Artes

O gesto e o movimento na arte pré-colonial americana

por Denise Maria Cavalcante Gomes

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A retomada e valorização da obra do historiador da arte Aby Warburg (1866-1929) tem produzido múltiplas reflexões no campo da teoria da imagem, que convergem para questões fundamentais da antropologia visual. Aqui nos interessa resgatar a contribuição de Warburg ligada ao estudo do movimento na arte, a partir da análise de diferentes objetos de culturas associadas às Tumbas de Tiro (México), Jama-Coaque e Bahía (Equador), Chiriqui (Panamá), Konduri e Marajoara (Brasil) que integram a Coleção Cerqueira Leite. Foram selecionados exemplares que dialogam de perto com dois momentos da trajetória do autor alemão:  o primeiro, relacionado ao estudo da representação do movimento na arte e o segundo, relativo à compreensão do movimento a partir da relação existente entre sujeito e imagem.

Esses dois momentos cronológicos servem apenas para assinalar a passagem da descrição de processos técnicos e formais, para a compreensão do simbolismo tendo em vista o envolvimento da experiência dos indivíduos no processo de compreensão das imagens. Esse último está ligado à pesquisa de Warburg de caráter antropológico, sobre as crenças animistas e o conjunto de práticas que dão sustentação à expressão artística das sociedades indígenas. O reconhecimento de imagens complexas, que relacionam de maneira sintética pragmatismo e representação simbólica, possibilitou a autores como Carlo Severi definir as imagens criadas pelas culturas ameríndias como quimeras, ou seja, figuras compostas de seres diversos em transformação. Tal conceito é de grande utilidade para os estudos iconográficos contemporâneos que relacionam as produções da arte às ontologias dos povos ameríndios. Desse modo, o exercício de identificação de diferentes formas de representação do movimento nos artefatos que integram a coleção Cerqueira Leite permite inferir a longa permanência de práticas e concepções do mundo nas culturas indígenas das Américas.

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A dança e os gestos sutis das estatuetas da Coleção Cerqueira Leite

 Em seus estudos sobre a pintura renascentista, Aby Warburg tratou a presença das ninfas e outras figuras mitológicas a partir de uma inflexão própria, independente dos significados. Ele buscou compreender através dos detalhes de temas secundários como os artistas haviam representado o movimento de figuras inscritas no plano. Estas apareciam com membros flexuosos, cabelos soltos ondulados, a roupa em pregas colada ao corpo, esvoaçando sob o efeito do vento e com gestos específicos. Em antítese às poses estáticas da escultura, tais fórmulas traduziriam o movimento, e, na interpretação do autor, seriam um modo de aumentar o efeito de representação da vida.

A abordagem acerca dos modos de figuração do movimento possibilita a análise de diversos objetos em cerâmica,  da Coleção Cerqueira Leite. Estatuetas funerárias antropomorfas associadas às Tumbas de Tiro (300 a.C.-600 d.C.), região de Colima, México, são exemplos relevantes. As imagens documentam papéis sociais e ofícios desempenhados por pessoas, possivelmente ligadas aos rituais funerários ou mesmo representações dos próprios mortos, além de inúmeros artefatos depositados como oferendas.

Exibe um homem com uma vestimenta elaborada e muitos adornos corporais, portando uma máscara zoomorfa removível, em forma de crocodilo com a boca aberta, o que finalmente sugere sua associação a um xamã. A grande expressividade desse artefato surge a partir da postura corporal em posição ereta, com as pernas ligeiramente flexionadas, os braços erguidos e flexionados na altura dos ombros, indicando o movimento. A pose e os gestos possibilitam estabelecer uma associação direta da figura com a dança, executada em contexto ritual.

