Berlinale 2019: Goethe-Institut e Estado da Arte

Confira os destaques da cobertura da Berlinale 2019, uma parceria Goethe-Institut e Estado da Arte.

O Estado da Arte – Estadão começou o ano respirando cinema. Em uma parceria com o Goethe-Institut São Paulo, Camila Gonzatto e Willian Silveira estiveram na capital alemã trazendo todas as notícias e o que aconteceu de melhor durante a edição 2019 da Berlinale – Festival de Cinema de Berlim, um dos mais importantes festivais do calendário da sétima arte. Nesta edição, tivemos nada menos do que 12 filmes brasileiros em exibição, entre eles o longa Marighella, estreia de Wagner Moura como diretor. Confira os melhores momentos da cobertura e os nossos destaques.

> Faces do Brasil no Festival de Cinema de Berlim

Berlinale 2019 exibe 12 filmes brasileiros, que refletem a diversidade do país e põem foco em questões políticas e culturais.

Neste ano, os ursos da Berlinale resolveram mostrar a cara. Nos pôsteres espalhados por Berlim, as pessoas contratadas para se vestirem desses símbolos da cidade carregam nas mãos as máscaras que normalmente cobrem suas cabeças. Esse gesto emblemático de revelar identidades ocultas tende a se reproduzir na escolha da seleção que chega às telas, com produções que mostram faces variadas dos países de origem dos filmes.

> Personagens à margem

O curta-metragem Rise e o documentário em longa-metragem Estou me guardando para quando o carnaval chegar trazem às telas populações periféricas.

Concorrendo ao Urso de Ouro, o curta-metragem Rise, da dupla de artistas Bárbara Wagner e Benjamin de Burca, foi filmado em espaços subterrâneos da Comissão de Trânsito de Toronto (Canadá). Em túneis e longas escadas rolantes, artistas imigrantes de primeira e segunda geração trazem em suas músicas temas ligados à própria condição social. A arquitetura impessoal desses lugares de passagem, filmada de maneira geométrica, acaba por acentuar a sensação de deslocamento e não pertencimento. A dupla irá representar o Brasil na próxima Bienal de Veneza.

> Ocupação como resistência

Em tempos sombrios sob um governo de extrema direita no Brasil, Berlinale traz os documentários Chão e Espero a tua (re)volta, que se debruçam, respectivamente, sobre as ocupações de trabalhadores sem-terra e de estudantes secundaristas.

Longa de estreia de Camila Freitas, Chão acompanha o dia a dia da Ocupação de Trabalhadores Sem-terra Leonir Orbak numa usina de cana-de-açúcar, em Santa Helena, estado de Goiás. Com uma dívida de mais de 1 bilhão de reais com a União, a usina está em processo de falência. Após se estabelecerem no local, os agricultores, que lutam pela reforma agrária, transformam o uso da terra com a produção de alimentos orgânicos. Além da vida cotidiana, o filme revela a organização interna dentro do acampamento e o processo de tomada de decisões, além de mostrar a batalha jurídica em curso.

> Onde está o charme?

A seção do festival “Perspectivas do cinema alemão”, dedicada a novos talentos, foi aberta com um longa fraco, mas na sequência serão exibidas algumas obras promissoras.

Um vagabundo ávido por laços afetivos, um casal de lésbicas estressadas com o relacionamento, a filha de uma mãe feminista como garota de programa amadora – na verdade, todo o pacote de sempre no filme de abertura da seção Perspectivas, uma fofa vitrine especial destinada a implicações amorosas. A seção de novos talentos do Festival de Cinema de Berlim raramente traz grandes temas. Cineastas iniciantes costumam experimentar com aquilo que já conhecem, ou seja, relacionamentos arruinados ou milagrosamente felizes. Os diretores escrevem alguns diálogos ligeiros e parecem, com isso, engraçadinhos ou singulares, às vezes também propositalmente ingênuos. Mas, nessas alturas, onde está o charme usual? Há algumas cenas interessantes em Easy Love, a estreia de Tamer Jandali, no qual sete exemplares da Geração Y giram em torno de si mesmos em busca de amor – obviamente. Mas, no fim das contas, tudo isso não parece apenas terrivelmente artificial, como também entediante em sua falta de forma.

