Filosofia

Sobre a liberdade de expressão

por Denis Coitinho

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Um caso recente da política brasileira me deixou bastante dividido por revelar uma espécie de paradoxo da democracia. Me refiro à anulação da cassação do Deputado Fernando Destito Francischini (União Brasil – PR) feita pelo Ministro do STF, Nunes Marques, e a posterior decisão da 2ª. Turma do STF, restabelecendo a cassação do mandato do deputado bolsonarista. Por um lado, senti um tipo de contentamento com a reafirmação da cassação, pois considero que é importante defender certos limites à liberdade de expressão, de forma que um sistema democrático não deva tolerar discursos que visem destruí-lo e que tenham potencial para tal. Mas, por outro, fiquei bastante preocupado, pois pondero que seria uma ameaça à própria democracia se a liberdade de expressão não for defendida com todas as nossas forças e se certos critérios formais não forem respeitados em um Estado Democrático de Direito, tal como a não retroatividade da lei em casos de decisões judiciais.

Mas entendamos melhor o caso antes de investigarmos esse problema em maior detalhe.

Na quinta-feira, dia 02 de junho deste ano, o ministro Nunes Marques do STF (Supremo Tribunal Federal) derrubou a decisão colegiada do TSE  (Tribunal Superior Eleitoral) que cassou o mandado de Francischini por divulgar notícias falsas sobre as eleições, sendo o caso emblemático, pois tratou-se da primeira cassação por fake news eleitoral. Importante recordar que o referido político foi cassado pelo TSE em 28 de outubro de 2021, em razão de sua afirmação nas redes sociais durante o primeiro turno das eleições de 2018, sem apresentar prova, que as urnas eletrônicas tinham sido adulteradas para impedir a eleição do presidente Jair Bolsonaro. O TSE decidiu cassar o mandato do parlamentar por propagar informações falsas sobre a urna eletrônica e o sistema de votação durantes as referidas eleições, considerando que a conduta de propagar desinformação configura uso indevido dos meios de comunicação e abuso de poder político.

Acontece que no dia 07 de junho/22, terça-feira, a 2ª Turma do STF decidiu — por 3 votos a 2 — derrubar a decisão do ministro Nunes Marques, restabelecendo a cassação do mandato do deputado em tela. E o principal argumento apresentado para tal, especialmente o defendido por Gilmar Mendes, foi o de que o discurso de ataque sistemático às urnas eletrônicas, mais notadamente no dia das eleições, não pode ser tolerado em um Estado Democrático de Direito, no qual se propugna o sufrágio universal como direito fundamental considerado como cláusula pétrea. Inclusive, ao refletir sobre os limites da liberdade de expressão, disse: “Nós temos que construir a ideia de uma democracia defendente, que repugna esse tipo de ato. E acho que a Justiça eleitoral é um bom exemplo nesse caso”.

Do lado oposto, o argumento dos ministros Nunes Marques e André Mendonça destacaram o problema da retroatividade da lei e da não preservação da vontade democrática dos eleitores. O ponto é que não haveria no TSE uma jurisprudência consolidada que equiparasse a internet e as redes sociais aos meios de comunicação tradicionais, como o rádio e a televisão, cujo uso indevido poderia desequilibrar a disputa e, assim, a Justiça Eleitoral não poderia aplicar um novo entendimento para punir o deputado de forma retroativa. Além disso, não identificaram gravidade suficiente na live de Francischini para justificar sua cassação, como exige a lei, pois não haveria prova de que a transmissão tenha feito diferença para sua vitória, considerando que ele foi o deputado mais votado do Paraná, com 427.749 votos e, assim, que seria imperativo preservar a vontade democrática dos eleitores. É forçoso reconhecer, embora a contragosto, que essa linha de argumentação é bastante coerente com as premissas básicas de um sistema político que tem no direito a sua força normativa central para a resolução dos conflitos, como é o nosso.

Veja-se que o problema para o sistema democrático que esse caso nos apresenta é que, por um lado, parece legítimo o combate às fake news eleitorais que atacam a credibilidade do próprio sistema eleitoral, uma vez que em uma democracia o poder político é expresso e exercido representativamente, mas, por outro, parece excessivo e até autoritária a medida que não respeita a liberdade de expressão dos agentes, considerando que este tipo de liberdade é constitutivo em uma democracia, da mesma forma que o é a segurança jurídica. Por mais que eu discorde do conteúdo veiculado pelo deputado a respeito da insegurança das urnas eletrônicas, penso que ele deve ter o direito de manifestar sua convicção, desde que isto não cause danos às pessoas e às suas instituições mais centrais, é claro. Lembrando uma famosa frase atribuída a Voltaire, poderia dizer que “Não concordo com uma palavra do que dizeis, mas defenderei até a morte o direito de dizê-la”. Até porque, se não for assim, teríamos que contar com uma instituição pública de censura para distinguir o verdadeiro do falso e punir os culpados. Mas com uma instituição deste tipo, ainda teríamos uma democracia ou, antes, já estaríamos imersos em um sistema autocrático ou mesmo ditatorial?

É claro que não estou defendendo que a liberdade de expressão não pode ser limitada. Ao contrário, minha preocupação é que com o afã de se salvar a democracia, se use meios antidemocráticos para tal, o que no fim das contas pode inviabilizar o próprio sistema que se pretende defender. Lembremos da Lava-Jato, que com o objetivo de combater a corrupção — o que foi certamente louvável — não respeitou as garantias jurídicas-constitucionais que são direitos assegurados aos cidadãos brasileiros, trazendo por resultado uma forte sensação de insegurança jurídica — o que claramente é censurável. Assim, creio que uma reflexão mais cuidadosa sobre o papel da liberdade de expressão em nossa sociedade é fundamental, até porque estamos enfrentando atualmente novos problemas como o das fake news e os discursos de ódio propagados nas redes sociais e não mais na mídia tradicional

Em primeiro lugar, é importante considerar que a liberdade de expressão é um direito fundamental assegurado por nossa Constituição de 1988. Diz no inciso IV e IX do artigo 5º que: “IV – “É livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;” e “IX – É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”, o que significa que no Brasil todos têm o direito de expressar suas ideias, opiniões e sentimentos das mais variadas formas, sem que essa expressão seja submetida a um controle prévio, seja pela censura ou pela licença estatal. Entretanto, embora essa liberdade de expressão seja um direito garantido, a mesma Constituição determina que a liberdade de um indivíduo não pode ferir a liberdade de outro. O inciso X do artigo 5º, por exemplo, determina que não se pode ferir a intimidade, privacidade, honra e imagem de outra pessoa, o que significa que não se pode usar o argumento da liberdade de expressão para ferir outros direitos garantidos.

Em segundo lugar, é imperativo reconhecer que a liberdade de expressão é um dos direitos fundamentais em democracias liberais contemporâneas, que seguiram uma tradição iluminista em oposição ao absolutismo. E o seu ponto central é a defesa da igualdade de todos os cidadãos, igualdade perante à lei e, mais, a igualdade de opiniões, de forma que todas as convicções, mesmo divergentes, serão igualmente levadas em conta no contexto social, de forma a se respeitar a autonomia dos agentes. Stuart Mill, por exemplo, defendeu que sem a plena liberdade não se poderia assegurar progresso científico, jurídico, econômico ou mesmo político. A ideia básica defendida é que a livre discussão das ideias concorre para a evolução das sociedades. Na sua obra On Liberty (1989), Mill defendeu que a liberdade de expressão das ideias, sejam elas verdadeiras ou falsas, não deve ser temida e que o direito de opinião não pode ser suprimido nem cerceado por razões econômicas ou morais, mas somente quando causa um dano injusto. E essa defesa da liberdade de expressão é uma forma bastante eficiente para se proteger de possíveis governos corruptos e/ou tirânicos. Como bem percebido por Mill, a opinião que se tenta suprimir pela autoridade pode ser verdadeira, uma vez que esta autoridade (Política) não é infalível (1989, p. 20-21).

Esse me parece um critério relevante para limitar a liberdade de expressão do ponto de vista público, a saber, quando causa um dano injusto. Se a opinião de alguém causar um (possível) dano a outra pessoa ou mesmo a uma instituição fundamental para esta sociedade, então se poderia cercear essa liberdade. Exemplos disso seriam as opiniões defendidas recentemente de que tomar cloroquina e ivermectina seriam o tratamento adequado contra a covid-19 e de que se estaria implantando chip nas pessoas pela vacina, pois essas opiniões poderiam causar a morte de muitos cidadãos, considerando que a ciência — através de diversos organismos como a Anvisa, Laboratórios farmacêuticos, OMS etc. — comprovou a eficácia das vacinas contra a pandemia em tela. Como também defendido por outro importante autor liberal em sua famosa obra A Theory of Justice (1971), a liberdade dos agentes só deve ser restringida pelo interesse geral na segurança e ordem pública, isto é, quando há suposições razoáveis de que não fazê-lo ameaçará a segurança dos cidadãos e das suas instituições (1971, seções 35 e 36). E, assim, seria possível ser intolerante com o intolerante havendo uma ameaça concreta, assim como afirmado por Popper em A Sociedade Aberta e seu Inimigos (1998, p. 289-290). Agora, não sei em que sentido as opiniões de desconfiança sobre as urnas eletrônicas e o sistema de votação colocaria em risco a própria instituição das eleições, até porque isto de fato não alterou o resultado eleitoral e, também, em muitos países com democracias consolidadas no mundo usam o sistema de votação em cédula. Por mais improvável que pareça essa opinião do deputado bolsonarista, poderia ser o caso dela ser verdadeira. Se não quisermos assumir o ônus de ter que conviver com uma autoridade política-jurídica infalível, que deverá contar com um tipo de “Ministério da Verdade”, como no 1984 de George Orwell, penso ser melhor conviver com a diversidade de opiniões e considerar a possibilidade de que as crenças que temos sejam falsas, sendo uma forma de lidar com  a falibilidade a que todos nós invariavelmente estamos sujeitos.