Outra estatueta antropomorfa vinculada às Tumbas de Tiro, pertencente ao estilo Comala (200 a.C.-200 d.C.), México, porta uma veste semelhante a um saiote, um gorro com um disco no topo da cabeça e tem os braços flexionados na altura do ombro com as mãos sobre a boca, aparentemente segurando um pequeno instrumento, possivelmente um apito (Figura 1). O movimento do corpo, levemente inclinado para a frente e as mãos que seguram o instrumento, conferem à estatueta uma expressão ligada à música e dança. Esses detalhes vinculam esse tipo de personagem às práticas realizadas durante os rituais que acompanhavam os mortos.

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Figura 1. Estatueta antropomorfa. Cultura das Tumbas de Tiro, 200 a.C.-200 d.C. (México)

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Um conjunto de quatro estatuetas de xamãs da cultura Jama-Coaque (500 A.C. a 500 D.C.), da costa do Equador, estariam associadas a rituais propiciatórios, ligados ao ciclo agrícola. Todas elas se sobressaem inicialmente pela grande elaboração e pelo fato das personagens portarem instrumentos e inúmeros adornos, tais como toucados, labretes, narigueiras, orelheiras, braçadeiras, tornozeleiras, peitorais, além de vestes características. Mas são as posturas e os gestos que chamam a nossa atenção.

A primeira delas está sentada sobre um tubérculo (Figura 2), apresenta os olhos fechados e as palmas das mãos voltadas para baixo. Embora estática, a pose evoca ação e movimento. Um outro exemplar de figura antropomorfa sentada, tem na inclinação da cabeça, apoiada em uma das mãos, o elemento de destaque. A terceira estatueta está sentada em um banco, com os olhos fechados, e repete o mesmo gesto da primeira, tendo as palmas das mãos voltadas para cima. Por fim, a quarta estatueta antropomorfa, se apresenta em pé, com os braços estendidos ao logo do corpo e novamente com as palmas das mãos voltadas para cima. Nesses artefatos, para além da representação realista de figuras humanas com seus adornos, outros detalhes e atributos induzem à percepção de uma forma de movimento bastante sutil. São as posturas corporais, os gestos das mãos e da cabeça, que remetem à ação ritual.

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Figura 2. Estatueta de xamã sentado sobre tubérculo. Cultura Jama-Coaque (Equador)

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O conjunto escultórico da cultura Bahía (500 a.C.-500 d.C.), também da costa do Equador e contemporânea à cultura Jama-Coaque, segue essa mesma tendência de sutileza ao sugerir o movimento. Esse conjunto apresenta três figuras masculinas em pé, que vestem toucados indicando uma posição social de status elevado, colocadas uma na frente da outra,  erguendo um vaso cerâmico um pouco acima da linha dos olhos. A atitude aparentemente estática dessas personagens aponta uma outra forma de representação do movimento, a partir da inclinação dos corpos e do ato dos três segurarem um mesmo vaso (Figura 3).

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Figura 3. Conjunto escultórico com três indivíduos que erguem um vaso. Cultura Bahía, 500 A.C. – 500 D.C. (Equador)

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O engajamento do espectador nos atos do olhar                               

Outras estratégias visuais que envolvem o movimento estão relacionadas a figuras complexas ou plurais, cuja forma sugere diversas possibilidades de leitura e consequentemente de diversos seres representados. Seu reconhecimento em artefatos tridimensionais depende algumas vezes da movimentação da peça, ou ainda de uma mudança de perspectiva ou do ângulo de observação. Essas figuras plurais identificadas nas iconografias ameríndias foram definidas pelo antropólogo Carlo Severi como figuras quiméricas. O caráter indiciário cria, segundo o autor, um espaço liminar da imagem de natureza instável, que se completa como uma imagem virtual. Do ponto de vista conceitual, sua compreensão plena se relaciona ao entendimento das imagens muito além da representação e da possibilidade de decifração de seus conteúdos, e implica considerar a dimensão pragmática dessas imagens ou a capacidade de ação e envolvimento que elas demandam do expectador.

