Filosofia

Entendendo o equilíbrio reflexivo

por Denis Coitinho

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Passados cinquenta anos da publicação da obra mais conhecida de John Rawls, a saber, A Theory of Justice (1971), podemos constatar que o seu impacto foi arrasador na área de filosofia moral e política, não apenas pela defesa de um modelo contratualista para justificar princípios morais — no caso, princípios de justiça que têm por conteúdo a igual liberdade, a igualdade equitativa de oportunidades e o bem-comum, o que caracteriza um liberalismo igualitário ou social —, mas também em razão do método ou procedimento para justificar as próprias concepções morais dos agentes. Este é o método do equilíbrio reflexivo (ER). E em que pese a controvérsia que o método suscitou, o ER se tornou o procedimento por excelência na ética normativa e aplicada, bem como na filosofia social e política, exercendo, também, alguma influência até na área do direito. E isto porque propôs deixar de lado as questões controversas sobre o significado e verdade dos conceitos e juízos morais, bem como sobre a existência ou não de propriedades éticas, identificando a objetividade moral de forma inferencial. O ponto central do método é defender que a justificação moral não dependerá de um fundamento último, mas da coerência entre as crenças morais e não morais que são relevantes para um certo tema, sendo o ponto final de um processo deliberativo em que refletimos sobre e revisamos nossas crenças. Como afirmado por Scanlon em “Rawls on Justification” (2003, p. 149), ele é o único método defensável em questões morais, sendo as outras aparentes alternativas puras ilusões.

Em que pese sua forte influência na ética, este método surgiu inicialmente com Nelson Goodman, em seu clássico texto Fact, Fiction, and Forecast, publicado em 1955, com a abordagem da justificação das regras de lógica indutiva ou dedutiva. A ideia central defendida é que podemos justificar as regras inferenciais em lógica as colocando em equilíbrio com o que julgamos serem inferências aceitáveis em um conjunto significativo de casos. A ideia era se contrapor ao fundacionismo, evitando a justificação dos princípios em crenças autojustificadas.

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Nelson Goodman

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Este método de justificação holístico e antifundacionista foi adotado por Rawls na ética normativa, aplicando-o sobre as crenças morais, ou melhor, sob um domínio específico da moralidade, a saber, o da justiça social. Assim, iniciamos com os juízos sobre a justiça que se tem grande confiança e segurança (juízos ponderados) e um conjunto de princípios que explicam estes juízos. Por exemplo, as convicções de que a intolerância religiosa e a discriminação racial são injustas são juízos proferidos sem distorções, considerando nossa realidade social democrática, é claro e, assim, os princípios de justiça de igual liberdade, igualdade equitativa de oportunidades e o princípio da diferença explicam estas convicções ou, dito de outra forma, eles descrevem nosso senso de justiça (1971, pp. 46-47). Posteriormente, testamos estes princípios em diferentes casos, de forma a verificar se eles geram outros juízos que estamos preparados para endossar e, se for o caso, revisamos os princípios ou os juízos quando não obtivermos consistência. Por exemplo, julgar que a taxação progressiva fere o direito de propriedade parece incoerente com o princípio liberal da propriedade privada e com o princípio da decisão democrática, princípios que são aceitos por serem básicos em uma democracia liberal, o que exigirá a revisão desta crença. Todo este processo está aberto à revisão, sendo um ideal que continua indefinidamente, o que releva que a atitude revisionista é sua característica central, de forma que um agente moral pode ser visto como alguém que deve sempre estar disposto a revisar suas crenças e considerar seriamente o ponto de vista das outras pessoas.

Sobre a relevância do método, é importante fazer referência ao texto “Toward Fin de siecle Ethics: Some Trends” (1992, pp. 121-124). Em sua reconstrução do percurso histórico da metaética no século XX, Darwall, Gibard e Railton, apontam que o ER, assim como proposto por Rawls, teve o mérito de ter superado a investigação ética que estava reduzida apenas a uma análise lógica da linguagem moral, como se pode observar nas investigações sobre o significado e verdade dos conceitos e juízos morais ou sobre a existência ou não das propriedades morais, tais como as conduzidas por Moore, Schilick, Hare, Stevenson, entre outros, o que praticamente paralisou a discussão sobre questões morais e políticas substanciais em razão de uma forte postura anticognitivista, tomando os juízos morais apenas como expressões de sentimentos ou como forma de aprovação subjetiva, não os considerando como objetivos. Quando Rawls propôs testar os princípios morais (de justiça) com base na coerência com nossos juízos ponderados e com as teorias em equilíbrio reflexivo ele oportunizou uma alternativa em epistemologia moral, reintroduzindo a ética normativa em um domínio cognitivo, o que caracterizou, para os autores em tela, a grande expansão  da metaética no final do século vinte, pois oportunizou investigações posteriores muito frutíferas sobre a normatividade, razões, escolha racional, bem como sobre justificação prática.

Entretanto, mesmo com a grande aceitação do ER, principalmente na filosofia prática, ainda existem muitas críticas que questionam a validade do método. Os principais problemas identificados são de conservadorismo e relativismo. Uma acusação já bem conhecida desde a publicação de A Theory of Justice, é que a pretensão coerentista do método seria problemática porque tomaria como base as intuições morais, isto é, as convicções ponderadas, e isto poderia implicar em conservadorismo, de forma que os juízos morais apenas refletiriam os próprios preconceitos dos agentes. Este é o problema sobre a credibilidade inicial das crenças. Outra preocupação é que o antifundacionismo do método poderia implicar em relativismo, uma vez que ele é dependente da revisibilidade das crenças, não contando com crenças básicas, autojustificadas e, assim, o método não alcançaria a objetividade pretendida. Apenas obter coerência entre diversas crenças não seria suficiente para se chegar ao conhecimento moral.

A despeito das críticas que foram e ainda são endereçadas ao ER, podemos facilmente perceber a grande influência que este método exerceu e ainda exerce. Gilbert Harman, por exemplo, faz esta constatação em “Three trends in moral and political philosophy” (2003), ao identificar que o modelo holístico e antifundacionista do ER consta como uma das três principais tendências em filosofia moral e política dos últimos cinquenta anos, usando a estratégia de harmonizar os juízos particulares e princípios morais entre si na tentativa clara de alcançar um ajuste mútuo. O ponto central desta tendência foi, ao invés de reivindicar um tipo de intuicionismo ou de naturalismo, defender que podemos encontrar uma justificação objetiva das crenças através da correção de nossas intuições ponderadas sobre certos casos particulares pela coerência com certos princípios gerais e vice-versa. A ideia básica é que progredimos na investigação realizando um ajuste mútuo em nossas próprias concepções normativas. E os exemplos desta tendência seriam para ele, além da própria teoria da justiça de Rawls, a concepção de direito como integridade de Ronald Dworkin, a ética das virtudes naturalística de John McDowell, além de diversas éticas das virtudes, tal como as propostas por Stuart Hampshire e Rosalinda Hurthouse.

Como bem apontado por Harman, a concepção de direito como integridade defendida por Dworkin é um importante exemplo da influência antifundacionista do ER. E isto porque Dworkin defende princípios morais e políticos como fornecendo interpretações de nossas práticas políticas e jurídicas. Por exemplo, ele diz que certas maneiras de entender a integridade e santidade da vida humana se harmonizam com nossas práticas atuais e fazem com que as práticas sejam boas práticas de acordo com nossa compreensão. Tal como Rawls, Dworkin inicia como as nossas visões e práticas atuais sobre um domínio específico, neste caso o direito, ao invés de definições ou outros princípios autoeviedentes. Importante ressaltar que o projeto de Dworkin, como crítico tanto do positivismo como do jusnaturalismo, tem por base o interpretativismo, cujos elementos centrais são fornecidos pelos conceitos de integridade e coerência. Em Law’s Empire (1986, pp. vii-x), por exemplo, ele defende a tese de que o raciocínio jurídico é um exercício de interpretação construtiva, de forma que (i) o Direito constitui a melhor justificativa do conjunto de nossas práticas jurídicas e que (ii) é a narrativa que faz essas práticas as melhores possíveis. Assim, decisões jurídicas interpretam a prática jurídica contemporânea como uma política em processo de desenvolvimento, identificando os valores de integridade, continuidade e coerência. E, em Justice in Robes (2006, p. 259), afirma que a objetividade não depende de pressupostos metafísicos realistas, de forma que a verdade objetiva de uma proposição dependeria de um fundamento em uma realidade que iria além das próprias razões substantivas. Para ele, as razões substantivas, tomadas em conjunto e mutuamente confirmadas, são suficientes para assegurar a objetividade.

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Ronald Dworkin

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A respeito da ética normativa, podemos mencionar a teoria das virtudes defendida por Stuart Hampshire que se valeu claramente do modelo holístico do ER.  Em Two Theories of Morality (1977, pp. 1-95), ele compara duas concepções radicalmente distintas de moralidade, a saber, as teorias de Aristóteles e Spinoza. E o ponto central da análise é a investigação sobre a relação entre intuições e teorias morais a partir da sua compreensão das características da ética aristotélica. Assim, para ele, a ética é análoga às teorias que tratam das práticas resultantes de um processo de habituação, como os jogos. Também, que uma concepção de um melhor tipo de vida e uma lista de virtudes necessárias para viver tal vida são elementos essenciais de uma teoria moral e que os valores são irredutivelmente plurais. E o mais importante, que o raciocínio prático, incluindo o raciocínio moral, envolve o equilíbrio e a reconciliação das considerações diversas e, muitas vezes, divergentes. A ideia defendida por ele é que o papel de uma teoria moral é, então, articular a estrutura das diversas crenças morais que os agentes têm boas razões para defender. Dito de outro modo, a teoria deve auxiliar o agente a descobrir as crenças que são equivocadas em razão de não serem consistentes com a própria estrutura das crenças, bem como a teoria e as intuições devem ser confrontadas e harmonizadas para se obter um equilíbrio reflexivo.

