ligeiramente, os danos teriam sido bem menores ou até nulos”[23].  Para ele os culpados são os homens que construíram a cidade de uma determinada maneira.

A controvérsia sobre o terremoto de Lisboa é retomada também por Jean-Pierre Dupuy, o teórico do chamado “catastrophisme éclairé”. Ele a cita em sua própria reflexão metafisica sobre o Tsunami de Sumatra (em 2004). Jean-Pierre Dupuy afirma que Rousseau não entendeu a significação de sua própria argumentação: “contra Voltaire, ele pensa de defender a teodiceia de Leibniz e a bondade da providência, mas na realidade ele nega a providência: o mal moral é da responsabilidade dos seres humanos e só deles”. Ou seja, não há mais distinção entre mal físico (ou catástrofe natural) e mal moral (catástrofe provocada pelo homem), “só resta o mal moral, do qual só os seres humanos podem ser responsabilizados”. Assim, até “a mais natural das catástrofes (o Tsunami de Sumatra) passou a ser vistas como sendo totalmente social”. Rousseau coloca, pois, toda a responsabilidade nos ombros do homem[24].

Por um lado, em Voltaire encontramos uma antecipação dos pós-modernos que insistem em nosso dever de “enfrentar a brutal realidade da sorte e da contingência ao invés de nos refugiarmos em explicações racionais”. Pelo outro, em Rousseau, a “convergência” do mal moral e do mal físico (natural) nos leva à obra de Günther Anders. Judeu alemão refugiado nos Estados Unidos, primeiro marido de Hannah Arendt, Anders tinha ficado impressionado em sua visita à Hiroshima pelo fato de os sobreviventes “constantemente falarem da catástrofe como se fosse um terremoto ou um Tsunami”. Na esteira da reflexão de Arendt sobre o processo de Eichmann, Anders enfatiza que há algo como uma fraqueza do pensamento e da imaginação de todo o mundo diante de uma capacidade de destruição que se tornou desproporcional: “O grande crime pode resultar da concatenação de uma série de pequenos eventos e decisões tomadas por uma sucessão de agentes que não pensam[25]. Jean-Pierre Dupuy assim conclui: “Como as grandes catástrofes morais do século 20, o apocalipse que nos espera será menos o resultado de nossa maldade ou de nossa estupidez, que de nossa falta de pensamento[26].

Contudo, o problema dessa inflexão, lembra Dupuy citando a filósofa Susan Neiman, é “[o] estilo de pensamento inaugurado por Rousseau entraria em colapso sob o peso da excessiva responsabilidade (que ele atribui) aos seres humanos”[27]. Estamos assim mergulhados nas dificuldades de enfrentamento das consequências da pandemia bem como da catástrofe climática. Essas dificuldades são fruto do paradoxo que, por exemplo, se explicita diante das tragédias humanas que seguem as chuvas em cidades densas de moradias precárias (favelas) como as latino-americanas: ao passo que as numerosas vítimas são exatamente os moradores desse tipo de bairros construídos muitas vezes nas encostas ou em zonas alagáveis, eles passam logo a serem indicados como “culpados” por terem construídos suas habitações nessas “áreas de risco”[28].

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Equivalência das Catástrofes e Economia da Vida

No deslocamento proposto por Rousseau, Nancy vê a manifestação de um mundo onde tudo está interconectado e nessa interconexão geral, o papel do dinheiro e, em última instância, da rentabilidade[29]. Todas as esferas da existência dos homens e do conjunto dos seres vivos são absorvidas pelo regime da equivalência geral[30]. A equivalência se conecta e alimenta a uma “ilimitada intercambialidade das forças, dos produtos, dos agentes ou atores, dos sentidos ou valores, pois o valor de todos os valores é a equivalência”[31]. Para o filósofo francês, é essa equivalência que é catastrófica.