Foi a partir da experiência etnográfica de Warburg, em sua viagem ao território dos Hopi (1895/1896), no Novo México, Arizona e Colorado, EUA, que sua pesquisa sobre o movimento na arte se expandiu, ao considerar o envolvimento do próprio sujeito nas imagens e a dimensão cosmológica das mesmas. Nessa ocasião, Warburg se defrontou com o xamanismo indígena, assistindo a rituais e danças propiciatórias envolvendo a manipulação de serpentes, relacionadas à figura ambígua da serpente-raio, divindade da chuva. Essa experiência possibilitou uma visão integrada das manifestações artísticas desses grupos indígenas, abrindo espaço para abordagens pragmáticas que consideram a associação de iconografias, narrativas míticas, dança e cantos durante rituais. Tanto a forma quanto o significado simbólico das imagens plurais puderam ser vinculados às ontologias nativas. A serpente-raio foi vista por Warburg como a síntese cosmológica dessa realidade complexa, onde o ritual assume um lugar próximo à ideia de “fato social total”, conforme proposto pelo antropologo Marcel Mauss.

Warburg se distanciou assim de uma história da arte reduzida à contemplação formal da imagem, passando a considerar a relação entre prática artística e ritual. Em sua visita à Smithsonian Institution, conheceu a civilização Anasazi, em Mesa Verde, no oeste americano, com suas construções abandonadas, encravadas em rochedos, as cerâmicas, as múmias, pinturas rupestres e artefatos cerâmicos. Ao sul desses sítios arqueológicos visitados por ele, entrou em contato com o povo indígena Pueblos, visitando diferentes aldeias onde assistiu às danças associadas à colheita, com a manipulação de serpentes vivas, aos rituais realizados nas kivas — espaços subterrâneos destinados às práticas xamânicas.

A presença da serpente no ritual marcou o fim da investigação de Warburg sobre o movimento. Essa foi o elo de ligação da entre a dança e as artes plásticas, que apareciam como expressões integradas. A quimera Hopi, imagem desenhada no chão da kiva cerimonial pelo xamã Cleo Juno à pedido de Warburg em 1896, mostra um corpo sinuoso denunciando o movimento e a língua sagitada, que surge como a representação da cobra-relâmpago. Esse tipo de figuração ambígua e plural aparece tanto na arqueologia como na etnografia do mundo ameríndio. A percepção mais ampla da imagem situa a discussão no campo antropológico, que associa as práticas rituais e o simbolismo cosmológico das formas visuais indígenas.As imagens do vaso trípode Chiriqui (800-1500 d.C.), originário de Diquís, Costa Rica/Panamá, podem ser assim compreendidas como quiméricas. As figuras aplicadas sobre o corpo, ao mudar de perspectiva ou do foco do olhar, indicam tanto uma cabeça humana quanto aquela de uma ave. Do mesmo modo, cada um dos pés exibe uma figura que muda de um urubu-rei para a de um crocodilo, a partir dos diferentes ângulos de observação, o que demonstra a propriedade de transformabilidade da forma (Figura 4). Contudo, a alternância entre as imagens torna-se evidente com a manipulação do artefato, o que envolve uma interação corporal do espectador com o vaso. Os aspectos formais e iconográficos, potencializados através da manipulação do vaso, apontam para questões ligadas à utilização dos artefatos e sua capacidade relacional em contextos rituais.

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Figura 4. Vaso trípode com figurações zoomorfas quiméricas. Cultura Chiriqui (Costa Rica-Panamá).

