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Sobre a natureza da moral e do direito

por Denis Coitinho

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A maior parte dos textos que tratam da relação entre moral e direito tomam por dado o que seria a moralidade e se detêm quase que exclusivamente na descrição do fenômeno jurídico e na definição do termo “direito”, procurando apontar para a sua complexidade e especificidade. Penso em autores como Bentham, Austin, Kelsen, Alexy e Finnis, por exemplo. Uma das exceções é H. L. A. Hart que, em The Concept of Law (3ed. Oxford University Press, 2012), analisa detalhadamente o fenômeno social da moral, dedicando dois capítulos desta obra para tal fim. Em que pese a argúcia e cogência da análise, argumentarei que a concepção apresentada não é condizente com a complexidade do fenômeno moral.

Para Hart, direito e moral são fenômenos sociais distintos, mas relacionados, uma vez que são sistemas de regras que estabelecem obrigações aos agentes, sendo dois sistemas normativos distintos, mas que possuem uma conexão contingente, isto é, histórica. Para Hart, o direito é um sistema formado por regras sociais, constituído por regras primárias e regras secundárias e não pode ser reduzido à ordens coercitivas do soberano. As regras primárias de obrigação exigem que se faça ou se abstenha de fazer certas ações, impondo deveres sobre a conduta, como, por exemplo, as regras que restringem o uso da violência e condenam o homicídio. Já as regras secundárias seriam as de reconhecimento, de alteração e julgamento, que assegurariam que as pessoas possam criar novas regras primárias, extinguir ou mesmo modificar as regras antigas. As regras de reconhecimento, por exemplo, possibilitam o reconhecimento da fonte de autoridade das regras primárias e são legisladas por um órgão específico. Um exemplo seria uma regra constitucional que reconhece o parlamento como fonte legítima para a criação do código penal (HART, 2012, p. 79-99).

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H.L.A. Hart (Steve Pyke/Getty Images)

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No capítulo oitavo de The Concept of Law (“Justice and Morality”), Hart diz que há uma linha tênue que separa esses dois sistemas de regras, havendo um princípio moral ligado ao direito que é a justiça. A justiça, assim, é um segmento da moral que se ocupa primariamente não com a conduta individual, mas com os modos como são tratadas as classes de indivíduos e, por isso, ela tem especial relevância para o direito e para outras instituições públicas. Em seus termos, a justiça “[…] é a mais jurídica das virtudes e a mais pública delas” (HART, 2012, p. 167). A ideia geral é que o critério de justiça, entendido como equidade, exigiria que a aplicação das regras gerais aos casos particulares seja imparcial, que se trate similarmente os casos iguais, bem como que se use uma mesma regra geral em casos similares. Além de reconhecer que os padrões morais de equidade são exigidos na condução do processo judicial, Hart, no nono capítulo (“Laws and Morals”), também reconhece os cinco truísmos do direito natural, a legitimidade da autoridade, as virtudes do magistrado, tais como imparcialidade, neutralidade e igual consideração de interesses e os oito princípios de legalidade (moralidade interna do direito) como conectados ao direito, mas que não seriam capazes de garantir um conteúdo justo do sistema jurídico como um todo, uma vez que este sistema seria compatível com alguma iniquidade (HART, 2012, p. 193-212).

Mas, para além deste reconhecimento da conexão não necessária entre os dois sistemas normativos em tela, Hart aponta para certas diferenças específicas das regras morais em relação tanto às regras jurídicas como a outros tipos de regras sociais. Esta especificidade seria compreendida pela (i) importância de todas as regras morais, (ii) imunidade à alteração deliberada, (iii) caráter voluntário dos delitos morais e (iv) forma de pressão “interna”. Para ele, as regras morais são tomadas como de grande importância a manter, enquanto as regras de etiqueta e algumas regras jurídicas são facilmente alteradas. Também, que as regras morais não poderiam ser alteradas por ato legislativo, o que facilmente ocorre com as regras jurídicas. Outra distinção é que a responsabilidade moral estaria relacionada à voluntariedade do ato (intencionalidade), enquanto a responsabilidade legal estaria ligada ao dano cometido aos outros. Por fim, que seguir uma regra moral não poderia ser apenas por medo da punição, sendo que a forma de pressão moral consistiria em apelar ao respeito às regras como coisas importantes em si mesmas (HART, 2012, p. 173-180).

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H.L.A. Hart (Steve Pyke/Getty Images)

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No restante do ensaio procurarei mostrar que essa compreensão da moralidade é limitada.