Por um lado, Nancy recusa o atalho ideológico do anticapitalismo: para ele não há um sujeito “mal” ao qual haveria como se opor um outro que seria “mais moral” ou “mais natural”[32]. Pelo outro, no regime da interdependência, é a civilização e sua mundialização, sem decisão nenhuma, que se dirige a uma catástrofe generalizada[33]: em termos heideggerianos, se trataria fundamentalmente de uma “catástrofe do sentido”[34]: o sentido mesmo da palavra apocalipse, diz Nancy, é afetado. Se em grego ele significa “desvelamento”, ou “revelação”, “a revelação hoje revela que não há nada a revelar[35]. É exatamente o que diz David Brooks: “A significação desses eventos é que não há significação, pelo menos não há significação que a gente possa entender”[36]. O que aparece é o horizonte da finitude humana. Esse curto-circuito do sentido estaria mesmo no exemplo auto gerativo dos transplantes que citamos acima como a situação na qual a equivalência seria o estatuto das forças que se governam de alguma maneira por elas mesmas onde tudo se torna meio e fim de tudo e pois, onde não há mais nem meio nem fim, mas apenas equivalência geral enquanto tautologia: tautologia do dinheiro da qual não podemos sair sem sair mesmo da procura por uma finalidade e ou sentido, que seja o do objetivo, do projeto ou de um futuro em geral[37].

Como vimos, Nancy vê no dinheiro a afirmação do “regime da equivalência” e nisso a catástrofe do sentido. Para ele, o dinheiro seria por excelência o princípio dessa equivalência, pois sua definição, emprestada em Marx, é justamente aquela de “equivalente geral”. O dinheiro impediria — sempre segundo Nancy — a afirmação da singularidade, do que é ‘inequivalente’: uma pessoa, uma cor, uns momentos, uns lugares, uns gestos. Para Nancy, haveria, pois, uma incompatibilidade total entre a economia do geral que precisa tornar tudo equivalente e a economia das singularidades. Ou seja, as singularidades, para existir, não podem ser “economizadas”. Oras, nós pensamos que, ao contrário, é o dinheiro que permite de sair desses impasses da mesma maneira que a polémica em torno das afirmações de Agamben não tem nada a ver com a noção foucaultiana de biopolítica.

No meio da segunda onda europeia da Covid-19 (outono europeu de 2020), na França, apareceram os termos de um debate que nos permite explicitar o outro lado da incrível paralização da economia que aconteceu nos primeiros meses da primeira onda (entre março e junho de 2020). Naquele momento, ainda não havia vacinas e apareceu a proposta de uma política sanitária que organizasse o confinamento apenas dos setores ditos vulneráveis da população. Devia tratar-se de um trade off equilibrado entre urgências sanitárias e emergência econômica de maneira a enfrentar as duas ao mesmo tempo. Mesmo que se dissesse que a vida ‘não tem preço’ e se reconhecesse que no momento da decretação do primeiro lockdown não havia escolha, passou-se a introduzir alguns conceitos de ‘economia dos cuidados médicos’. O diretor da prestigiosa École d’économie de Toulouse (na França), Christian Gollier, mobilizou o conceito de ‘valor da vida humana’[38]. Apesar de se afirmar que “faremos tudo (para proteger a vida), qualquer seja o custo”, disse Gollier, “nós arbitramos todos os dias entre esperança de vida e outros bens, preferências e valores: tomamos riscos, fumamos, bebemos, dormimos pouco, compramos um carro menos seguro que custa menos caro etc. Isso significa que nós acordamos um valor finito a nossa vida, revelado por essas escolhas”[39].

