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As camadas da crise e os valores democráticos essenciais

por Arthur Alfaix Assis

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Quando tudo começou, não éramos assim tão inexperientes em matéria de mudanças e descontinuidades políticas. Tendo nascido em 1980 e crescido entre o ocaso de uma ditadura e a aurora de um regime democrático, eu próprio já havia acompanhado de perto algumas sérias crises, desde a espiral hiper-inflacionária de fins da década de 80 e o processo de impeachment que destituiu Fernando Collor de Mello, em 1992. É claro, as coisas ficaram muito mais complicadas de 2013 em diante, ou seja, desde que as manifestações de rua contra governos e políticos ganharam uma frequência e intensidade sem precedentes. Após um início multifocal, elas foram canalizadas na direção de Dilma Rousseff e do seu partido, abrindo caminho para uma enorme onda de radicalismo de extrema direita que a todos surpreendeu — inclusive àqueles que a impulsionaram.

Manifestantes no RJ em junho de 2013 (Foto: Tomaz Silva/ABr)

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No início de 2020, portanto, todos os brasileiros capazes de seguir as notícias e de ligar os pontos já se haviam acostumado de algum modo a um ambiente político fortemente degradado. Ainda assim, nenhum de nós estava preparado para o que viria por aí. Diante de tudo o que temos vivido desde março, todas essas crises anteriores perderam a significância e a agudeza que tinham: tornaram-se, num certo sentido, crises normais. Não é que os seus conteúdos experienciais mais elementares tenham deixado de ser o que foram, ou que tenhamos descoberto novas informações e chegado a novos fatos que teriam impacto sobre as nossas interpretações. É que o que veio depois é, para nós, tão novo e impactante que nos obriga a olhar para elas de uma perspectiva que invariavelmente atenua a sua intensidade.

Digo “novo para nós”, porque estamos longe de viver uma experiência inaudita. O nosso atual estado pandemencial — isto é, a combinação entre uma séria contingência epidemiológica catalisada por incompetência e insensibilidade governativas com um estímulo permanente e sistemático da insensatez coletiva por parte de uma facção política — é só relativamente novo. Não é algo comparável a eventos que diferentes gerações puderam imaginar, mas que (ainda!) não tiveram lugar, como o desembarque no planeta de formas de vida alienígena mais inteligentes do que nós, ou uma revolução posta em marcha por autômatos e pela sua inteligência artificial. Na literatura histórica, afinal de contas, são muitos os bons trabalhos acerca das epidemias de outras épocas, e boa parte da psicologia social e da antropologia das religiões pode ser mobilizada para ajudar a entender o modus operandi sectário e negacionista disso que chamamos de bolsonarismo.

A novidade talvez esteja no fato de que, não faz muito tempo, podíamos contemplar esses e outros temas críticos desde uma perspectiva distanciada que agora desapareceu. Há cerca de um ano, eu lia em O mundo de ontem o seguinte comentário de Stefan Zweig sobre os abalos que a catastrófica primeira metade do século XX lhe causou: “Três vezes eles destruíram a minha casa e a minha vida, arrancando-me de tudo o que existiu antes, de todo o passado, e arremessando-me com a sua veemência dramática para o vazio”. Não quero comparar a gravidade das situações a que ele remetia com a nossa atual, mas o fato é que hoje o grau de esforço imaginativo necessário para seguir descrições como a de Zweig se tornou infinitamente menor para qualquer brasileiro que o queira fazer. É aqui que vejo algo de realmente novo.

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Stefan Zweig

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As linhas-mestras da cronologia da dispersão mundial da epidemia associada ao novo coronavírus, bem como as da atrapalhada e sinistra reação do governo brasileiro à situação estão bem estabelecidas e, creio, não causarão confusão aos que no futuro se interessarem por correr atrás do assunto. Mas um impacto subjetivo merece talvez destaque: todos nós, que nos recusamos a acreditar na realidade paralela disseminada pelas redes de desinformação governistas e filo-governistas, tentamos permanecer o máximo possível em casa. No momento em que escrevo, isso já dura mais de quatro meses. Essa condição tem obviamente impactos sobre o cotidiano, quase todos relativamente pequenos. Mas são muitos e o somatório deles, acrescido da disrupção infinitamente maior gerada pela doença e pela morte de tanta gente, produziu a maior fissura na continuidade da experiência do conjunto das gerações viventes.

