Artes

Aleijadinho, entre história e mito

por Guiomar de Grammont

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“Aleijadinho” foi o epiteto dado ao escultor Antônio Francisco Lisboa (1738 – 1814), morador de Vila Rica, hoje Ouro Preto, ao qual se atribui obras em diversos outros centros de Minas Gerais: Mariana, Sabará, Congonhas do Campo, São João-del-Rey. À luz da documentação existente,  sua biografia parece ter sido bem mais prosaica do que relata o mito construído ao longo do tempo na historiografia da arte brasileira. Existiram diversos “Aleijadinhos”, inventados à medida em que se deu a construção nacionalista de uma “arte brasileira”, em diferentes contextos, do século XIX até a contemporaneidade. Cada momento criou o seu Aleijadinho, em diversos gêneros literários e científicos: no século XIX a sua figura foi mencionada com curiosidade nos relatos dos viajantes estrangeiros que visitaram Minas e foi tema de um texto biográfico criado para o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro; no século XX, a obra do artista, muitas vezes, constituída por análises estilísticas dos historiadores de arte da contemporaneidade, foi central no discurso modernista sobre a identidade cultural nacional.

A primeira biografia do artista, escrita pelo erudito mineiro Rodrigo José Ferreira Bretas, foi publicada em 1858. O texto atendia a uma solicitação do pintor e arquiteto Manuel Araújo Porto Alegre, então secretário do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, que pedia aos correspondentes da instituição nas diversas províncias, para enviar notícias sobre os personagens ilustres de cada uma delas.  O texto de Bretas foi concebido então no contexto do romantismo nacionalista, que inspirava o projeto político e cultural levado a cabo pelo Instituto a partir de 1838.  Aplica, portanto, tópicas românticas nas quais a exageração dos caracteres e paixões reforça a deformação do personagem, para adequá-lo às demandas do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em que  estava incluido o incentivo à produção de estudos sobre as chamadas celebridades regionais, já que uma das tarefas da instituição era erigir um panteão dos heróis nacionais.

O discurso de Bretas, portanto, foi construído conforme as expectativas do Instituto, ao qual cabia o poder de sua legitimação. Desta forma, o autor podia esperar ser admitido entre os membros da mais prestigiosa agremiação cultural do império. Nesse sentido, podemos dizer que esse público receptor, a ala romântica e nacionalista do IHGB, foi um ator concreto e importante na elaboração do texto. Essa biografia, entretanto, foi baseada, em grande parte, em informações orais pouco confiáveis – uma vez que já se haviam passado quarenta anos desde a morte do Aleijadinho – e escrita com os critérios “científicos” da época. Assim, esta narrativa acaba contendo muitos aspectos fantasiosos, como, por exemplo, o de que o Aleijadinho teria ficado doente por ter tomado uma substância chamada “cardina”, com o fim de aumentar a potência e os dotes artísticos. Por outro lado, muitas anedotas do texto de Bretas são recriações de episódios das vidas de Rafael e Michelangelo, tal como foram descritos por Giorgio Vasari, amplamente divulgados pela imprensa destinada ao público letrado no século XIX.

Quase um século depois, no momento da criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, durante o regime de Getúlio Vargas, o diretor Rodrigo Melo Franco de Andrade e uma equipe de pesquisadores do SPHAN vasculharam os arquivos de Minas em busca de provas documentais que pudessem dar consistência às informações contidas na primeira biografia do artífice, realizada por Bretas. O esforço do SPHAN, conduzido por Rodrigo Melo Franco, foi o de encontrar provas que dessem consistência a esse primeiro texto, tornado um quebra-cabeças. Suas lacunas e seus vazios foram preenchidos, inicialmente, por documentos históricos, em seguida, por análises estilísticas de especialistas que, com sua autoridade, buscaram corroborar as afirmações sem comprovação documental. Contudo, ao se analisar a história do entalhador Antônio Francisco Lisboa apenas à luz dos dados que se encontram nos documentos reunidos pelo SPHAN, essa existência, reconstituída na medida do possível, resulta mais prosaica e comum, do que se supunha.