> Alegorias sobre um futuro possível

Brasil, 2027. Portas eletrônicas identificam o DNA das pessoas, seu estado civil e gravidez. Drive-thrus oferecem serviço religioso. O Carnaval foi substituído pela Festa do Amor Supremo, uma espécie de rave religiosa. Estado, Igreja e tecnologia são indissociáveis. Nesse universo criado por Gabriel Mascaro em Divino Amor, Joana, impecavelmente interpretada por Dira Paes, é uma funcionária de cartório, que tenta dissuadir casais em divórcio.

O sonho de Joana é engravidar. Danilo, seu marido, que trabalha com coroas de flores para velórios, faz o que pode para aumentar sua fertilidade. Eles concordam em quase tudo, menos sobre a beleza de flores azuis, que Danilo considera não naturais e se nega a usá-las em suas coroas. Tudo funciona bem para Joana, até que seu próprio casamento balança. No auge de sua crise, Joana tinge rosas de azul, um momento de fantasia, mas que também é símbolo da artificialidade de sua vida. “O filme é uma alegoria sobre um possível futuro e um possível presente do Brasil. Também quis pensar sobre o corpo e o controle biopolítico que a religião pode exercer”, diz Mascaro. Destaque do filme é o encontro entre religião e erotismo, presente na vida dos personagens.

> As vidas, os amores e as liberdades das mulheres

Em 2016, a Berlinale apresentou uma retrospectiva do cinema nacional do ano de 1966 – tanto da Alemanha Oriental quanto da Ocidental. Uma maravilha de mostra, mas praticamente um evento masculino. O ano de 2019 está agora sob o signo feminino. A virada, se não a ruptura, das cineastas tem muito a ver com o ano de 1968. Estão sendo exibidos 28 longas-metragens de diretoras das duas Alemanhas. Poucos títulos são tão conhecidos quanto a comédia musical Bandits (1997), de Katja von Garnier, ou o clássico Os anos de chumbo (1981), de Margarethe von Trotta, apresentados aqui evidentemente lado a lado. O preferido do público será possivelmente Zur Sache, Schätzchen (Vamos lá, amorzinho, 1968), de May Spils, conhecido por praticamente todo o país. A anárquica comédia romântica foi e continua sendo um destaque, mesmo que nesse filme seja um homem o responsável pelos melhores momentos.

> Progresso no vale dos desavisados

Contar a história da Alemanha Oriental por meio de um grupo de refugiados sírios reunidos em um “curso de integração”: é essa a estratégia narrativa escolhida por Florian Kunert em seu Fortschritt im Tal der Ahnungslosen (Progresso no Vale dos Desavisados). O título remete a uma região da Saxônia, ao leste de Dresden, que nos tempos da RDA mantinha a maior distância tanto da Alemanha Ocidental quanto de Berlim Ocidental. Ali não chegava qualquer sinal de transmissão de televisão ou rádio de mídias ocidentais.

As únicas informações recebidas eram aquelas filtradas pela censura do regime. “Porque de nada sabíamos, éramos mais felizes que os outros”, conta uma mulher. “O sistema de agora, mesmo que não pareça, é muito mais brutal. Quando caminho pelas ruas de Berlim ou Hamburgo, vejo muitos desabrigados e muito desespero. Isso não tinha na RDA”, confirma outro entrevistado.