Quem trabalha a ler e escrever textos está já acostumado a um relativamente elevado nível de isolamento social. Se havia algum grupo da sociedade que estaria preparado para continuar a operar sob as novas condições, sem maiores transtornos, esse seria o dos intelectuais e acadêmicos — e especialmente aqueles que como eu não dependem de esforços em equipe, trabalho de campo, ou experiências laboratoriais. Ainda assim, foram enormes as mudanças no cotidiano de todos nós. Eu pessoalmente tive de aprender a lidar com as atividades pré-escolares da minha filha, de revisitar e aprender um bom número de receitas culinárias, de comprar uma fita de suspenção para tentar me exercitar na nossa minúscula sacada, de lidar com as dores musculares ocasionadas pelo mau uso da fita e possivelmente também pelo maior tempo passado em cadeiras e sofás. Tive também de lidar com pais e parentes bem menos imunizados contra os muitos mecanismos de desinformação vigentes, além de digerir as notícias verdadeiras sobre pessoas doentes e mortas, inclusive pessoas próximas. Mas o mais difícil de tudo, é claro, é a gestão do próprio medo: medo de ficar doente, de ser internado, entubado, de bater as botas, além da dúvida sobre como tudo em casa poderia continuar a funcionar sem mim, temporaria ou permanentemente. E sobretudo, o medo de que filha, esposa, pais, amigos, parentes, adoeçam.

É sobre essas camadas de crise que se veio a sobrepor uma outra. Já nas primeiras semanas epidemiológicas, o presidente da República tudo fez para adicionar às aflições ligadas à doença e à morte um tormento de natureza política. Desprezou as medidas mais básicas de proteção pessoal, propagandeou reiteradamente o uso de medicamentos ineficazes e/ou perigosos, sabotou de muitas maneiras a ação dos governadores e prefeitos que tentaram agir com um mínimo de racionalidade, incitou aglomerações públicas, participou de protestos marcados por pautas golpistas — um dos quais à porta do Quartel General do Exército. E cometeu todas essas e muitas outras barbaridades falando e difundindo uma estranha linguagem — que se torna cada vez mais comum, e não só no Brasil. Uma das suas características mais essenciais é o apelo sistemático a um novo modo verbal, a meio caminho entre o indicativo e o subjuntivo. Chamemos de “conspirativo” esse modo verbal que, como nenhuma outra estrutura da linguagem, permite gerar quase-afirmações: fracas o suficiente para eximir o emissor de responsabilidade criminal, mas ao mesmo tempo fortes o bastante para serem entendidas como muito mais do que meras conjecturas.

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(Foto: Gabriela Biló/Estadão)

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Com isso tudo, passávamos a ter de nos preocupar não só com a nossa própria sobrevivência e a dos nossos familiares, amigos e concidadãos. Causava-nos enorme preocupação a absurda falta de honestidade, responsabilidade e inteligência na reação dos diferentes governos à difusão da epidemia. No início de julho o prefeito de Itabuna, Bahia, ao justificar o seu decreto sobre a reabertura de lojas comerciais num cenário de colapso do sistema hospitalar da cidade, cometeu um embaraçoso ato de sincericídio e deixou escapar um pensamento que muitos governantes não tiveram a ousadia e a ingenuidade de exprimir em público. “Morra quem morrer”, afirmou ele, proporcionando-nos a melhor síntese da maneira obtusa, irresponsável e desumana com que a crise brasileira está sendo gerida.

E como se nada disso bastasse, de repente, a sobrevivência do nosso jovem estado democrático e de direito era ostensivamente posta em cheque por meio de atos e palavras, muitos dos quais produzidos e proferidos por altas autoridades da República. Tais são ameaças muitíssimo sérias e só as pode minimizar quem ignora padrões e tendências que já estão bem delineadas. Na direita, há muitos que embora sintam algum desconforto com os métodos e a linguagem bolsonaristas continuam a dar a sua aprovação ao governo. Concordam com boa parte do seu reacionarismo em matéria de costumes e cultura, ou mostram uma paciência ilimitada com a dogmática agenda econômica de Paulo Guedes — que conseguiu se manter inabalável mesmo diante de uma tão profunda mudança de cenário como a dos últimos meses. Por isso, continuam a acreditar que sempre haverá no governo agentes racionais que possam manter o Presidente da República mais ou menos sob controle. Num outro plano, mobilizam a mesma propensão para a autoilusão em múltiplas tentativas de se imunizar contra o vírus por recurso a sobredoses de vermífugo, vitaminas, cerveja preta ou água fervida com alho.

A normalização do presente, entretanto, não é monopólio da direita. Mesmo sem querer, parte da esquerda colabora para isso ao sugerir que quando da posse do atual presidente, em 2019, o Brasil já não era uma verdadeira democracia há algum tempo. É certo que a nossa realidade democrática sempre esteve bastante longe dos ideais que a inspiraram; que os governos da esquerda foram alvos da intolerância da fração mais abastada da sociedade; que foi traumática a destituição de poder de Dilma Rousseff, a primeira mulher a ser eleita presidente da República; que a ação da chamada Operação Lava-Jato foi muito além do que quer que se possa razoavelmente ter em mente quando se fala em “devido processo legal”. Mas afirmar que as instituições democráticas já estavam em ruínas e usar aspas para falar da eleição de Jair Bolsonaro é abrir mão do sentido de proporção. O principal efeito colateral pode ser o de fomentar uma relativização da gravidade da nossa situação e, com isso, dificultar a contestação da mesma.

Uma coisa era quando podíamos discutir se um mandatário foi destituído por razões justas ou injustas, por meio de um conchavo legítimo ou ilegítimo, ou se o processo que preparou as condições para isso foi ou não foi caracterizado por manipulações judiciais e midiáticas indevidas. Mas isso se altera quando entram no horizonte ameaças que atingem não só personalidades e entidades políticas concretas, mas sobretudo as instituições que dão suporte a todos os atores reais no teatro democrático. Uma coisa são as diferenças políticas que se desenvolvem e colidem dentro de um ambiente em que a ordem legal e as instituições democráticas podem ser tomadas por mais ou menos garantidas. As coisas mudam completamente de figura quando uma das diferentes posições em luta passa a desrespeitar sistematicamente as regras do jogo democrático e a militar contra a ordem legal e as instituições existentes. Antes mesmo da dispersão da epidemia, era isso o que já estava em curso no Brasil. Hoje só não vê quem não quer: o grupo que está no poder pretende desmontar a democracia, e julga ter obtido carta branca para isso uma vez que o atual presidente foi democraticamente eleito. Argumentos desse tipo, aliás, ilustram bem o tamanho do estrago que pode ser causado quando o cinismo e a insciência se alimentam mutuamente.

Nós nos metemos num ambiente de constante ameaça existencial à democracia, e diante disso muitos têm sentido a necessidade de aplaudir um veterano e nada popular ministro do STF como o Gilmar Mendes, um jovem youtuber que há pouco parecia ser pouco mais do que oportunista e superficial como o Felipe Neto, e um político astuto como o Rodrigo Maia. Nunca imaginei que fosse surgir um contexto em que eu elogiaria, e em simultâneo, a coragem dos três. Mas isso é exatamente o que precisa ser feito agora. É um sinal mais do que eloquente das complicações investidas na situação em que estamos. É real o risco de que a escalada autoritária siga em frente, seja pela via mais antiga de um golpe de estado centralizado, seja através da paulatina hipertrofia do poder executivo e da degradação dos demais poderes — que podem acabar cozidos como um sapo numa panela que aquece lentamente.

Para fazer face a esse risco, será preciso muita inteligência, além de algum treino na arte de sublimar temporariamente diferenças. Sem um bom ajuste de expectativas será impossível por para funcionar o tipo de união cívica capaz de oferecer um contraponto eficaz à situação atual. Os que criticam a democracia liberal em nome de uma democratização mais ampla do que esta tem sido capaz de fomentar podem refletir sobre o prognóstico de que, hoje, as chances de uma eventual falência da democracia conduzir a um ordenamento político que cancela e restringe direitos é bastante superior às chances de que venha a ser sucedida por ordens políticas que garantam e ampliem direitos.  Por outro lado, os defensores civilizados da liberalização econômica devem ganhar mais sensibilidade para as estruturas que produzem e reproduzem as enormes injustiças sociais que sempre marcaram o Brasil. Devem, assim, aprender a ouvir a palavra desigualdade sem ter de “ficar com o pé atrás”, tal como o confessou fazer o gestor de uma das maiores empresas de investimento do país, em meados de julho.

Durante e após a epidemia, o esforço de preservar o estado democrático, as liberdades fundamentais, a ordem legal e a paz social estará além e aquém do habitual conflito entre a direita e a esquerda. É um esforço por sobrevivência que exige que nos voltemos a valores e sentimentos essenciais. O Brasil está num caminho parecido àquele que nas últimas décadas tem sido trilhado por países como a Rússia, a Venezuela, a Hungria e a Polônia — malgrado todas as especificidades de cada caso. Demos passos perigosos na direção da tirania; cumpre agora tentar revertê-los. É hora de atuar para conservar o que conseguimos construir a duras penas desde o início da Nova República: uma ordem jurídica e política conectada aos valores disseminados no horizonte do Iluminismo, especialmente os da igual dignidade de todos os seres humanos, da tolerância, da racionalidade, da empatia com o outro e da autonomia individual.

O risco de voltar atrás em todas essas coisas não existia antes. Mesmo quando intelectuais e políticos à esquerda insuflavam duras críticas a uma tradição entendida como ocidental, eurocêntrica, masculina, burguesa, colonialista, logocêntrica, etc., ainda me parece que na maioria dos casos se mantinham, a contragosto ou não, razoavelmente dentro das águas do Iluminismo — o qual, afinal de contas, sempre implicou a crítica de si mesmo como condição da própria realização. Mas não deixa de ser irônico que vejamos entrar em cheque valores civilizatórios tão elementares justamente agora que o poder está nas mãos dos que abraçam com entusiasmo fanático a defesa da civilização ocidental.

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Lecture de la tragédie “L’orphelin de la Chine” de Voltaire dans le salon de madame Geoffrin, Lemonnier, 1812

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Arthur Alfaix Assis

Arthur Alfaix Assis é Professor de Teoria e Metodologia da História do Departamento de História da Universidade de Brasília e pesquisador do CNPq. Realizou seu doutorado na Universidade de Witten/Herdecke. É autor dos livros A teoria da história de Jörn Rüsen. Uma introdução (2010) e What Is History For? Johann Gustav Droysen and the Functions of Historiography (2014/2016).