A primeira especificidade da moral em relação ao direito é a importância da manutenção de qualquer regra moral. O exemplo dado por ele é a regra que interdita a homossexualidade, uma vez que a parte mais proeminente da moralidade de qualquer sociedade consiste nas regras sobre o comportamento sexual, em razão das pessoas atribuírem grande importância a este tema. Isso seria diferente no caso de muitas regras legais e mesmo regras de etiqueta que poderiam ser facilmente modificadas sem nenhuma preocupação das pessoas com sua manutenção, como no caso da atual regra de etiqueta que exige distanciamento social e uso de máscara para combater a Covid-19. O problema desta interpretação é que ela não leva em conta o fenômeno do progresso moral, de forma a reconhecer que muitos comportamentos que antes recaiam sobre uma avaliação moral perderam essa caraterística normativa, isto é, que antes eram considerados moralmente errados e agora são vistos como moralmente permissíveis, tais como a masturbação, o sexo antes do casamento, a promiscuidade e até a homossexualidade, enquanto outros comportamentos que eram neutros do ponto de vista moral, passaram a ser censurados, como o duelo, a mutilação genital feminina, punições extremamente cruéis, tortura e até mesmo o sexo não consensual com a esposa.

Penso que o fenômeno do progresso moral nos auxilia a ver a moralidade de uma forma mais adequada, uma vez que ele revela seus elementos naturais e mesmo sociais e a aproxima mais do direito, de forma a ressaltar suas características tanto evolutiva como progressiva. A partir deste contexto interpretativo, a moralidade humana pode ser tomada como uma habilidade para regular nossas interações com os outros de acordo com certas regras de obrigação, como uma capacidade de ter sentimentos morais, tais como empatia, senso de justiça, ressentimento, indignação ou mesmo nojo, sendo, também, uma habilidade para aplicar estas regras de obrigação a novas situações que requerem um tipo específico de julgamento e raciocínio, como a imparcialidade e a generalidade, por exemplo, o que parece nos apontar para a plasticidade da mente moral humana. E isto nos possibilita compreender porque certas regras morais, sobretudo as ligadas ao campo da sexualidade humana, tal como a que interditava a homossexualidade, caíram em desuso e perderam a importância em sua manutenção.

A segunda característica específica da moral para Hart é a sua imunidade à alteração por ato legislativo. Enquanto é intrínseco ao direito que novas regras jurídicas sejam introduzidas e as anteriores revogadas ou alteradas por ato legislativo intencional, as regras ou princípios morais “não podem ser criadas, alteradas ou eliminadas deste modo” (HART, 2012, p.175). A ideia geral de Hart é que há um claro contraste nesses dois sistemas de regras sociais: enquanto o direito é realizado por um fiat humano através de atos legislativos, a moral é algo que “existe” para ser reconhecida, sendo estabelecida por um processo lento e involuntário. E, assim, não seria admissível que um ato legislativo determinasse a moralidade ou a imoralidade de qualquer ação, como uma lei que dissesse que “A partir de amanhã já não é imoral fazer isto ou aquilo” ou “Em 1º de janeiro último tornou-se imoral fazer isto ou aquilo” (HART, 2012, p. 175-176).

Embora eu reconheça como correta esta distinção em termos gerais, é importante ressaltar, como o próprio Hart faz, que a aprovação ou revogação de certas leis podem estar entre as causas de alteração ou decadência de qualquer padrão moral. Por exemplo, Hart menciona que os atos legislativos podem estabelecer padrões de honestidade e humanidade que alterarão a moral vigente, bem como a repressão jurídica de certas práticas consideradas moralmente obrigatórias pode levar as desparecimento de seu estatuto moral (HART, 2012, p. 176-177). Veja-se que no passado, se tomava a escravidão como justa, assim como não se problematizava moralmente a discriminação às mulheres. Como mudou o juízo moral que considerava a escravidão como justa e o sexismo como correto para um juízo moral atual que considera tanto a escravidão, o racismo e o sexismo como injustos e incorretos? No caso da escravidão, houve um decreto legislativo que aboliu esta instituição injusta, que parece que foi a base para a mudança posterior do juízo moral de grande parte da população. No caso do sexismo, também houve mudanças legislativas que permitiram o voto das mulheres, a participação política e mesmo a igualdade no trabalho. E, similarmente, parece que estas reformas legislativas foram importantes para a mudança da mentalidade de grande parte da população atual que julga como errado toda forma de desigualdade por gênero.

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O jantar de uma família no Rio de Janeiro, Jean-Baptiste Debret, 1839

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Penso que os exemplos anteriormente citados nos mostram que a moral também sofre influência, sim, de atos legislativos intencionais, e que o estatuto moral dos padrões normativos também pode ser atribuído por um fiat humano, sobretudo se reconhecermos o fenômeno social do progresso moral. Também é importante constatar que algumas regras jurídicas não poderiam ser alteradas por ato legislativo intencional. Imaginem que um certo parlamento nos dias atuais promulgasse a seguinte lei: “A partir de 1º de janeiro de 2021 não será mais ilegal assassinar, estuprar e sequestrar”. Penso que é razoável supor que esta alteração não seria aceita pela sociedade e a razão por sua não aceitação seria a reprovação moral de tais atos. E isso parece nos mostrar, no fim das contas, que estes dois sistemas de regras não são tão diferentes assim, uma vez que ambos compartilham de um mesmo padrão normativo que é intersubjetivo.

