MedicinaPolítica

Dor e política

por Christine Lopes

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Percival: Sim, sou jornalista. E quem é você?

Cidadão: Olha essa tua boca! Estou cagando para jornalistas. Querendo, eu limpo a minha bunda com as tuas qualificações.

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O terror toma conta de todos. A xícara que Ludovico segura entre as mãos se estilhaça, derramando chá no pequeno Leo, que de um sobressalto agarra os cacos de vidro. Dr. Ernesto logo pega em sua maleta uns frascos pequenos, cotonetes, agulha, linha e um curativo. Esteriliza a ferida com iodo e enfia a linha na agulha:“Ele está sangrando, foi a xícara.”

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Tom Stoppard, Leopoldstadt[1]

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Em janeiro de 2020, pouco antes da pandemia de Covid-19 eclodir, o dramaturgo inglês Tom Stoppard estreou em Londres a peça Leopoldstadt. O título da peça se refere a um distrito de Viena. Tom Stoppard nasceu Tomáš Sträussler em 3 de julho de 1937, em Zlín, na antiga Tchecoslováquia, atual República Tcheca. Leopoldstadt é inspirada no sofrimento pessoal e político da sua família sob o regime nazista.

Enquanto os Sträussler e tantas outras famílias judias e minorias étnicas eram destruídas pelo nazismo, o médico Renato Kehl (1889–1974) e seus associados celebravam no Brasil o compromisso alemão com o “aperfeiçoamento” da espécie humana, isto é, com a eugenia.[2] Em medicina, a eugenia é uma política social e de saúde pública que distingue entre vidas que têm mais valor que outras.

O pequeno Leo na citação de abertura é a versão ficcionalizada do próprio Tom Stoppard, e Dr. Ernesto é a versão ficcionalizada do seu pai, um médico judeu-tcheco muito querido e respeitado, que sobreviveu na memória de idosos tchecos de quem ele cuidou quando crianças. Trata-se de uma linda homenagem aos médicos que sabem trazer conforto em meio à dor e ao medo. Leopoldstadt somente retornou aos palcos em agosto de 2021, após uma campanha nacional de vacinação que foi apoiada em peso pela classe médica britânica.

Enquanto isso, no Brasil, médicos ofereciam tratamentos para Covid-19 que as principais organizações médicas e científicas mundiais já haviam demonstrado ser prejudiciais ou ineficazes. No auge da pandemia, vários deles partiram para a experimentação direta nos corpos sem ar que chegavam aos hospitais. A ausência de liderança humanitária nacional entre os médicos era patente em meio ao trauma generalizado e no registro corajoso dos jornalistas.

Nós temos o dever de nos chocar, mas não temos o direito de nos surpreender. Fazer o mal para melhorar ou salvar vidas é uma possibilidade real em política e em medicina. Quem não sabe disso, deveria saber. Em 1929, liderados pelo Dr. Renato Kehl, um grupo de médicos, educadores, antropólogos e advogados ansiosos por progresso nacional realizaram no Rio de Janeiro o Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia. A ocasião era o centenário da Academia Brasileira de Medicina. Os participantes viam como urgente a refundação do Brasil: não mais um país preto e caboclo, miserável, doente e analfabeto.

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Kehl faz uma crítica à elite política brasileira e a considera incapaz de realizar o projeto de regeneração eugênica da população. Neste sentido, esta elite política também precisaria ser “eugenizada”.[3]

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Essa é a nossa estória, que se repete. Ultrapassamos o recorde de meio milhão de brasileiros mortos por Covid-19. A pandemia ainda não acabou. Muitos continuam sendo sacrificados em experimentações médico-políticas ineficazes, quando não sabidamente maléficas, todas elas baseadas em pseudociência e pseudoterapias médicas. Vale a pena perguntar por que médicos não deveriam agir assim, mesmo se quisessem — e por que médicos brasileiros quiseram, puderam, e continuam a agir assim.

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Doença intelectual

O termo “eugenia”, e a eugenia como suposta ciência, são uma criação inglesa de Francis Galton, cientista, explorador, matemático estatístico e meio-primo do grande naturalista inglês Charles Darwin.[4] O avô de ambos tinha sido um médico renomado, e tanto Darwin quanto Galton estudaram medicina.[5]

Como cientistas súditos do Império Britânico, ambos acreditavam na superioridade dos brancos europeus. Assim como era possível aperfeiçoar exemplares de certos tipos de animais e vegetais, um dia seria possível aperfeiçoar a raça humana. Darwin, inicialmente interessado nas experiências eugênicas com animais e plantas, se manteve evasivo frente às obsessões eugênicas do meio-primo:

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Em 1873, Galton propôs fundar uma sociedade para reunir informações sobre hereditariedade, incluindo um registro nacional de doenças e enfermidades hereditárias, com o objetivo de melhorar a população. Darwin era menos otimista, “a maior dificuldade seria decidir quem colocar no registro…”[6]

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Pouco antes de morrer, em 1910, Galton termina um romance onde descreve a sua utopia eugênica. O título do romance é Kantsaywhere (Nãoseidizeronde).

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[U]m senhor chamado Neverwas (Nuncafoi) torna possível Kantsaywhere doando sua propriedade, desde que a renda “seja empregada na melhoria do rebanho do lugar, especialmente da raça humana.” O Colégio Eugênico de Kantsaywhere determina o destino de seu povo usando um teste que estabelece os dotes físicos e mentais hereditários de cada habitante. Aqueles que falham no teste são segregados em colônias de trabalho, onde a propagação – ter filhos – era crime, ou então são encorajados a emigrar. Augusta Allfancy (Augusta Todaimaginária), passa com louvor e se torna estagiária.[7]

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Animados com as teorias eugênicas dos ingleses, os norte-americanos legalizaram a eugenia a partir de 1907 na forma de racismo e esterilização forçada.[8] Os ingleses, por outro lado, nunca transformaram a eugenia em lei. Em meados de 1930, a eugenia foi oficialmente declarada pseudociência por cientistas ingleses e americanos.

Isso não impediu que a Alemanha de Hitler seguisse a ideologia racista norte-americana e adotasse suas leis eugênicas, levando a política eugênica às últimas consequências médicas e sociais em campos de concentração:

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O método de eugenicídio mais comumente sugerido nos Estados Unidos da América era uma “câmara letal” ou câmaras de gás públicas operadas localmente. Em 1918, Popenoe, especialista em doenças venéreas do Exército durante a Primeira Guerra Mundial, co-escreveu um livro amplamente utilizado, Applied Eugenics (Eugenia Aplicada), que argumentava: “Do ponto de vista histórico, o primeiro método que se apresenta é a execução… elevar o padrão da raça não deve ser subestimado.” Eugenia Aplicada tem ainda um capítulo dedicado à “Seleção Letal”, que operava “através da destruição do indivíduo por alguma característica adversa do ambiente, como bactérias ou deficiência corporal.” [9]

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Enquanto isso, no Brasil, Dr. Renato Kehl tomava para si a missão de associar para sempre o Brasil ao movimento eugenista.[10] Entre suas publicações estão Eugenia e Medicina Social (1920), Bíblia de Saúde (1926), Lições de Eugenia (1929), Pais, Médicos e Mestres: Problemas de Educação e Hereditariedade (1939) e Psicologia da Personalidade (1959). Atuou como psicólogo, além de médico:

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Pode-se afirmar que Renato Ferraz Kehl marcou época no pioneirismo da ciência psicológica no Brasil. Por esta razão foi escolhido, por esta Academia de Psicologia, Patrono da Cadeira nº 13, que leva seu nome. Na oportunidade do centenário de seu nascimento (1989) foi homenageado mais uma vez…[11]

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Dr. Renato Kehl ocupou vários cargos políticos e teve presença marcante na indústria farmacêutica brasileira. Ele foi o representante oficial no Brasil da famosa Bayer, braço corporativo da infame IG-Farben que forneceu o gás Zyklon B utilizado nas câmaras de gás dos campos de concentração alemães: “Em suas atividades mais criminosas, a empresa aproveitou a ausência de restrições legais e éticas na experimentação médica para testar seus medicamentos em seres humanos sem consentimento.”[12]

O ocupante da Cadeira nº 93 da Academia Nacional de Medicina foi o maior representante da eugenia negativa no Brasil e na América Latina.[13] A prática da eugenia negativa visa a impedir ou restringir as chances de nascimento ou sobrevivência de gente vista como moralmente degenerada, fisicamente fraca ou deficiente, ou “de cabeça ruim”.

Para tanto, no início dos anos 30 foi introduzido no Brasil o exame biológico e mental pré-nupcial.[14] Dr. Renato Kehl e seus apoiadores conseguiram ainda que fosse criada uma lei nacional para restringir a imigração para o Brasil de certos tipos de gente.[15]

Vários médicos, educadores, antropólogos e advogados se opuseram a esse estado de coisas. Em lugar de eugenia negativa, eles defendiam a chamada eugenia positiva. A eugenia positiva visa a melhorar as condições de saúde das populações não-brancas, para dar a elas a oportunidade de uma vida melhor, isto é, uma vida embranquecida.[16]

Historiadores observam que a medicina no Brasil não teria praticado a eugenia negativa literalmente, embora tenha oficializado o racismo como ideal nacional.[17] Do mesmo modo, pode-se dizer que a medicina brasileira talvez não pratique literalmente a ética médica mundial. Pois a eugenia é uma pseudociência que deu origem a práticas médicas chocantes, mas o negacionismo científico entre médicos brasileiros optou pela pseudociência.

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Remédio ético

Aos 67 anos, no dia 7 de fevereiro de 1979, morria o nazista mais bárbaro e procurado desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Dr. Joseph Mengele, que passara a vida fugindo da Lei e com obstruções intestinais, morreu afogado na espuma à beira-mar enquanto relaxava na praia da Bertioga com amigos.[18]

“O Brasil sempre foi um porto seguro para refugiados nazistas,” observa um jornalista alemão. Em carta a um amigo nazista, Dr. Joseph Mengele escreveu que vivia “entre famílias que se sentiam amplamente solidárias com os nazistas.” À exceção de um membro de uma família amiga, “todos os outros no ambiente social de Mengele apoiavam a ideologia racial.”[19]

Nos anos 1990 eu retornava de uma conferência em Itatiaia, quando colegas decidiram parar para almoçar. Tratava-se de um pequeno restaurante alemão. Quando entramos, senti um desconforto estranho e não me sentei. Perguntei aos colegas se alguém por acaso sabia quem eram os donos—: “Pertencia ao médico nazista Joseph Mengele, por quê?”.

Dr. Joseph Mengele praticou experimentos médicos eugênicos deliberadamente sádicos e fatais no campo de concentração de Auschwitz. Os corpos e mentes que atacou, desmembrou e retalhou como se fossem carcaças pertenciam a judeus e outros “tipos” considerados inferiores ou não-humanos. Ele não agiu sozinho.

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Como é que o sistema médico da Alemanha foi degradado? Os médicos abandonaram a santidade do Juramento de Hipócrates e participaram voluntariamente de atividades genocidas. Quarenta e cinco por cento dos médicos alemães eram membros da Liga de Médicos Nazistas e serviram como líderes na implementação das políticas de Hitler.[20]

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O Dr. Joseph Mengele escapou da maior corte criminal internacional de todos os tempos, o Julgamento de Nuremberg.[21] Poucos sabem que a participação de médicos no nazismo foi tão fundamental que eles tiveram a sua sessão própria dentro do Julgamento de Nuremberg.[22] O veredito final dos juízes deu origem em 1947 ao Código de Nuremberg.

O Código de Nuremberg cria pela primeira vez na história da medicina a necessidade de que o médico obtenha consentimento do paciente. O Código possui dez princípios.[23] O princípio número 1 é o princípio condutor dos demais e aparece, modificado, nos códigos de ética médica adotados em diferentes países. Ele ressoa com o milenar Juramento de Hipócrates que os médicos fazem, e cujo preceito é simples: Antes de mais nada, não faça o mal.

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O consentimento voluntário do sujeito humano é absolutamente essencial. Isso significa que a pessoa envolvida deve ter capacidade legal para dar consentimento; deve estar situado de modo a poder exercer o livre poder de escolha, sem a intervenção de qualquer elemento de força, fraude, engano, coação, exagero ou outra forma ulterior de coação…[24]

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Birkenau, 1944

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O mal sai das sombras

Ao fim de 2020, já éramos mais de meio-milhão de brasileiros mortos em óbitos relacionados a Covid-19.[25] Milhares já haviam desenvolvido problemas de saúde desencadeados ou piorados pelo vírus ou como resultado de “tratamentos experimentais” ou “terapias alternativas” para os quais não havia e não há evidência científica. A Associação Médica Mundial (AMM) já havia alertado os médicos de todo o mundo.