A idealização e mitificação desse artífice, que começou a tomar forma cerca de cinquenta anos após a sua morte, tornaram-no pouco a pouco um herói nacional, tópica de diferentes programas de construção de idéias sobre o que seria a «identidade cultural brasileira» na historiografia do país. Esses discursos, programaticamente anacrônicos, não consideravam, obviamente, que toda e qualquer identidade nacional é uma invenção posterior à época em que teriam existido artífices como Antônio Francisco Lisboa. «Aleijadinho» é uma imagem que foi reinventada para adequar-se aos objetivos políticos de cada época. A função do herói mítico é a integração de realidades díspares e heterogêneas. Como diz José Murilo de Carvalho, referindo-se a Tiradentes, o herói opera «a unidade mística dos cidadãos, o sentimento de participação, de união em torno de um ideal…».

Antônio Francisco Lisboa, de fato, foi apenas um dos artífices que resultaram de uma convenção artística comum ao período colonial. Nos textos sobre esse personagem, freqüentemente são aplicados conceitos psicologizantes às obras atribuídas ao «Aleijadinho»,  completamente estranhos ao universo dos artífices do século XVIII brasileiro. Esses conceitos inexistem em um momento em que as artes são regidas por rígidos preceitos retóricos herdados da Antigüidade, tempo em que a imitação e a emulação ocupam um papel central.

O mito assim construído pelo texto de Bretas foi reapropriado como evidência histórica, tornando-se caso exemplar, vetor do projeto de invenção da “arte brasileira”. Essa apropriação tem o efeito de um eco: não há nada de novo na maior parte dos estudos produzidos sobre o artífice ao longo do século XX. Destacam-se, nesse processo, dois movimentos de constituição do que seria a arte brasileira: o do IHGB, como já mencionamos, nacionalista e romântico, ainda com fortes raízes metropolitanas, e o do Modernismo, completamente diferente: buscando ressaltar o exotismo de uma cultura híbrida. O movimento modernista de revalorização da arte mineira para integrá-la no vasto programa de «redescoberta» das raízes da arte brasileira, enfatiza aspectos como a miscigenação racial e cultural. O que está em jogo é a invenção do Brasil modernista, processo em que a «redescoberta» das raízes culturais foi fundamental e incluía o «barroco».

Com esse objetivo, Mário de Andrade impulsiona a pesquisa histórica detalhada sobre o personagem à qual se dedicou como assistente técnico do SPHAN, que visava inclusive a trazer motivos para uma criação artistica que pudesse ser de expressão nacional, religando assim o passado colonial e o presente. Mário e Rodrigo Melo Franco de Andrade estiveram o tempo todo em contato, trocando idéias e projetos. Com certeza, as reflexões de Mário de Andrade foram fundamentais na constituição do mito do Aleijadinho. Ao construir « seu Aleijadinho », Mário ressemantiza o adjetivo « primitivo » para dar conta da dupla significação: herói fundador, mito que, com sua criação, instaura um mundo, inaugura uma realidade, além de ser o gênio autodidata. Os modernistas reinventaram a figura do Aleijadinho como um herói-alquímico, que teria vindo para realizar a unidade impossível entre as diversas componentes culturais brasileiras. O mito que se coloca sob as diferentes narrativas que compõem esse personagem é o do herói civilizador, capaz de transformar as matérias agrestes da natureza em formas da cultura, herói que profetiza uma unidade perdida e reencontrada  em sua própria figura.

Os Modernistas tinham vivido, em sua maioria, um tempo na Europa e voltaram imbuídos do sentimento de que era necessário revalorizar o Brasil e mostrar ao mundo nossa riqueza cultural. Essa imagem foi criada como reação a um olhar externo muitas vezes depreciativo e à interiorização desse olhar por parte dos próprios brasileiros. Por isso, eles inventaram o Brasil mestiço, sincrético e vibrante. E conseguiram seu intento. Essa imagem cultural é tão poderosa, que é a forma como nos percebemos e definimos até hoje, em filmes, propagandas, livros e muitas outras formas de expressão.

A revalorização modernista teve sua continuidade no esforço de diversos críticos, técnicos e historiadores da arte que se incumbiram da tarefa de atribuir inúmeras novas obras ao personagem Aleijadinho, utilizando um instrumental teórico e prático que tem sua origem em determinados lugares-comuns que se naturalizaram. Fundamentando-se nesses pressupostos, tais como «estilo», «autoria», etc., esses autores costumam analisar obras de tempos e lugares diferentes do seu, aplicando, anacronicamente, categorias de análise que fazem supor, nos artífices do passado, motivações idênticas às contemporâneas. Na época de Aleijadinho, não existiam « a arte »  e « o artista », tal como compreendemos, hoje, esses termos. O artista do período colonial não assinava suas obras. Na Europa, temos casos como o de Rembrandt, que assinava as melhores obras de seus discípulos como uma forma de distinção.

O que chamamos « artista » é um personagem histórico que começa a existir a partir de um certo momento histórico, no começo do século XVI, no mundo europeu, e vai progressivamente tomando espaço até que a esfera de sua atuação culmine na instituição dos direitos autorais como propriedade jurídica. Essas operações subjetivas de análise, muitas vezes complexas, de atribuição de obras de arte, formaram uma parte significativa da mitologia do personagem Aleijadinho. O que os documentos não conseguiam explicar era preenchido com abordagens estilísticas, fundadas na autoridade do crítico que enuncia o discurso. Essa autorictas baseia-se, por sua vez, na validação estabelecida pelos juízos do pesquisador, sendo fundada por seu respaldo entre seus pares em lugares institucionais específicos.

Mas o que está em questão não é o uso de categorias anacrônicas, porque isso é inevitável para o historiador da cultura (até mesmo a noção de “século” é um anacronismo). O problema é quando essas categorias servem para dar fundamento a versões que contradizem dados históricos. Muitos críticos atribuíram obras ao Aleijadinho apenas para valorizá-las, aproveitando a “aura” do mito. Isso gerou distorções e injustiças.  Por exemplo, um belo chafariz de Ouro Preto, encimado por um busto de mulher, segundo os documentos, foi arrematado e concluído em 1761 por Manuel Francisco Lisboa. Contudo, foi atribuído ao Aleijadinho, que seria muito jovem na época, conforme sua certidão de óbito.

Dessa forma, muitas vezes, a construção do mito serviu a interesses políticos econômicos que nada têm a ver com as motivações que estimularam a construção de obras arquitetônicas, escultóricas e pictóricas no passado.  Entre esses interesses, por exemplo, encontram-se os do lucrativo mercado de obras de arte, fundado na atribuição da autoria de determinadas obras a nomes que se tornaram famosos. Impressionados pelo boom de obras artísticas numa região com tantas dificuldades de acesso como as Minas Gerais do século XVIII, diversos pesquisadores, imbuídos do espírito romântico, atribuíam o extraordinário a uma persona extraordinária: o Aleijadinho, um «artista» autodidata.

O problema é que a constituição do mito, determinada por sua adequação a um ideário nacionalista, inicialmente, romântico, depois, modernista, agigantou-se tanto que gerou um apagamento da memória e do interesse por todos os outros artífices do período colonial. Por consequência, também do próprio Antônio Francisco Lisboa, a quem não se procura conhecer como teria sido: o personagem histórico foi esmagado pelo mito do Aleijadinho.

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Aleijadinho em Vila Rica, 1898-1904 (reconstrução romântica de uma cena imaginária na vida do artista, por Henrique Bernardelli)

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Guiomar de Grammont

Guiomar de Grammont é escritora e Professora da Universidade Federal de Ouro Preto.