E além da ética normativa, o ER parece exercer uma influência ainda maior na ética aplicada, em especial na bioética. A utilização deste método em questões de bioética, como as que tratam da correção ou incorreção do aborto, eutanásia, medicina reprodutiva e melhoramento humano, apenas para exemplificar, tem tido grande sucesso em razão de uma grande expectativa que ele possa mostrar um ponto comum normativo que nos levaria ao consenso, em que pese a grande controvérsia envolvida nestas questões. Por exemplo, uma das teorias mais influentes na bioética, a saber, o principialismo de Beauchamp e Childress, expressamente diz fazer uso desta metodologia ao buscar um ajuste apropriado entre as crenças em um nível maior de generalidade. Em Principles of Biomedical Ethics (2009, p. 381-387), é afirmado que o objetivo do ER é  produzir um equilíbrio entre todas as crenças (morais, empíricas e teóricas), fazendo um ajuste constante e buscando a coerência entre elas, de forma que as intuições morais devem ser coerentes com os princípios, como os de autonomia, não-maleficência, beneficência e justiça e com as virtudes de cuidado, compaixão, discernimento, confiabilidade e integridade etc., e com as teorias morais, como a deontológica, utilitarista, ética do cuidado, entre outras. A ideia geral é que nem dedutivistas e nem indutivistas estariam corretos, uma vez que não haveria uma ordem fixa de influência ou dependência do geral para o particular e vice-versa. Por isso, os autores argumentam que para a bioética poder avançar, se faz necessário um modelo integrador como o do ER, de forma a estabelecer coerência entre as intuições, os princípios e as teorias morais.

Um último comentário sobre a influência do ER também na ética aplicada. Em recente artigo, Savulescu et al. — “Collective Reflective Equilibrium in Practice and Controversial Novel Technologies” (2021) — defendeu o método do ER, de forma a usá-lo para acomodar a preferência pública sobre como os veículos autônomos devem decidir em situações de emergência, em tensionamento com os princípios de certas teorias éticas, como o utilitarismo, deontologia e contratualismo. Ele chamou este método de equilíbrio reflexivo coletivo na prática (Collective Reflective Equilibrium in Practice – CREP). Em CREP, os dados coletados e tabulados sobre as preferências públicas ao redor do mundo, com a utilização da plataforma on line Moral Machine, devem servir apenas como input em um processo deliberativo público que busca pela coerência entre as atitudes, comportamentos e princípios éticos, e não como a última palavra sobre a questão, uma vez que as intuições morais podem expressar preconceitos, vieses e interesses pessoais e/ou corporativos. A ideia é ver se os juízos ponderados sobrevivem se confrontados aos princípios éticos do utilitarismo, kantismo e contratualismo. E, em caso de inconsistência, devemos revisar nossas crenças iniciais que temos grande confiança para alcançar uma situação de reflexão adequada. De posse disto, eles propõem uma política pública que teria por critério normativo salvar preferencialmente os seres humanos e salvar o maior número de pessoas. Por sua vez, a preferência em salvar os jovens poderia ser objeto de posterior deliberação, pois demandaria pesquisa empírica adicional e a preferência pelas mulheres seria descartada por ser rejeitada pelas três teorias éticas, o que significaria realizar uma revisão nas convicções morais (2021, p. 1-12).

Assim, é possível pensar que chegar a um estado de uma reflexão adequada, em que nossas convicções morais ponderadas estão em coerência com certos princípios éticos reconhecidos pela tradição e com certas crenças científicas aceitas como válidas pela comunidade é equivalente a ter conhecimento moral, compreendendo o conhecimento neste domínio em termos de graus e não em termos de tudo ou nada, sendo algo como chegar a uma crença justificada em equilíbrio reflexivo. É claro que seria mais seguro poder contar com uma teoria ética que nos mostrasse de forma absoluta o certo/errado, o bem/mal, o justo/injusto, de maneira que contaríamos com verdades morais objetivas que seriam evidências incontestáveis para nossas decisões e atitudes. Mas, como isto não está disponível para nós até o momento, se engajar em uma investigação reflexiva e holística sobre um certo domínio da moralidade parece ser tudo o que nos resta.

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John Rawls

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Denis Coitinho

Denis Coitinho é professor do PPG em Filosofia da Unisinos e Pesquisador do CNPq. Doutor em Filosofia pela PUCRS, com pós-doutorado na London School of Economics e na Universidade de Harvard. É autor de Justiça e Coerência e Contrato & Virtudes, ambos por Edições Loyola.