Para terminar, deixem-me fazer uma importante distinção entre duas perspectivas da liberdade de expressão, a saber, a objetiva e a subjetiva. A perspectiva subjetiva da liberdade de expressão é aquela voltada para o indivíduo e tem como referências centrais John Milton e John Stuart Mill, por exemplo. Para ambos, a verdade ? que tem uma natureza objetiva ? só pode ser alcançada através da livre discussão de ideias, mesmo que erradas, pois estas seriam naturalmente rechaçadas e ajudariam na revelação da verdade. Atualmente, um dos defensores da liberdade de expressão na perspectiva subjetiva é Ronald Dworkin. Na sua conhecida obra Levando os Direitos à Sério, Dworkin estabelece limites ao direito da coletividade interferir na liberdade de expressão do indivíduo, pois, como todos os direitos fundamentais, a liberdade de expressão deve ser “levada a sério”, mesmo que isso implique ter que conviver com a pornografia e o discurso de ódio. Partindo do conceito de direito como integridade, defende que a liberdade de expressão deve ser entendida como um princípio moral baseado na equidade, na justiça e no devido processo legal, sendo essencial para que a democracia seja garantida de forma plena.

Por outro lado, a perspectiva objetiva da liberdade de expressão se volta para a sociedade. Nesse âmbito, deve atuar como instrumento para a pluralidade de expressão e debate de ideias e, consequentemente, como suporte da democracia deliberativa. Foi nessa perspectiva que se deu a primeira emenda da Constituição norte-americana, por exemplo, que assegura a liberdade de religião, expressão, reunião e petição aos governos. Para James Madison, só seria possível existir liberdade de expressão quando houvesse a possibilidade de coexistência entre diversos pontos de vista relacionados aos assuntos de interesse público. Este direito fundamental em questão cumpriria, assim, uma dupla função na democracia. Primeiro, cumpriria uma função informativa pela qual o livre fluxo de informações possibilita o melhor conhecimento e a melhor avaliação dos assuntos de relevância pública. Dessa forma, os cidadãos estariam mais preparados para tomar decisões adequadas ao regime democrático. A segunda função seria a crítica, pela qual a liberdade de expressão asseguraria aos cidadãos a faculdade de criticar o poder político, as instituições estabelecidas e os agentes públicos.

Como vimos, na dimensão subjetiva, a liberdade de expressão é um direito fundamental da pessoa, sendo a mais imediata manifestação da personalidade humana em sociedade. Na dimensão objetiva, por sua vez, este direito é tido como um valor central da ordem jurídica democrática, representando o instrumento imprescindível para a livre formação da opinião pública e para a troca de ideias entre os cidadãos. Com isso em mente, podemos concluir que um sistema democrático deve tanto respeitar a dignidade humana, representada pelas convicções dos agentes, como deve respeitar a pluralidade de crenças existentes na sociedade. E, sendo assim, não seria razoável limitar a liberdade de expressão dos cidadãos sem uma clara justificativa dos riscos que certas opiniões poderiam causar tanto aos cidadãos como às suas instituições.  É claro que devemos sempre estar atentos aos ataques à democracia, mas não ao custo de uma ingenuidade epistêmica que advogaria pela infalibilidade. No fim das contas, sendo a democracia um regime político orientado pelos valores de liberdade e igualdade e pelos direitos de participação e contestação, o pluralismo não deveria ser visto como um problema, mas, antes, como sua natureza.

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Stuart Mill, retratado por G.F. Watts

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Denis Coitinho

Denis Coitinho é professor do PPG em Filosofia da Unisinos e Pesquisador do CNPq. Doutor em Filosofia pela PUCRS, com pós-doutorado na London School of Economics e na Universidade de Harvard. É autor de Justiça e Coerência e Contrato & Virtudes, ambos por Edições Loyola.