Religião

Curando corpos, salvando almas: a peste e a Igreja

por Rodrigo Coppe

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As instituições religiosas foram afetadas diretamente pela pandemia da Covid-19. A magnitude desse impacto só pode ser comparada com aquele causado pela gripe espanhola no início do século 20, além de evocar a memória da Peste Negra que arrasou a Europa há setecentos anos. Igrejas, mesquitas, sinagogas e outros centros religiosos foram fechados em diferentes partes do planeta. Milhões de pessoas confinadas sem acesso aos cultos e serviços religiosos, a não ser remotamente. As religiões já vinham sendo impactadas por mudanças nessa esfera desde o surgimento da internet, que dá um passo para além do televangelismo e aprofunda as experiências religiosas “a distância”, levantando uma série de questões aos seus líderes.

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Médico à época da Peste (Wikimedia Commons)

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Analisando o fato religioso por uma perspectiva pragmática, sabemos que as religiões desempenham um papel social destacado no enfrentamento das vicissitudes da vida. No campo psíquico, colabora fornecendo-nos modelos a serem seguidos, que geralmente são experimentados no sofrimento e o sentido por ele revelado. Elas nos ajudam a encarar nossas dores, a situá-las num arco existencial mais amplo e profundo. Os mitos são verdadeiros porque funcionam. Desempenham seus papéis desde a pré-história humana e continuam agindo em nosso favor. Revivê-los nos faz experimentar a força dos seus significados, que espelham por sua vez vidas exemplares e feitos fabulosos. Em linguagem moderna, podemos afirmar que há aí um fator terapêutico. Não desejo encerrar o fato religioso e reduzir sua compreensão apenas a este elemento. São várias as teorias, de áreas diferentes das Humanidades, que buscam entendê-lo em suas manifestações diversas. Apenas na área da Psicologia podemos citar, entre outros, William James, Viktor Frankl, Gordon Allport, Otto Rank, Carl G. Jung e Sigmund Freud.

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Viktor Frankl

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O suporte psíquico oferecido pelas religiões nos períodos atravessados por epidemias foi acompanhado pela atuação direta de seus representantes no cuidado com os doentes. No caso ocidental, a Igreja Católica foi um ator social recorrente nos episódios em que as pestes surgiam e dizimavam as populações. Estudiosos que se dedicam ao tema discutem como a instituição se envolveu na história da formação dos hospitais como se conhecem hoje. Em Mending bodies, saving souls: a history of hospitals (Oxford University Press), Guenter B. Risse afirma que no século IV a Igreja começou a promover a criação em larga escala de hospitais para receber doentes, órfãos e pobres, além de hospedar estrangeiros, objetivo principal desses espaços naquele período. O espírito caritativo universalista, novidade do cristianismo, era o elemento fundamental que embalava a criação destes lugares de recolhimento. O autor lembra do papel desempenhado pelos monastérios nascentes entre os séculos 5º e 10º, que se tornaram centros de estudo e transmissão de textos médicos antigos, além das ordens militares estabelecidas no período das Cruzadas que administravam hospitais no continente europeu, com destaque para os Cavalieri di San Giovanni.

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Guenter B. Risse

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O turning point dessa atuação ocorreu com a peste bubônica do século 14 que, segundo estimativas, matou 30% a 60 % da população europeia. Os padres caminhavam por todos os lados oferecendo esperança e conforto aos doentes. Arriscavam-se e morriam pelo Cristo que encontravam nos acamados. Lois N. Magner afirma, em A history of medicine (Taylor & Francis), que o efeito da praga na Igreja foi profundo. A mortalidade entre os clérigos teria alcançado 50% entre 1348 e 1349. Em algumas áreas, monastérios, igrejas e vilas inteiras foram abandonadas. O que teria levado à ordenação de homens com menos qualificações e a posterior desmoralização do clero.

De acordo com John Kelly, em Great mortality. An intimate history of the Black Death, the most devasting plague of all time, de maneira geral, a taxa de mortalidade dos padres com a Peste Negra foi entre 42 a 45% mais alta do que as taxas da população em geral que é tida pelos estudiosos entorno de 30%. Visitar os doentes a fim de consolá-los frente ao desafio da doença e da morte os tornavam totalmente vulneráveis. Com o crescimento vertiginoso da doença e poucos padres, o papa Clemente 6º (1291-1352) declarou que os moribundos obteriam a remissão de seus pecados mesmo se não conseguissem confessá-los a um sacerdote. Digno de nota é a publicação pelo papa, em 1348, de duas bulas instruindo os cristãos a não responsabilizarem os judeus pela praga que assolava a Europa. Clemente 6º afirma que aqueles que os culpavam teriam sido “seduzidos por esse mentiroso, o diabo”. O gesto papal não impediu porém os massacres, como o de Strasbourg em 1349, que matou centenas de judeus.

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O Pogrom de Strasbourg por Emile Schweitzer, 1894

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Na epidemia que devastou Milão no século 16, São Carlos Borromeu (1538-1584) incentivava os padres a se envolverem diretamente com os doentes a fim de colaborarem com a salvação de suas almas. O santo fazia uma relação direta entre estar com os necessitados, colocando-se em risco ao entrar em contato direto com os doentes, e o martírio cristão. Sua ideia ecoava o ensinamento de Santo Tomás de Aquino, que afirmava ser necessário expor seus corpos aos perigos em vistas de uma bem maior, a salvação.

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“Virgem Maria em apoio a Carlos Borromeu”, Johann Michael Rottmayr, 1714

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No século seguinte, a epidemia que deixou por volta de 1 milhão de mortos na Itália levou a uma movimentação mais contundente da Igreja em vistas de contê-la. Com a larga experiência pregressa, o papa Urbano 8º (1568-1644) criou a Congregação Sanitária na Cúria Romana em 1630 com intuito de prevenir e limitar o contágio de possíveis doenças, que teve papel de destaque na epidemia de 1659 e que havia tocado Roma de maneira mais violenta. Combinando sua autoridade religiosa e política, o papa Alexandre 7º (1599-1667) colocou em marcha uma complexa burocracia, o que levou à conhecida quarentena da região de Trastevere. Além disso, de acordo com Guenter B. Risse, foram canceladas procissões e outras cerimônias religiosas e solicitado aos fiéis que rezassem pelos doentes e mortos na privacidade de suas casas. Nos dias em que a pandemia ainda se alastrava, às 2 horas da manhã tocavam os sinos das principais igrejas de Roma, convocando os fiéis às suas sessões de oração com a promessa de uma indulgência para aqueles que rezavam três Pais-Nossos e três Ave-Marias. Mesmo fora dos estados papais, buscou-se conter a expansão da doença, oferecendo igrejas e conventos como instalações improvisadas de isolamento e envio de padres para confortarem com seus sacramentos os doentes.

A pandemia de gripe espanhola, séculos depois, também nos rememora algumas histórias sobre a atuação da Igreja que precisou se organizar em vistas de ajudar no estancamento do contágio. Nos EUA, uma história comovente sobre a atuação de freiras naquele período veio à tona em março lembrada por Kiley Bense e publicada no The New York Times. Ao realizar uma pesquisa na American Catholic Historical Society of Philadelphia, a escritora encontrou um documento com o título “Work of the Sisters During the Epidemic of Influenza, October 1918”. Avisados pela Cruz Vermelha que a Filadélfia não tinha quantidade suficiente de enfermeiros para tratar os infectados pela influenza, em rápido crescimento, o arcebispo da cidade apelou para que as freiras da diocese deixassem os conventos e se juntassem às equipes médicas. Sem qualquer experiência na área e pouco contato com o mundo externo, 2.000 irmãs responderam à solicitação do arcebispo e se arriscaram no combate à doença. Responsabilizaram-se por uma região da cidade, cuidando de imigrantes provenientes da Itália, Ucrânia, Polônia e China. Segundo Bense, no final da epidemia, 23 irmãs haviam morrido da gripe e o reconhecimento dos trabalhos prestados chegou pela voz do prefeito da cidade: “Nunca vi uma demonstração maior de caridade ou auto-sacrifício real”, disse ele, “independentemente do credo ou da cor das vítimas, para onde as freiras eram enviadas”.

A história das epidemias no Ocidente entrelaça-se com a história da Igreja Católica e com a de centenas de homens e mulheres que se doaram com o objetivo de levar cura e conforto para os que sofriam. Além de nos lembrar da precariedade que atravessa a experiência humana sem distinção, ela nos lança novamente a questão sobre o papel das religiões no espaço público contemporâneo.

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“A Extrema Unção”, Poussin, 1639

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Rodrigo Coppe Caldeira

Rodrigo Coppe Caldeira é Historiador e Professor do Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. É líder do Laboratório de Estudos em Religião, Modernidade e Tradição (LeRMOT) da PUC Minas. (As opiniões do autor são de cunho pessoal e não refletem necessariamente a posição oficial da instituição). (Twitter: @rodrigocoppe)