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A disseminação de notícias falsas e o descrédito da ciência…tem levado muitas pessoas a morrerem e outras a serem expostas à Covid-19, de acordo com o presidente da Associação Médica Mundial. Em seu discurso de despedida [da presidência]…o Dr. Miguel Jorge, psiquiatra do Brasil, mencionou os presidentes do Brasil e dos Estados Unidos como contribuintes para que mais pessoas sejam expostas ao vírus e mais mortes.[26]

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A Associação Médica Brasileira é filiada à AMM, a qual, por sua vez, possui canais diretos de comunicação e colaboração com a Organização Mundial da Saúde (OMS). A AMM e a OMS foram criadas ao fim da Segunda Guerra Mundial. Ambas as instituições têm a missão de garantir a saúde e o bem-estar de todos os seres humanos sem exceção. Essa missão fica clara na Declaração de Genebra aprovada pela AMM em 1947.

A Declaração de Genebra é um documento ético com doze promessas a serem feitas pelo médico.[27] O documento, que foi revisado em 2017, estabelece os deveres do médico em relação ao paciente, à sociedade e a si mesmo como profissional, delimitando assim o poder que o médico tem sobre o paciente.

Esse poder é intrínseco à prática médica. Quem está sofrendo quer que o sofrimento acabe logo. Isso exige completa confiança no médico, em seu compromisso com não fazer o mal enquanto procura aliviar a dor ou curar. As seguintes promessas da Declaração de Genebra falam por si sós:

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–       NÃO PERMITIREI que considerações sobre idade, doença ou deficiência, crença religiosa, origem étnica, sexo, nacionalidade, filiação política, raça, orientação sexual, estatuto social ou qualquer outro fator se interponham entre o meu dever e o meu paciente;

–       RESPEITAREI a autonomia e a dignidade do meu paciente;

–       EXERCEREI a minha profissão com consciência e dignidade e de acordo com as boas práticas médicas;

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Na primeira promessa acima, o médico promete manter imparcialidade no tratamento do paciente. Na segunda promessa, o médico promete respeitar as capacidades individuais do paciente e o seu valor como ser humano. Na terceira promessa, o médico promete agir de tal modo que possa justificar eticamente — “com consciência e dignidade” — os seus atos profissionais.

Se pensarmos bem, esta última promessa dá sentido a todo e qualquer documento ético que tenha por objetivo delimitar as ações do médico e proteger o paciente e a sociedade. Afinal, o médico pode dar várias razões para os seus atos: razões técnicas, médicas, legais, pessoais, etc. Mas o que confere validade ética a essas razões?

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Tempo de cura

Razões médicas não são eticamente válidas por si mesmas ou “porque o doutor falou”. A sua validade ética é verificada se o tratamento médico é o melhor possível e protege o paciente de maleficência médica. O melhor tratamento possível se baseia em evidência científica: “A prática médica deve se basear na melhor e mais atual evidência comprovada cientificamente, atualizada e disponível.”

Esse critério de evidência científica está na Declaração Sobre Pseudociência e Pseudoterapias no Campo da Saúde, um documento oficializado pela AMM em outubro de 2020.[28] O documento define com clareza o que é pseudociência e o que é pseudoterapia médica.

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“Pseudociência” (falsa ciência) refere-se ao conjunto de afirmações, suposições, métodos, crenças ou práticas que, sem seguir um método científico válido e reconhecido, são falsamente apresentadas como científicas ou baseadas em evidências.

“Pseudoterapias” (terapias falsas) são aquelas práticas destinadas a curar doenças, aliviar sintomas ou melhorar a saúde com procedimentos, técnicas, produtos ou substâncias baseadas em critérios sem o suporte de evidências científicas atualizadas disponíveis; e que podem ter riscos e danos potenciais significativos.

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Do ponto de vista ético, explicações ou justificativas de prática médica baseadas em pseudociência ou pseudoterapias são inaceitáveis.

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O dever de um médico é fornecer assistência médica de qualidade a todos os pacientes com base nas melhores evidências científicas disponíveis, conforme referido na Declaração de Genebra e no Código Internacional de Ética Médica

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O mesmo documento faz recomendações claras e diretas aos membros da AMM e à profissão médica, como por exemplo:

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Todos os atos de intromissão profissional, atividades de pseudociência e pseudoterapia que ponham em risco a saúde pública devem ser comunicados às autoridades competentes, incluindo publicidade enganosa e sites de saúde não credenciados que ofereçam serviços e/ou produtos e que coloquem em risco a saúde de pacientes…

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Várias recomendações são feitas aos médicos, entre outras:

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Com o apoio das organizações e autoridades relevantes envolvidas na governança e regulamentação da profissão médica, os médicos devem praticar a medicina como um serviço baseado na aplicação de conhecimento científico crítico atual, em habilidades especializadas e comportamento ético, e devem manter suas habilidades o mais atualizadas possível sobre os desenvolvimentos na sua área profissional.

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As associações médicas afiliadas à AMM, como é o caso da brasileira, desenvolvem e revisam os seus códigos de ética médica regularmente. Os princípios desses códigos devem estar alinhados aos documentos éticos aprovados pela AMM, que incluem o Código de Nuremberg, a Declaração de Genebra, o Código de Ética Médica Mundial. Uma leitura cuidadosa do Código de Ética Médica brasileiro mostra que ele reflete esses documentos.

Mas um documento pode refletir os princípios de outros documentos, e ainda assim não se submeter explicitamente à validade conceitual desses princípios. Essa diferença é mais prática e importante do que se pode pensar. Quando se trata de princípios médicos, ela pode fazer a diferença entre vida e morte.

O Código de Ética Médica brasileiro não usa em nenhuma das suas quarenta e três páginas as palavras “explicar”, “explicação”, “justificar”, “justificação”, “evidência”, “ciência” ou “evidência científica”. A palavra “prática” associada à prática médica aparece dezessete vezes, enquanto as expressões “progresso científico” e conhecimento “cientificamente reconhecido” aparecem de quatro a cinco vezes.

Postular que o médico deve usar meios “cientificamente reconhecidos” é tão vago quanto postular que o advogado deve usar meios “juridicamente reconhecidos”. Que critério determina os meios que têm a menor probabilidade de fazer o mal ao paciente? A AMM é clara: esse critério deve ser a melhor evidência comprovada cientificamente, atualizada e disponível.

A versão mais recente do Código de Ética Médica brasileiro foi aprovada em 2018 e publicado em 2019, antes da pandemia. Mas o conceito de medicina baseada na melhor evidência científica já era bem conhecido dos médicos brasileiros desde os anos 2000.[29]

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Considerações finais: o compromisso com a vida

Os milhares de médicos brasileiros sérios, exauridos pela pandemia, não mereciam viver esse constrangimento profissional. Eles sabem que dificuldades políticas, sociais, econômicas e técnicas não impedem que o médico ofereça cuidado e conforto humano na hora da dor — como faz o Dr. Ernesto em Leopoldstadt.

Por outro lado, ausência de recursos e desespero geram frustração e vontade de encontrar soluções a todo custo. É nesses momentos que a prática médica se divide entre os que decidem girar a roleta da morte, e os que sabem permanecer éticos no serviço à vida.

O médico nem sempre cura e nem sempre salva vidas. Quanto aos milhões de familiares e amigos que perderam seus entes queridos — resta a dor.

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Leopoldstadt (Reprodução)

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Notas:

[1] STOPPARD, T. Leopoldstadt. London: Faber & Faber, 76–83, 2020.

[2] STEPAN, NL. Eugenia no Brasil, 1917-1940. In: HOCHMAN, G. e ARMUS, D. (orgs.) Cuidar, Controlar, Curar: Ensaios Históricos sobre Saúde e Doença na América Latina e Caribe [online]. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 330-391, 2004. Disponível em: https://books.scielo.org/id/7bzx4/pdf/hochman-9788575413111-11.pdf. Acesso em: 20, fev. 2022.

[3] GONÇALVES, AdS. Eugenia em debate: Medicina e Sociedade. I Congresso Brasileiro de Eugenia. Anais do XIV Encontro Regional de História da ANPUH-Rio – Memória e Patrimônio. Associação Nacional de História, 2010. Disponível em: http://www.encontro2010.rj.anpuh.org/resources/anais/8/1276697830_ARQUIVO_MedicinaeSociedadenoICongressoBrasileirodeEugenia.pdf. Acesso em: 20, fev. 2022.

[4] GALTON, F. Hereditary Genius: An Inquiry into Its Laws and Consequences. London: Macmillan, Print, 1869. Disponível em: https://psycnet.apa.org/PsycBOOKS/toc/13474 . Acesso em: 20, fev. 2022.

[5] GILLHAM, NW. Cousins: Charles Darwin, Sir Francis Galton and the birth of eugenics. Significance, 6: 132-135, 2009. Disponível em: https://doi.org/10.1111/j.1740-9713.2009.00379.x. Acesso em: 20, fev. 2022. ENGLISH HERITAGE, BLUE PLAQUE STORIES, Eugenics in Britain. Disponível em: https://www.english-heritage.org.uk/visit/blue-plaques/blue-plaque-stories/eugenics/. Acesso em: 20, fev. 2022.

[6] FRANCIS Galton. Darwin Correspondence Project – University of Cambridge. Disponível em: https://www.darwinproject.ac.uk/francis-galton. Acesso em: 20, fev. 2022. Ver também: STEVENS, R. Darwin, Race, and Gender. European Molecular Biology Organization, EMBO reports, 10:4, 297, 2009.

[7] GILLHAM, ibid.

[8] BOUCHE, T. e RIVARD, L. America’s Hidden History: The Eugenics Movement. Nature – Scitable Forums, 18 September 2014. Disponível em: https://www.nature.com/scitable/forums/genetics-generation/america-s-hidden-history-the-eugenics-movement-123919444/. Acesso em: 20, fev. 2022.

[9] BLACK, E. The Horrifying American Roots of Nazi Eugenics. History News Network, Columbian College of Arts & Sciences, The George Washington University, September 2003. Disponível em: https://historynewsnetwork.org/article/1796 . Acesso em: 20, fev. 2022.

[10] ROMO, A. Brazil – Eugenics Archive, 24 February 2014. Disponível em: https://eugenicsarchive.ca/discover/connections/530b92ae76f0db569b000002 . Acesso em: 20, fev. 2022.

[11] PÉREZ-RAMOS, J. Cadeira nº13, “Renato Kehl”. Boletim – Academia Brasileira de Psicologia, vol.39, no.97 São Paulo jul./dez. 2019. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1415-711X2019000200020. Acesso em: 20, fev. 2022.

[12] BAYER. Holocaust Encyclopaedia. Disponível em: https://encyclopedia.ushmm.org/content/en/article/bayer. Acesso em: 20, fev. 2022.

[13] RENATO Ferraz Kehl. Academia Nacional de Medicina. Disponível em: https://www.anm.org.br/renato-ferraz-kehl/. Acesso em: 20, fev. 2022.

[14] VIEIRA, TSA. Eugenia, o controle do corpo feminino e a concepção de maternidade científica. Anais do XIX Encontro Regional de História da ANPUH-Rio – História do Futuro: Ensino, Pesquisa, e Divulgação Científica, 2020. Disponível em: https://www.encontro2020.rj.anpuh.org/resources/anais/18/anpuh-rj-erh2020/1595610412_ARQUIVO_ffb1dc86be50393395551e5cf4007d82.pdf. Acesso em: 20, fev. 2022.

[15] CÂMARA dos Deputados (Rio de Janeiro). Decreto nº 24.215 de 9 de maio de 1934. Diário Oficial da União – Seção 1 – 18/5/1934, Página 9451 (Publicação Original). Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1930-1939/decreto-24215-9-maio-1934-557900-publicacaooriginal-78647-pe.html. Acesso em: 20, fev. 2022.

[16] DE SOUZA, VS. A Política Biológica como Projeto: A “Eugenia Negativa” e a Construção da Nacionalidade na Trajetória de Renato Kehl (1917-1932). Dissertação de Mestrado, Casa de Oswaldo Cruz – FIOCRUZ, Programa de Pós-Graduação em História das Ciências da Saúde. Rio de Janeiro, 2006. Disponível em: https://www.arca.fiocruz.br/bitstream/icict/6134/2/8.pdf. Acesso em: 20, fev. 2022.

[17] DE SOUZA, VS. Por uma nação eugênica: higiene, raça e identidade nacional no movimento eugênico brasileiro dos anos 1910 e 1920. Revista Brasileira de História da Ciência, Rio de Janeiro, v. 1, n. 2, p. 146-166, jul|dez 2008. Disponível em: https://www.sbhc.org.br/arquivo/download?ID_ARQUIVO=74. Acesso em: 20, fev. 2022.