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Do mesmo modo, o recurso visual das figurações quiméricas, que condensa na mesma forma diferentes imagens, também é identificado nos artefatos cerâmicos da cultura Konduri (1000-1650 d.C.), Baixo Amazonas, Brasil. A coleção Cerqueira Leite possui um conjunto de apêndices cerâmicos tridimensionais de figuras zoomorfas e zoo-antropomorfas. Esses são partes de peças inteiras, que a partir da mudança do ângulo de visão, da manipulação da peça ou de sua reversibilidade em 180? e mesmo 360? permite aos expectadores vislumbrarem outras imagens. Essa característica estilística, relativa à existência das imagens quiméricas ou plurais, foi intensamente explorada nos artefatos Konduri (Figura 5), conforme descrito de maneira original por Luisa Oliveira. Essa autora, ao distinguir diferentes técnicas formais, por meio das quais é possível vislumbrar o surgimento de imagens distintas condensadas em uma única forma, associa esse tipo de figuração à expressão material de uma arte xamânica ligada à performance ritual.

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Figura 5. Apêndice figurando um ser híbrido, zoo-antropomorfo. Cultura Konduri (Brasil).

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O movimento nos grafismos abstratos      

Quanto aos artefatos arqueológicos que apresentam suas superfícies cobertas por grafismos abstratos bastante complexos, embora seus significados não possam ser acessados a exemplo das imagens figurativas representacionais, esses podem ser analisados a partir do reconhecimento dos diferentes tipos de simetrias e suas combinações. Segundo o antropólogo inglês Alfred Gell, os padrões de simetria consistem em recursos formais que induzem à ideia de animação e de movimento, produzindo efeitos psicológicos no expectador que se sente atraído pelos grafismos, capturado pelo ritmo de movimentação contínua dos motivos, pelas transmutações dos mesmos e organização de espaços labirínticos e multidimensionais. Essas são consideradas formas de uma agência secundária dos desenhos planos e bidimensionais, que afetam as pessoas, exercem um tipo de atração descrito por Gell como “tecnologia do encantamento”, o que também exige do expectador um engajamento do olhar.

As formas básicas de simetria são os padrões de translação, quando o motivo se repete movendo-se ao longo de uma linha reta; os de reflexão que representam o espelhamento do mesmo motivo; os de rotação, que invertem o sentido do motivo; e o de reflexão transladada que mistura reflexão e translação (Gell 1998). Mas esses também podem ser combinados. Esse tipo de análise foi realizada por Else Lagrou (2007) para compreender a organização formal dos grafismos Kaxinawa e a agência dos desenhos (kené) contidos em artefatos (cerâmicas, cestarias, bancos e tecidos), mas especialmente em pinturas faciais e corporais relacionadas a contextos etnográficos, ligados aos ritos de passagem de meninos e meninas, a rituais de fertilidade associados às mulheres e ao ritual da caça envolvendo o consumo de ayahuasca. Cristiana Barreto, por sua vez, empregou essa abordagem formal para o reconhecimento dos padrões de simetria, além de outros recursos visuais, dos grafismos nas urnas funerárias e determinados artefatos da cultura Marajoara.

Durante a fase de maior elaboração da cultura Marajoara (400-1350 d.C.), Baixo Amazonas, Brasil, associada à construção de montículos funerários e residenciais, pôde ser evidenciada a produção de urnas funerárias, pratos, vasilhas diversas, tangas, estatuetas antropomorfas, estatuetas fálicas, estatuetas zoomorfas e outros artefatos associados a contextos funerários. Classificados em diversos tipos pela literatura arqueológica, a partir da forma e das técnicas de pintura policrômica, excisão e incisão, os artefatos exibem figurações zoomorfas e antropomorfas relacionadas a grafismos complexos, alguns deles formados por partes de figurações zoomorfas, outros totalmente abstratos. A coleção Cerqueira Leite possui vários artefatos cerâmicos de estilo Marajoara, que exemplificam a grande elaboração dos grafismos pintados e incisos dessa cultura, bem como demonstram formas complexas de organização de motivos abstratos e combinações de padrões de simetria.