> Selfie: a juventude na periferia de Nápoles

No dia 4 de setembro de 2014, Davide Bifolco, de Nápoles, foi morto aos 15 anos a tiros por um policial. Davide não tinha antecedentes criminais e não havia cometido nenhum delito. Ele estava na garupa de uma moto junto com outros dois adolescentes que ignoraram o pedido de uma força policial para parar, acarretando uma verdadeira perseguição nas ruas do bairro Rione Traiano. O tiro foi um equívoco, como afirmou sucessivamente o policial condenado por homicídio culposo, mas a dor que ficou para familiares, amigos e todos os que conheciam Davide é imensa. O acontecimento trágico levou Agostino Ferrente, um dos documentaristas italianos mais importantes, a convencer Alessandro e Pietro, dois amigos de Davide, a contar, na tela grande, sobre suas vidas em uma das áreas mais degradadas de Nápoles. Para não condicionar o cotidiano dos jovens e de seu entorno com sua presença, ele deu aos jovens um celular e um bastão de selfie, transformando os dois nos verdadeiros diretores do filme.

> Identidades e afetos na tela

Greta, primeiro longa-metragem do brasileiro Armando Praça, é um drama adaptado da peça cômica Greta Garbo, quem diria acabou no Irajá, de Fernando Melo (1973). No filme, Pedro, um enfermeiro de 70 anos, leva para casa um homem ferido, que está sob guarda policial, para abrir um leito de hospital para sua amiga trans Daniele, que tem doença renal crônica e está no final da vida. Em casa, os dois começam a estabelecer uma relação afetiva e de amizade. Pedro é interpretado de maneira brilhante por Marco Nanini. No universo do personagem, as relações são permeadas pelo cuidado e por uma solidão profunda. Na intimidade, ele gosta de ser chamado de Greta Garbo, sua musa inspiradora.

Coproduções

Duas coproduções brasileiras participam da mostra Panorama da Berlinale. Breve historia del planeta verde, do argentino Santiago Loza, narra a história de Tania, uma mulher trans, cuja avó acaba de morrer. Ela viaja ao interior com dois amigos. A jornada os leva à lembrança de rejeições sofridas no passado, trazendo uma reflexão sobre o estranhamento e a alteridade, o que acaba estreitando seus laços de amizade.

> Wagner Moura: “os cidadãos têm o direito de resistir”

Com mais de duas horas e meia, Marighella debruça-se sobre os últimos anos da vida do escritor, político e ativista Carlos Marighella, morto pela ditadura militar no Brasil. A ênfase do filme recai sobre a atuação do protagonista na Ação Nacional Libertadora (ANL) – um dos grupos de luta armada ativos contra o regime. O longa-metragem foi construído como uma obra ficcional de ação, com câmera próxima aos personagens, muitas vezes na mão, planos rápidos e montagem ágil. “Não quero que o filme soe como algo do passado. Quero que as pessoas o sintam como algo que está acontecendo agora”, diz o diretor. Em uma mesa-redonda com jornalistas de vários países do mundo, Wagner Moura fala sobre Marighella.

Como você chegou ao tema deste que é seu primeiro trabalho como diretor?

Wagner Moura – A biografia de Marighella, de Mário Magalhães, tinha acabador de sair. Sempre fui fascinado não apenas pelo próprio Marighella, mas por histórias de resistência no Brasil: Malês, Canudos, demonstrações populares contra o Estado, contra ditaduras e regimes antidemocráticos. Mas me interessavam principalmente as resistências em torno da ditadura a partir de 1964, porque, em termos de tempo, são muito próximas a mim. Nasci em 1976. Minha geração, no entanto, é muito diferente daquela que lutou contra o regime. Cresci numa geração bem alienada. Essa geração que está indo para as ruas no Brasil agora é muito mais próxima da geração de 1964 do que a minha.

Quando começou esse projeto, você já se sabia que Jair Bolsonaro seria presidente do Brasil?

Wagner Moura – Não. Começamos em 2012 e filmamos em 2017 durante o governo Temer. Naquele momento, ninguém poderia acreditar que Bolsonaro se tornaria presidente do Brasil. Não quero que esse filme se torne uma resposta a um governo específico. O filme não é uma resposta a Bolsonaro, mas é, provavelmente, um dos primeiros produtos culturais do Brasil a se colocar abertamente contra o que Bolsonaro representa. Bolsonaro gravou um vídeo contra o filme, mesmo antes de ser presidente, dizendo que era um absurdo fazer um filme sobre esse “terrorista”. Mas o filme precisa ser maior que isso.