[18] MONTALBANO, WD. e LONG, WR. Conspiracy of Silence: ‘Mengele’ in Brazil: A Life in Shadows. Los Angeles Times, 17 June 1985. Disponível em: https://www.latimes.com/archives/la-xpm-1985-06-17-mn-12566-story.html#:~:text=An%20old%20man%20who%20had,with%20friends%20who%20loved%20him. Acesso em: 20, fev. 2022.

[19] WIEDEMANN, vE. e GLÜSING, J. Josef Mengele in Brazil: ‘Angel of Death’ Diary Shows No Regrets. Spiegel Internacional, 29 November 2004. Disponível em: https://www.spiegel.de/international/spiegel/josef-mengele-in-brazil-angel-of-death-diary-shows-no-regrets-a-330311.html. Acesso em: 20, fev. 2022.

[20] MILLER, SM. The role of Eugenics in research misconduct. Missouri medicine111(5), 386–390, 2014. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC6172097/. Acesso em: 20, fev. 2022.

[21] THE Nuremberg Trials. United States Holocaust Memorial Museum. Disponível em: https://www.ushmm.org/collections/bibliography/the-nuremberg-trials. Acesso em: 20, fev. 2022. MILITARY Law – Nuremberg Trials. The Library of Congress, Military Legal Resources. Disponível em: https://www.loc.gov/rr/frd/Military_Law/Nuremberg_trials.html. Acesso em: 20, fev. 2022. LEE, M. A., The CIA’s Worst-Kept Secret: Newly Declassified Files Confirm United States Collaboration with Nazis. Institute for Policy Studies, 1 May 2001. Disponível em: https://ips-dc.org/the_cias_worst-kept_secret_newly_declassified_files_confirm_united_states_collaboration_with_nazis/. Acesso em: 20, fev. 2022.

[22] Chelouche, T. Teaching Hard Truths About Medicine and the Holocaust. American Medical Association – AMA Journal of Ethics, 23(1): E59-63, January 2021.

[23] ANNAS, GJ., e Grodin, M. A. (2018). Reflections on the 70th Anniversary of the Nuremberg Doctors’ Trial. American journal of public health108(1), 10–12. Disponível em: https://doi.org/10.2105/AJPH.2017.304203. Acesso em: 20, fev. 2022.

[24] DOCTORS Trial – Nuremberg Code. United States Holocaust Memorial Museum. Disponível em: https://www.ushmm.org/information/exhibitions/online-exhibitions/special-focus/doctors-trial/nuremberg-code. Acesso em: 20, fev. 2022.

[25] PAINEL Coronavírus. Ministério da Saúde. Disponível em: https://covid.saude.gov.br/. Acesso em: 20, fev. 2022.

[26] LIVES Lost through spreading of discredited science. World Medical Association. 29, out. 2020. Disponível em: https://www.wma.net/news-post/lives-lost-through-spreading-of-discredited-science-says-wma-leader/. Acesso em: 20, fev. 2022.

[27] WMA Declaration of Geneva. World Medical Association. Disponível em: https://www.wma.net/policies-post/wma-declaration-of-geneva/. Acesso em: 20, fev. 2022.

[28] DECLARATION on Pseudoscience and Pseudotherapies. World Medical Association. 16, nov. 2021. Disponível em: https://www.wma.net/policies-post/wma-declaration-on-pseudoscience-and-pseudotherapies-in-the-field-of-health/. Acesso em: 20, fev. 2022.

[29] CUTAIT, R. A boa prática médica. Conselho Regional de Medicina de Pernambuco – CREMEPE (Folha de São Paulo), 20 de abril de 2009. Disponível em: https://www.cremepe.org.br/2009/04/20/a-boa-pratica-medica/. Acesso em: 20, fev. 2022.

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Christine Lopes

Christine Lopes é PhD em Filosofia por Birkbeck, University of London. Ela obteve seu Mestrado e Bacharelado em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ, Brasil). Tem lecionado em universidades na Inglaterra e no Brasil. Seus interesses são históricos e analíticos, e dizem respeito a tópicos em epistemologia, ética, metafísica, filosofias kantianas, mulheres na filosofia, teorias de gênero e filosofia judaica. Vive como filósofa independente na Inglaterra e é pesquisadora afiliada do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Pontifícia Universidade de São Paulo (PUC-SP, Brasil) e é uma das coordenadoras do grupo de pesquisa em pensamento judaico da Academia Judaica da Congregação Israelita de São Paulo (CIP). Ela é a fundadora do projeto Later German Philosophy (https://latergermanphilosophy.com).