Se o poder público analisasse esses dados e deduzisse deles um valor para a comunidade, esse valor seria um indicador que permitiria de tomar decisões conformes ao interesse geral. Por exemplo: precisamos reduzir a velocidade máxima dos carros a 110Kms/hora? O bem e o mal a levar em conta são, e um lado, a perda de tempo e, do outro lado, a diminuição de uso de carburante, de CO2 e de acidentes mortais. Por meio de uma avaliação adequada, todos esses valores, entre os quais o da vida humana, se tornam convertíveis em valores monetários. Não há por que não haver essa arbitragem entre economia e saúde. Por exemplo, o valor da vida estabelecido pelo instituto de estatística econômica e social francês (INSEE) é de 3 milhões de Euros[40]. Esse indicador deveria ser usado, diz Gollier, para os governos estabelecerem políticas de proteção restritas aos grupos mais “vulneráveis”, ou seja, os idosos: “Os 30.000 mortos da primeira onda são equivalentes em termos de bem-estar coletivo a uma queda de 4% do PIB anual”. Afirmação baseada na multiplicação de 3 milhões de Euros pelo total das vítimas. Assim, ele continua: “Esse (4% do PIB) tem que ser comparado ao 20% do PIB anual que se evaporou por causa das paralizações do trabalho impostas no primeiro confinamento”. Ou seja, na contabilidade — na equivalência — do economista haveria uns 16% do PIB que foram sacrificados para nada, pois os mortos foram “apenas” 30.000. Com base nisso, Gollier defende que o “confinamento” fique restrito “às pessoas vulneráveis”, sem alcançar os “jovens e os ativos” (economicamente)[41].

O mais interessante desse debate diz respeito à tentativa de Gollier de estabelecer um critério de mensuração monetária da vida que permita uma contabilidade “aumentada” das políticas sanitárias de confinamento que nos leva diretamente ao debate sobre biopolítica:  estamos assim diante da confirmação das teses de Nancy sobre a equivalência como catástrofe? O que isso significaria do ponto de vista do debate sobre o paradigma do biopoder assim como ele se apresenta na Agamben Controversy?

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A vida da moeda, moeda da vida

Jean-Pierre Dupuy pensa justamente que não há como transformar todos os “bens” em dinheiro sem que alguns deles sejam corrompidos: como é o caso do “amor físico, de um diploma” ou da vida[42]. A vida mantém uma irredutível incomensurabilidade — Nancy diria uma singularidade. Todd McGowan, corretamente crítica a convergência de Agamben com as posições de Donald Trump e Jair Bolsonaro e enfatiza como o filósofo é incapaz de ver que os lockdown marcaram uma brecha potente na lógica da “rentabilidade”, afirmando a incomensurabilidade do valor da vida[43].

Contudo, nos parece que essas críticas são limitadas por não aprenderem as dimensões da bifurcação que apareceram na pandemia e hoje continuam constituindo um horizonte importante de constituição e resistência democrática.

Diferentemente do que diz Dupuy, foi a moeda que permitiu afirmar biopoliticamente as dimensões materiais da incomensurabilidade da vida. Durante a pandemia, as políticas sanitárias implementadas foram possíveis por meio de um movimento geral de criação monetária de dimensões gigantescas. Os corpos se confinaram e a moeda continuou circulando, mantendo e transformando a economia dita “real”. A moeda não é um token, não é (apenas) equivalente geral, ela é relação, confiança, mimetismo e no período obscuro da primeira e da segunda onda da pandemia, quando não havia vacinas nem curas, foi ela que constituiu o maior instrumento de mobilização e defesa da vida: mantendo a circulação em termos diferentes e permitindo os incríveis investimentos que evitaram o colapso dos sistemas sanitário como todas as pesquisas que levaram à produção das vacinas. Claro, enquanto relação social, a moeda é atravessada pelas ambivalências e conflitos que fundam e marcam as relações sociais e políticas e pode funcionar em vários sentidos e direções, assim como sua constituição biface define. Mas ela não é equivalência, ela é constituição.

Contrariamente ao que diz McGowan, o negacionismo agambeniano não é fruto da teoria foucaultiana do biopoder, mas da deformação negativa que o Agamben faz dela. É falando de uma sua visita ao Brasil que Foucault nos dá uma chave para entendermos um pouco o que ele entende quando fala do poder como algo que circula e não é negativo em si. Mencionando uma viagem no Nordeste brasileiro, ele constatava: “a taxa de morbidade chega a 100%: a parasitose — por ‘antimédical’ que se possa ser x — existe; e é possível suprimi-la. O problema é de saber como podemos conseguir resultados terapêuticos, que seria ridículo de negar, sem que isso tenha por suporte e por efeito a instalação, ao mesmo tempo, de um poder medical, de um tipo de relação ao corpo e de um tipo de autoritarismo — enfim, de um sistema de obediência […]”[44].

Para Foucault, o problema não é dissolver as relações de poder na utopia de uma comunicação perfeitamente transparente, mas se dar as regras de direito, as técnicas de gestão e a moral, os métodos, as práticas de si que permitam, nos jogos de poder, de jogar com o mínimo possível de dominação. O poder não é o mal. O poder é o jogo estratégico”. No curso sobre Segurança, Território e População, Foucault  faz a distinção entre 3 tecnologias de poder: o poder soberano (ou arcaico), o poder disciplinar (ou moderno — industrial) e enfim o poder de “segurança” (ou biopoder).

Dupuy pensa que não é possível avaliar a vida sem corrompê-la ao passo que, com Foucault, podemos aprender a biopolítica como a base das medidas radicais de defesa da vida tomadas na primeira fase da pandemia. McGowan pensa que o problema de Agamben está no “anarquismo” de Foucault e, pois, em uma crítica do Estado que lhe impede de ver como — na pandemia — esse teria desempenhado um papel “anticapitalista”. Mas, como explica Nancy, não se trata de “capitalismo”, mas do sistema técnico e econômico. Ao mesmo tempo, nesse sistema, não é a equivalência que vigora, mas a excedência que precisa ser continuamente capturada. O que as massivas criações monetárias durante a grande sideração mostraram em 2020 (e mesmo depois) é que essa excedência é biopolítica: constituição. Agamben não é Voltaire, mas a versão radicalizada de Rousseau e de sua procura de alguma pureza natural: por isso ele negou a pandemia e depois se mobilizou também contra as vacinas, sempre ao longo das linhas de sua tecnofobia.

As medidas tomadas para enfrentar a primeira fase da pandemia não são, em si, anticapitalistas. A volta da inflação mostra que não há solução técnica — puramente orçamentária. A volta da guerra de alta intensidade por sua vez indica que a própria democracia não se sustenta — apenas — pelo jogo de suas instituições. O que faz a diferença é — como na Ucrânia — a resistência como constituição, exatamente como Michel Foucault dizia: “Se não houvesse resistência, não haveria relações de poder, pois tudo seria só uma questão de obediência”. Isso significa que “sempre há a possibilidade de transformar as coisas”.

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Alegoria da Revolução em honras a Rousseau, por Nicolas Henri Jeaurat de Bertry (1794)

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Notas:

[1] Hervé Morin e Pascale Santi “Em France, nous avons raté le déconfinement”, entrevista com Dominique Castagliola, Le Monde, 30 de outubro de 2020, p.4.

[2] Connie May Pickart, “It is hard to believe that China is moving forward when you are trapped in your apartment”, The New York Times, 10 de junho de 2022.

[3] Ver COCCO, Giuseppe. Covid-19: a catástrofe latino-americana, entre a caça e a imaginação. RECIIS – Revista Eletrônica de Comunicação, Informação e Inovação em Saúde, Rio de Janeiro, v. 14, n. 4, p. 812-819, out./dez. 2020. Disponível in https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/45034

[4] As posições de Giorgio Agamben ao longo da pandemia se tornaram o palco da “Agamben Controversy”, ver Todd McGowan, “Agamben in Lisbon: Pandemic and Biopower’s Reckoning”, Philosophy World Democracy, 6 de julho de 2022, disponível in https://www.philosophy-world-democracy.org/articles-1/agamben-in-lisbon-pandemic-and-biopowers-reckoning. Ver também Benjamin Bratton, “Agamben WTF, or How Philosophy Failed the Pandemics”, Verso, 28 de julho de 2021, disponível in https://www.versobooks.com/blogs/5125-agamben-wtf-or-how-philosophy-failed-the-pandemic

[5] Giorgio Agamben, “L’invenzione di un’epidemia”, Quodlibet, 26 de fevereiro de 2020. https://www.quodlibet.it/giorgio-agamben-l-invenzione-di-un-epidemia

[6] Pronunciamento em Rede Nacional do Presidente Jair Bolsonaro, 25 de março de 2020, cf. https://www.youtube.com/watch?v=zuBs0NVr-70, consultado em 9 de junho de 2022.

[7] Jean-Luc Nancy, “Eccezione virale”, Antinomie, 27 de fevereiro de 2020, disponível ehttps://antinomie.it/index.php/2020/02/27/eccezione-virale/

[8] Ibid. Tradução no blog Medium por Paul B. Preciado em português, 28 de fevereiro de 2020 (o blog traduziu para o português os vários artigos da polémica, disponível em https://medium.com/@paulbpreciado_ptbr/exceção-viral-de-jean-luc-nancy-96446a71e4c6.

[9] Vide Peter Pal Pelbart, O avesso do niilismo. N-1, São Paulo, 2016. Ver também Vladimir Safatle, “A política da profanação”, Folha de São Paulo, 16 de setembro de 2005.

[10] Pensemos ao clássico de Robert Musil, O Homem Sem Qualidades, 1930.

[11] Cf., Giuseppe Cocco, Mundobraz, Record, Rio de Janeiro, 2009. Cap. 3.

[12] Cit.

[13] Antonio Negri e Michael Hardt, Empire, Harvard, 2000, p. 136.

[14] L’équivalence des catastrophes (après Fukushima), Galilée, Paris, 2012. O livro contém, além de um prefácio, o texto da videoconferência pronunciada por Nancy em dezembro de 2011, a convite do International Research Center for Philosphy de universidade de Tóquio., pp. 43-4.

[15] Ibid., itálico nosso.

[16] Ibid., p. 45.

[17] Jean-Luc Nancy faleceu em agosto de 2021, um ano e poucos meses depois dessa polémica.  https://www.lemonde.fr/disparitions/article/2021/08/24/le-philosophe-jean-luc-nancy-est-mort_6092216_3382.html

[18] Roberto Esposito, cit.

[19] O acidente nuclear aconteceu no dia 11 de março de 2011, quando três dos seis reatores derreteram depois que a Central foi atingida por um Tsunami gerado por um maremoto.

[20] Cit., p. 13.

[21] Voltaire, Poèmes sur le desastre de Lisbonne et sur les lois naturelles, tradução de Jorge P. Pire, editora Frenesi.

[22] Ibid.

[23] Cit., p. 14. Nancy está usando Jean-Jacques Rousseau, Lettre à Voltaire sur la Providence, em Bernard Gagnebin e Marcel Raymond (orgs), Oeuvres Complètes, t. IV, Paris, Gallimard, coll, Bibliothèque de la Pléiade”, 1969, p. 1061.

[24] Jean-Pierre Dupuy enfatiza que a posição de Rousseau diz respeito ao movimento que colocou o Homem no lugar de Deus: “A teodiceia – ter colocado Deus em acusação – deixou o espaço para a acusação do homem pelo homem. […] Seis anos depois da carta ao Voltaire, Rousseau escreve no Émile : “Homem, não procura mais o autor do mal, esse autor é você mesmo. Não há outro mal que aquele que você faz ou que você sofre, os dois vem de você’”. Ou seja, explicita Dupuy, “depois de Rousseau, a categoria de ‘catástrofe natural’ não tem mais espaço: um terremoto, um tsunami, uma explosão vulcânica, um ciclone, uma seca, um diluvio, você encontrará sempre causas humanas, então responsáveis e, pois, culpados” “Jean-Pierre Dupuy: ‘Si nous sommes la seule cause des maux qui nous frappent, notre responsabilité devient démesurée’”, Entrevista com Antoine Reverchon, Le Monde, 28 de abril de 2020.

[25] Citado por Jean-Pierre Dupuy, ibid. p. 47. Itálico nosso.

[26] Ibid., p. 58.Itálico nosso.

[27] Susan Neiman, Evil in Modern Thought: An Alternative History of Philosophy, Princeton, Princeton, 2004, citada por Dupuy, Short … , cit, p. 31.

[28] Cf. Alexandre Mendes e Giuseppe Cocco (orgs), A Resistência à Remoção de Favelas, Revan, Rio de Janeiro, 2016.

[29] Cit., p. 15.

[30] Ibid., p. 16.

[31] Ibid.

[32] Ibid., p. 17.

[33] Ibid., p. 18.

[34] Ibid., p. 20.

[35] Ibid., p. 39.

[36] “Time to mourn”, The New York Times, 1 de Janeiro de 2005 (citado por Jean-Pierre Dupuy).

[37] Ibid., p. 61.

[38] Intervenção na Radio France Culture na emissão “Prix de la Santé, 27 de abril de 2020. https://www.franceculture.fr/emissions/entendez-vous-leco/le-prix-de-la-vie-14-sante-et-economie-les-freres-ennemis

[39] Ibid. A intervenção de Gollier é citada por Jean-Pierre Dupuy, em Le Monde, cit.

[40] Cf. Béatrice Cherrier, “Chiffrer le prix d’une vie humaine”, Le Monde, 29 de setembro de 2018, disponível em:  https://www.lemonde.fr/idees/article/2018/09/29/chiffrer-le-prix-d-une-vie-humaine_5362088_3232.html

[41] Christian Gollier, “Confiner les personnes vulnérables, plutôt que les jeunes et les actifs”, Le Monde, 5 de novembro de 2020.

[42] Jean-Pierre Dupuy, “Si nous sommes la seule cause des maux qui nous frappent, notre responsabilité devient démesurée”, Le Monde, 3 de julho de 2020. Disponível em: https://www.lemonde.fr/idees/article/2020/07/03/jean-pierre-dupuy-si-nous-sommes-la-seule-cause-des-maux-qui-nous-frappent-alors-notre-responsabilite-devient-demesuree_6045012_3232.html

[43] Sobre a moeda, ver Bruno Cava e Giuseppe Cocco, A Vida da Moeda, Mauá, Rio de Janeiro, 2020. Sobre a política monetária durante a pandemia, ver Michal Brzoza-Brzezina, Marcin Kolasa and Krzysztof Makarski, Monetary Policy and Covid-19, Fundo Monetário Ijternacional, novembro de 2021

[44] Michel Foucault in “Enferment, psychiatrie, prison”, conversaçano com in D. Cooper, J.P. Faye, M.-O. Faye, M. Zecca, Change, n. 22-23,: La folie encerclée, octobre 1977, pp. 76,110, Dits et Écrits II, 1976-1978, Quarto Gallimard, Paris, 2001, p. 347

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Giuseppe Cocco

Giuseppe Cocco tem graduação em Sciences Politiques – Université de Paris 8 (1984), graduação em Scienze Politiche – Università degli Studi di Padova (1981), mestrado em Science Technologie et Société – Conservatoire National des Arts et Métiers (1988), mestrado em História Social – Université de Paris I (Panthéon-Sorbonne) (1986) e doutorado em História Social – Université de Paris I (Panthéon-Sorbonne) (1993). Atualmente é professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro, membro da Pós-Graduação da Escola de Comunicação e do Programa em Ciência de Informação (ECO-Ibict), Pesquisador 1C do CNPq, Cientista do Nosso Estado (Faperj), é editor das revistas Lugar comum e Multitudes (Paris).