O primeiro exemplo da coleção Cerqueira Leite analisado é um prato do tipo Joanes Pintado, com uma base em pedestal, a partir da qual o artefato é construído, formando uma peça circular com uma depressão central de formato côncavo. Os grafismos pintados em vermelho e preto sobre branco se organizam em torno dessa depressão e exibem um campo decorativo composto por um motivo principal, que consiste em uma linha sinuosa de cor vermelha com terminações em volutas, tendo ao centro um tridente sem a haste central. Esse motivo, contornado por uma linha de cor preta, se expande no centro da vasilha e se repete em um movimento de reflexão. Triângulos concêntricos associados a elementos escalonados, dispostos em uma relação simétrica de reflexão conferem maior complexidade à composição. Os grafismos criam um efeito visual de movimento, sendo ao mesmo tempo labiríntico (Figura 6).

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Figura 6. Prato com base em pedestal, com grafismos abstratos. Cultura Marajoara (Brasil)

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Além desse e de outros artefatos pintados, de possível associação a contextos funerários, existe um conjunto significativo de artefatos utilitários da fase Marajoara (400-1350 d.C.) na coleção Cerqueira Leite, alguns deles contendo marcas de fuligem indicadoras de seu uso doméstico, cobertos por grafismos incisos com diferentes padrões de simetria. Esses vão desde motivos simples tais como volutas, elementos triangulares e quadrangulares, localizados tanto nas bordas quanto no corpo do artefato, organizados em movimento de translação ou reflexão, quanto formas escalonadas associadas a volutas abertas e diferentes elementos de preenchimento, constituindo campos decorativos bastante complexos que combinam diferentes padrões de simetria. Existem combinações que também incluem motivos assimétricos.

Um desses artefatos utilitários é uma vasilha semiesférica do tipo chamado Guajará Inciso. O artefato apresenta um padrão que ocupa toda a superfície e se estende para a base acompanhando a curvatura da vasilha. Esse é composto por um motivo semicircular com volutas voltadas para dentro, circundado por uma variação do mesmo motivo cujo sentido das volutas se inverte (Figura 7). Elementos retilíneos e escalonados preenchem os espaços. O desenho planificado (Figura 8) evidencia uma divisão quadripartite e a repetição simétrica do motivo principal refletido, sendo separados por um elemento ovóide disposto no centro da base. O efeito visual ou animação produzida é de regularidade e ao mesmo tempo de densidade gráfica.

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Figura 7. Vasilha semi-esférica com grafismos abstratos. Cultura Marajoara (Brasil)

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Figura 8. Planificação do grafismo da vasilha semiesférica. Cultura Marajoara (Brasil)

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Conforme apontado por Gell, a arte abstrata muitas vezes envolve padrões sutis e complicados, com involução e a sugestão simultânea de um grande número de relações formais entre motivos. Segundo esse autor, não é possível compreender esse tipo de arte por meio da mesma lógica interpretativa das figurações realistas, ou da generalização de exemplos simples, uma vez que o fim dessa arte reside na direção oposta, voltada ao complexo, ao ambíguo e ao abundante. Assim sendo, os exemplos de artefatos Marajoara aqui discutidos, especialmente as vasilhas utilitárias com grafismos abstratos, não se prestam a interpretações que buscam estabelecer conexões com discussões acerca das ontologias das populações nativas.

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Entre a prática ritual e as armadilhas da mente

Mais do que modelos formais de representação da realidade, os vários exemplos de estatuetas (Tumbas de Tiro, Jama-Coaque e Bahía) da Coleção Cerqueira Leite aqui descritos, que exibem corpos em movimento ou gestos sugestivos de determinadas ações, podem ser entendidos como artefatos que trazem a presença de indivíduos e evocam situações. É possível propor, a partir de suas características materiais, formais e visuais, o envolvimento desses objetos em rituais nos quais eles interagiram com pessoas e outros seres não humanos. Em síntese, são artefatos que remetem ao xamanismo e a diferentes práticas das sociedades pré-coloniais ameríndias, ligadas à dança, à música, às recitações, no contexto de cerimônias funerárias, propiciatórias, curativas e diversas outras formas de reuniões coletivas. Essa é uma maneira de correlacionar tais figurações à performatividade dos objetos.

Os artefatos Chiriqui (Panamá) e Konduri (Brasil) revelam outra forma de movimento nas figurações quiméricas, que puderam ser ativadas a partir dos atos do olhar ou da manipulação dos objetos durante essas cerimônias. Tais imagens, remetem à capacidade de transformação imaginada das formas, ligada de modo mais específico ao xamanismo. Severi a partir de sua pesquisa sobre a cestaria dos grupos amazônicos Yekwana e Wayana, aponta que as imagens quiméricas dão visibilidade a criaturas mitológicas, e que essas formam parte das “artes da memória” definidas como um grupo de técnicas inferenciais de memorização de mitos e cantos, incluindo representações das tradições iconográficas. Essas imagens também podem ser interpretadas por meio do princípio da incompletude, que rege as concepções sobre o corpo de acordo com as ontologias amazônicas, cuja forma é determinada pelo olhar que se tem sobre o corpo e pela relação que os outros estabelecem com ele.

Os grafismos abstratos de estilo Marajoara, aqui descritos, também são compreendidos segundo a lógica de associação das formas visuais indígenas às mito-cosmologias nativas e às técnicas de memorização. As reflexões de Warburg  sobre a arte e o movimento, especialmente a partir de sua experiência antropológica junto aos índios Hopi vão nessa direção. No Brasil, a contribuição de Lux Vidal sobre o grafismo indígena, além de demonstrar a mesma conexão proposta, evidenciou diferentes abordagens interpretativas no campo etnográfico, que vêm se expandindo no presente.

Lagrou associa a arte ameríndia contemporânea, que enfatiza a abstração, à predominância das ontologias animistas/perspectivistas. Essa é uma concepção que também vem sendo partilhada por estudiosos do mundo andino, por meio da análise dos grafismos em contextos etnográficos, encontrados em suportes tais como os tecidos, que são vistos como expressões visuais dessas ontologias. A partir do exemplo da arte Kaxinawa, Lagrou sugere que uma das características dessa arte abstrata é a capacidade perceptiva engendrada pelos grafismos e pelas imagens implicando em operações formais, que permitem ao observador mudar de ponto de vista. Segundo a autora, não há figura e contra-figura que se possa fixar, mas uma dinâmica sinestésica do desenho.

No campo da arqueologia, a proposição de um modelo sobre a existência de uma estética americana pré-colonial se baseia na noção de grande profundidade e permanência temporal das ontologias animistas/perspectivistas e sua ampla distribuição geográfica. As figurações do Baixo Amazonas, dos Andes  e do Noroeste da América do Norte têm sido fundamentais para a sustentação dessas ideias, através de imagens naturalistas de seres híbridos, em processo de transformação corpórea, ou das formas quiméricas. Trabalhos recentes, a partir de estilos do Médio e Alto Amazonas,— abstratos e ao mesmo tempo portadores figurações estilizadas — têm ampliado essa compreensão. Contudo, outros grafismos abstratos não demonstram rendimento quando tratados como imagens realistas, representacionais e passíveis de leitura. Esses demandam análises formais detalhadas, cujo caminho possível é o da apreensão dos movimentos de simetria, dos padrões complexos e dos jogos entre figura e fundo, que atuam como armadilhas da mente.

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Denise Maria Cavalcante Gomes

Denise Cavalcanti Gomes é Professora Associado II do Departamento de Antropologia, Museu Nacional - Universidade Federal do Rio de Janeiro. É chefe do Departamento de Antropologia, Vice-coordenadora do PPGArq - Programa de Pós-Graduação em Arqueologia do Museu Nacional - UFRJ e Vice-Curadora das Coleções Arqueológicas do Museu Nacional.