A terceira especificidade da moral apontada por Hart é o caráter voluntário dos delitos morais. O ponto central é distinguir entre a responsabilidade moral e a responsabilidade jurídica, de forma que se um agente descumprir uma certa regra moral, como a que diz que é errado matar, sem intenção e tomando todas as precauções cabíveis, ele seria facilmente desculpado no plano moral; entretanto, no plano jurídico, esse agente ainda seria responsável objetivamente pelo dano causado. Com isso, o “caráter interno” da moral, isto é, a intencionalidade ou voluntariedade, seria condição necessária para a responsabilidade que o agente deve ter com sua conduta, o que significaria que uma ação cometida sem intenção não seria censurável (moralmente), sendo apenas passível de punição, uma vez que o sistema jurídico pode impor responsabilidade objetiva aos agentes totalmente independente do dolo, isto é, independente da intenção (HART, 2012, p. 178-179).

A limitação desta distinção entre o interno (intenções) e externo (consequências) para compreender a especificidade da moral e do direito, parece esconder os elementos “externalistas” da moral, bem como minimizar os elementos “internalistas” do direito. Como o próprio Hart reconhece, no sistema jurídico a identificação do dolo (intenção) é um elemento importante de responsabilidade criminal para assegurar aos que ofenderam sem intenção um certo tipo de desculpa, o que significaria uma pena mais branda. E, além da distinção entre dolo e culpa, o direito penal também distingue entre crime tentado e crime realizado, atribuindo uma penalidade (ainda que menor) até mesmo aos atos que foram pensados e desejados, mas que não foram concretizados, como na circunstância de uma tentativa de homicídio. E isso já nos conduz aos casos de sorte moral resultante, que ocorrem quando a censura e a responsabilidade moral vão além das intenções dos agentes, tendo por foco as consequências mesmas dos atos.

Penso que os casos de sorte moral resultante claramente nos mostram que na vida real responsabilizamos moralmente as pessoas também pelas consequências de seus atos, além das de suas intenções. Pensem no exemplo clássico dos dois motoristas imprudentes. Ambos ingerem a mesma quantidade de álcool e, ao dirigir seu automóvel, sobem na calçada, mas em apenas em um dos casos há o atropelamento e posterior morte de pedestres. No outro caso, não ocorre nenhum atropelamento e morte porque não havia pedestres na calçada. O problema central que emerge neste caso e em outros similares é que eles parecem colocar em xeque as nossas avaliações morais que deveriam considerar a responsabilidade dos agentes circunscrita apenas às suas capacidades de ação voluntária (escolha livre) e deliberada, mas, de fato, levam em conta igualmente o resultado das ações intencionais para o elogio e censura. Note-se que os agentes são igualmente culpados por sua imprudência de beber e dirigir, mas a censura é mais intensa ao motorista que atropela e mata os pedestres, inclusive sendo um ato passível de punição, o que é uma censura legal. Há igual culpabilidade moral, mas a censura, tanto moral quanto legal, é diferenciada.

A última distinção entre moral e direito feita por Hart consiste na observação de que as regras morais teriam uma forma de pressão “interna” em contraposição a pressão externa das regras jurídicas. Isto quer dizer que a obediência às regras jurídicas se daria muitas vezes pelo medo da punição, enquanto a obediência às regras morais se daria pela própria correção das regras e pelo reconhecimento de sua importância por parte dos agentes. Por exemplo, seria a própria consciência do agente que o obrigaria a seguir a regra moral de cumprir a promessa, pois mesmo não havendo punição para o seu descumprimento, pode gerar culpa e arrependimento no agente por sua não observância (HART, 2012, p.179-180).

A questão levantada é a de saber como as pessoas teriam desenvolvido as práticas de obrigação entre si e teriam tomado os outros como responsáveis? A resposta pode ser dada pelas práticas de censura e elogio. Imaginando a necessidade da confiança para realizar empreendimentos cooperativos, a credibilidade do agente teria sido fundamental para a garantia de seu sucesso no grupo. Assim, seria razoável imaginar que o agente que mentisse ou que não cumprisse a sua promessa fosse fortemente censurado pela comunidade. E, dessa forma, seriam estas condições sociais que teriam levado as pessoas a adotarem os conceitos de desejabilidade e responsabilidade, dizendo por exemplo, “é desejável que você não minta” ou “é desejável que você cumpra a promessa”, o que teria levado aos conceito de obrigação, na forma de “você tem o dever de não mentir” ou “você deve cumprir a promessa”.

É claro que muito mais deve ser investigado sobre o tema, mas penso que essa reflexão já nos mostra que a natureza da moral, ao menos, é bem mais complexa do que parece a um primeiro olhar.

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Alegoria da moralidade das coisas terrenas, atribuída a Tintoretto

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Denis Coitinho

Denis Coitinho é professor do PPG em Filosofia da Unisinos e Pesquisador do CNPq. Doutor em Filosofia pela PUCRS, com pós-doutorado na London School of Economics e na Universidade de Harvard. É autor de Justiça e Coerência e Contrato & Virtudes, ambos por Edições Loyola.