> Seguranças de clubes berlinenses em foco

Um deles é Frank Künster, que se mudou para a Alemanha Ocidental no fim dos anos 1980. Ele trabalhou durante muitos anos no King Size Bar e se autointitula “um cuidador excessivo”. O segurança de porta de boate acredita que sua principal tarefa é acompanhar pessoas embriagadas. Seu colega Smiley Baldwin, até a queda do Muro, vigiava como policial militar norte-americano a fronteira para Berlim Oriental. Hoje em dia, ele dirige uma empresa de segurança e trabalha pessoalmente como leão de chácara em casas noturnas. Baldwin compara sua tarefa de selecionar frequentadores na porta dos clubes, deixando-os entrar ou não, com a pintura de um quadro a cada noite. O terceiro é Sven Marquardt: o impiedoso segurança de 57 anos da porta do lendário clube tecno Berghain. Marquardt nasceu na então Berlim Oriental. Na época da queda do Muro, ele era um jovem punk e fotógrafo.

> Filmes brasileiros ganham prêmios em Berlim

Rise, curta-metragem da dupla de artistas Bárbara Wagner e Benjamin de Burca, recebeu o prêmio Audi Short Film Award. O filme foi gravado em espaços subterrâneos da Comissão de Trânsito de Toronto (Canadá), com artistas e poetas imigrantes..

O documentário Espero sua (re)volta, dirigido por Eliza Capai e exibido na Mostra Generation 14plus, recebeu os prêmios da Anistia Internacional e o Peace Film Prize. O filme aborda, através da voz de três jovens protagonistas, as ações do movimento estudantil de 2013 a 2018, principalmente as ocupações de escolas por estudantes secundaristas em São Paulo. Construindo um mosaico de imagens de arquivo e outras gravadas para o próprio filme, são discutidos temas como a violência policial contra adolescentes, a falta de apoio da população, bem como o racismo e a crescente diferença de classes no Brasil.

> Despedida, controvérsias e alguns filmes dignos de ursos

No fim, Dieter Kosslick não conseguiu segurar as lágrimas: os convidados da noite de gala para a entrega dos prêmios em Berlim aplaudiram durante minutos o diretor que se despede do cargo. Ele talvez tenha desejado uma competição com mais estrelas esse ano: embora tenha havido a presença de nomes conhecidos do cinema internacional como Christian Bale, Diane Kruger e Catherine Deneuve, eles não estavam concorrendo a Ursos. Fora isso, foi um festival típico do “estilo Kosslick” dos últimos 18 anos: com um número avassalador de 400 filmes, encenações por parte dos donos da casa e fortes controvérsias.

Decisões Inteligentes do Júri

Um total de 16 filmes, de diversos viezes estéticos e de conteúdo, concorreu nesta 69ª Berlinale aos Ursos de Ouro e Prata: do drama de amor lésbico, passando por estudos de retratos e por uma saga familiar épica até um filme de terror. Do ponto de vista de qualidade, acabou sendo, no fim, consenso ter sido um ano com filmes medianos, no qual o júri, sob a coordenação de Juliette Binoche, soube tomar decisões acertadas.

O prêmio principal, ou seja, o Urso de Ouro, foi para Synonymes, de Nadav Lapid. Em ritmo nervoso, essa coprodução franco-israelense narra a tentativa radical do jovem israelense Yoav, em Paris, de deixar seu passado para trás. A história gira em torno de desenraizamento e busca de sentido, colocando questões centrais a respeito de definição de identidades em um mundo marcado pela migração e por mudanças.

* Leia os artigos na íntegra e saiba mais sobre a Berlinale acessando o Berlinale Blogger do Goethe-Institut.
A cobertura da Berlinale 2019 é uma parceria entre o Goethe-Institut e o Estado da Arte.

COMPARTILHE: