Literatura

Desejo e alteridade em Morte em Veneza

por Bárbara Buril

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A problemática do desejo se desenvolve na novela Morte em Veneza, do escritor  alemão Thomas Mann, através de uma abordagem sobre aquilo que um outro sujeito, tão diferente de quem somos, nos põe em questão. Inversamente, é justamente através daquilo que nos oferece o estrangeiro — com os seus traços físicos distintos, os seus gestos peculiares e a sua fala (ou o seu silêncio) incompreensível — que surge o movimento do desejo. Nesta novela, publicada em 1912 sob o título Der Tod in Venedig, é interessante perceber como o movimento entre eu e outro é evidenciado apenas para fazer a narrativa acontecer. Mais especificamente, para levar o personagem principal desta novela, o escritor Gustav Aschenbach, a buscar aquilo que é diferente de si mesmo. A diferença, que provoca o movimento desta história, também causa mudança na forma do desejo. Isto porque, na narrativa, Aschenbach se depara com um outro modo de ser sujeito, mais suscetível a uma experiência da sensibilidade que se distancia daquilo que Mann interpreta como um certo ascetismo caracteristicamente europeu.

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Thomas Mann

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O início da narrativa já é marcado pela presença de um estrangeiro que muda o rumo normal da vida de Aschenbach. Em uma caminhada por Föhring, subúrbio de Munique, o escritor se depara com a visão de um homem diferente, que o faz sair de suas divagações habituais. Na frente de uma capela, está ele: de estatura média, magro, sem barba, nariz arrebitado, de tipo avermelhado, pele branca e com sardas. Para Aschenbach, não se trataria de um bávaro, pois o chapéu que portava lhe dava um ar estrangeiro, de alguém que viria de um país estranho. No entanto, a mochila de montanha que carregava nas costas era exatamente do tipo que se via na Baviera. A sua atitude, por outro lado, como narra Mann (2015, p. 10), provocava a impressão — para a qual talvez contribuísse a posição alta e altiva do homem — de uma atitude sobranceira, atrevida e mesmo feroz”. Trata-se de um encontro com o estrangeiro, o primeiro da novela. Ambos se confrontam. Aschenbach o examina, de um modo meio distraído, meio inquisidor, e acredita talvez ter sido até um pouco indiscreto com este olhar. O estrangeiro, por outro lado, percebe que foi visto e o fixa de modo agressivo, como se o estivesse provocando. Aschenbach percebe a agressividade manifestada pelo outro e, desagradavelmente tocado, passa a caminhar rapidamente de modo a não olhar mais para o homem.

Este encontro de Aschenbach com um estrangeiro, ironicamente marcado pela ausência de diálogos, o transforma profundamente. Isto porque a visão do estrangeiro o leva a entrar em contato com outros modos de desejar. O que é interessante perceber neste encontro é que, como defende Staszak (2008), o caráter estrangeiro do outro reside mais na visão de quem produz este exotismo do que propriamente neste outro com quem se depara. Como escreve Staszak sobre o exotismo (2008, p. 8):

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O exotismo não é, desse modo, nunca um fato nem uma característica de um objeto: ele não é mais do que um ponto de vista, um discurso, um conjunto de valores e de representações sobre qualquer coisa, qualquer lugar ou qualquer pessoa. Falar de exotismo é menos analisar um objeto do que o discurso de um sujeito em seu lugar.

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Esta cena é interessante porque o homem com o qual Aschenbach se confronta não guarda, na sua pele, tampouco nas suas vestes, algo de propriamente estrangeiro. Ele não tem a pele escura ou usa roupas exóticas, por exemplo. Ele apenas parece estrangeiro. Não sabemos se ele, de fato, o é, ou se houve aqui uma produção subjetiva de exotismo a fim de fazer com que o outro parecesse mais outro do que ele, de fato, seria. Indo mais além daquilo que o narrador nos deixa saber, talvez Aschenbach tenha simplesmente produzido uma certa forma de alteridade, como fizeram os colonizadores europeus apresentados por Staszakm, para poderem justificar os seus desejos de sair da normalidade e da rotina. Para concretizarem a vontade de dépaysement.

De todo modo, após a visão deste homem, Aschenbach passa a perceber dentro de si um tipo estranho de alargamento, de inquietude vagabunda, de desejo juvenil”.  Ele passa a perceber um sentimento muito vivo e novo, há muito esquecido ou desaprendido. Este contato com a alteridade (em certo sentido produzida, em outros, não), marcado por um silêncio pleno de significados, leva o escritor a desejar de outra maneira. Ou, quiçá, a desejar, visto que até então a sua vida era restrita a uma rotina rigorosa de produção escrita, pouco conectada com os seus desejos mais profundos; mais ligada a um “dever” do que com a um “querer”. A visão do estrangeiro engendra uma outra visão extremamente detalhada do que ele agora passava a desejar:

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Era o desejo de viajar, nada mais, mas que o acossava com a força de um acesso, intensificando-se às raias de uma paixão e mesmo de uma alucinação. E sua ânsia tornava-o vidente. A imaginação, ainda não sossegada depois de tantas horas de labuta, criava para seu uso exemplos de todos os prodígios e terrores da Terra multiforme, no afã de visualizá-los em sua totalidade. Ele via, via realmente uma paisagem, pantanosa região tropical, sob um céu brumoso, pesado, paisagem úmida, exuberante, monstruosa, espécie de selva primordial, entrecortada por cursos d’água a formarem ilhas, lodaçais, nesgas barrentas; via como, em meio a luxuriantes fetos, se elevavam aqui e acolá cabeludos troncos de palmeiras, brotando de solos cobertos de uma vegetação farta, túmida, esdruxulamente florida [ . . . ] (MANN, 2015, p. 12).

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Esta visão, marcada pela imagem de árvores deformadas, de flores boiando no mar, de pássaros exóticos e de tigres e bambus fazia com que o seu coração batesse mais forte, por conta do horror e do caráter enigmático do desejo. Tratava-se de uma grande mudança na forma de seu desejo, porque, até então, Aschenbach considerava as viagens como um processo de higiene sob o qual era preciso passar, mas não como um lazer a ser vivido por um diletante; viajar simplesmente para se nutrir do mundo das aparências — esta era a novidade. E aqui é interessante perceber o modo como Mann diferencia a identidade europeia de outras formas de identidade no que concerne a esta espécie de dialética de experimentar o prazer, mas também de honrar com os deveres. Até então, Aschenbach considerava as viagens como uma forma de “limpeza” necessária porque sempre foi, como escreve,

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por demais absorvido pelos problemas que lhe impunham o próprio eu e a alma europeia, excessivamente amarrado pelo dever de produzir e ainda demasiado avesso a quaisquer distrações para ser capaz de amar o colorido mundo exterior (idem, p. 25).

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Ou seja, a sua visão de viagem sempre foi extremamente restrita à ideia de higiene, e não à noção de prazer diletante, porque sempre foi orientado por uma lógica europeia de obrigação de produzir, de restrição de si, de negação dos prazeres do mundo das aparências.  O desejo de sair da “máquina social” e ser um vagabundo se manifesta após a visão do homem nos campos bávaros. Como escreve Isabelle Eberhardt (1902), “um direito que poucos intelectuais se preocupam em reivindicar é o direito à errância, à vagabundagem”. Como intelectual, ele não se sentia no direito de reivindicar este tipo de direito. A prática da vagabundagem se assemelha, em certo sentido, a uma prática da liberdade. Como escreve Eberhardt (1988, p. 28),

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Ter uma casa, uma família, uma propriedade ou uma função pública, meios de sobrevivência definidos, ser, enfim, uma engrenagem apreciável da máquina social,  todas as coisas que parecem necessárias, indispensáveis quase, à imensa maioria dos homens, mesmo aos intelectuais, mesmo àqueles que se consideram os mais livres da nossa sociedade. No entanto, tudo isso não é mais do que uma forma diferente de escravidão que molda o nosso contato com os nossos semelhantes, sobretudo um contato regrado e contínuo.

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Isabelle Eberhardt

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Até então, Aschenbach se contentava com a ideia de que cada um poderia conhecer a superfície do globo sem se mexer de seu lugar. Por isso, por exemplo, nunca teve sequer o desejo de sair do continente. O ethos europeu parece se revelar aqui como marcado por um certo provincianismo, por um desinteresse pelo que ultrapassa a sua fronteira cultural muito bem definida. Isto porque sair da Europa e desfrutar do mundo que ultrapassa as suas fronteiras significaria também ceder aos prazeres, ao desejo, a uma lógica não-ascética de usufruto da vida. Ser europeu parece significar aqui a renúncia a uma existência sensível.

A cultura ocidental, profundamente influenciada por ideais gregos, permeia toda a novela. Mann utiliza-se de uma série de elementos da mitologia grega e da Grécia Antiga para refletir sobre beleza, amor pederasta e paixões. Mas também para aludir à experiência de afeto estabelecida entre Aschenbach e Tadzio, o jovem polonês por quem o escritor vai se apaixonar, e à mudança radical por que vai passar. A imagem do homem estrangeiro nos campos alemães o faz se conectar com Dionísio, o deus grego da uva e do vinho, mas também da desmesura e da despossessão. Até então, como homem europeu preso à sua rotina, aos seus hábitos e às suas regras, ele se conectava com a medida, a lógica e a razão de Apolo. Mann não estabelece uma relação taxativa entre ser europeu e, logo, ser guiado por Apolo (ou ser estrangeiro e, assim, inspirar-se em Dionísio), mas é possível identificar este tipo de analogia sutil no decorrer da narrativa. Por exemplo, como escreve Mann, Aschenbach teria se constituído a partir do encontro de sua mãe, filha de um pastor tcheco, com o seu pai, alemão. Deste, ele teria herdado “uma consciência profissional prosaica” (MANN, 2015, p. 20), enquanto, de sua mãe, ele teria herdado a desordem e os ardores impulsivos. A sua mãe, cujos antepassados são tchecos, teria introduzido na família “enigmáticos impulsos fogosos (ibidem). Ser estrangeiro, portanto, é ser sensual, impulsivo, desordenado e mais vivo. Ser nacional é ter disciplina. “Precisava de disciplina em alto grau, e felizmente herdara-a por parte do pai”(idem, p. 23).

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Apollo Citharoedus, no Musei Capitolini (Wikimedia Commons)

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O triunfo de Baco, Velázquez, c. 1629

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Como narra Mann, teria sido este encontro do seu pai (austero, regrado e nacional) com a sua mãe (indolente, impulsiva e de origens estrangeiras) que constituiu Aschenbach. Isto porque ser artista — ser um escritor — para Mann significa estar orientado por um tipo de serenidade apolínea. Ao mesmo tempo, é preciso que o artista também padeça de alguma paixão dionisíaca para ser artista, mas em pouca dose. Como vemos no decorrer da novela, foi justamente o excesso de Dionísio que fez o edifício literário apolíneo de Aschenbach, reconhecido nacionalmente, simplesmente sucumbir. Parece que Mann revela aqui uma visão própria sobre os modos como Apolo e Dionísio deveriam orientar os grandes artistas: é preciso que o artista seja regrado e disciplinado, mas que sofra de algum tipo de perturbação (mínima) para ter sobre o que trabalhar. No entanto, quando reféns de energias dionisíacas, os artistas simplesmente não poderiam produzir e criar o seu trabalho. De todo modo, o próprio trabalho criativo de Aschenbach denunciaria como ele sempre esteve guiado por Apolo: “percebiam-se na sua produção aquela pureza distinta, a singeleza e a harmonia da forma que imprimiam nela o cunho conspícuo e proposital de maestria e classicismo” (idem, p. 31).

Assim, foi por conta da aparição do estrangeiro em meio aos campos na Bavária que Aschenbach tomou a decisão de sair de sua rígida rotina em direção a outro lugar, que fosse exótico, mas de fácil acesso. Primeiramente, ele vai para uma ilha no Adriático, perto da costa de Ístria, em moda na época. Lá, ele é tomado pela inquietude de ir para outro lugar. Nesta ilha, encontrava-se uma população de camponeses que falava um dialeto incompreensível. Havia belas falésias à beira do mar, mas chovia e o ar estava pesado. O hotel estava povoado pela pequena burguesia austríaca, muito fechada aos estrangeiros. Além disso, a costa marítima não tinha espaços de acesso a praias de areia mole para que o visitante estabelecesse intimidade com o mar. Ou seja, a primeira tentativa de viagem de Aschenbach é marcada por uma espécie de “topofobia”. A falta de conexão com os outros hóspedes do hotel, demasiado ensimesmados, e a inacessibilidade do mar o levaram a simplesmente querer escapar deste lugar. Ele desejava ir embora, mesmo sem saber para onde. Sem se perguntar muito sobre para qual lugar deveria, de fato, ir, ele parte da ilha em direção a Veneza. A sua ida para Veneza não parece brotar de um desejo muito consciente de visitar a cidade, mas de um movimento um pouco natural — quiçá inconsciente[*] — de seguir para esta cidade.

No navio, Aschenbach se depara com uma figura apenas aparentemente secundária nesta narrativa: um belo senhor, que não tem seu nome revelado na narrativa, mas que causa uma série de repulsas no escritor bávaro, por estar ele entre homens jovens, e como se assim o fosse. Este senhor, que usava peruca, dentes falsos e que recorria a uma série de outras artimanhas para parecer ter uma idade diferente daquela que possuía, usufruía de bons momentos com um grupo de jovens rapazes. Aschenbach sente repulsa diante daquela figura, e inclusive alguma espécie de ressentimento. Diante da imagem deste senhor em meio a um grupo de jovens rapazes, Aschenbach se pergunta: “[N]ão notavam os rapazes que o companheiro era velho, que usava impropriamente as mesmas roupas ajanotadas, de cores berrantes, que eles mesmos trajavam, e que não tinha o direito de passar por um do seu grupo?” (idem, p. 41-42).

O que é interessante perceber nesta reação de repulsa a uma figura que, na realidade, sequer chegou a lhe solicitar a atenção, é que ela não resulta de um estranhamento àquilo que é diferente de si, mas justamente de uma identificação profunda com aquilo que se deseja ser, mas não se é (não ainda). O contato de Aschenbach com o possível estrangeiro nos campos da Bavária foi permeado por uma troca hostil de olhares — no caso do escritor, causada por uma espécie de curiosidade e por um descuido típico de quem não se percebe indiscreto. Neste caso, a hostilidade parece surgir da experiência de uma diferença radical posta pelo outro. Aqui, o outro provoca a curiosidade e o olhar que pode, por sua falta de discrição, ser hostil. Assim, o incômodo, nesse caso, manifesta-se com o surgimento de uma alteridade que se revela como completamente “outra”, diferente de si. Por outro lado, no caso do belo senhor disfarçado entre jovens rapazes, a hostilidade de Aschenbach está ligada a uma profunda identificação com o senhor. Este homem, que finge a sua juventude através de uma série de recursos cosméticos, se diverte (está, por assim dizer, “sob as ordens de Dionísio”) entre jovens rapazes.

Como é possível ver no decorrer da narrativa, a paixão de Aschenbach por Tadzio, o jovem polonês de apenas 14 anos, também o faz recorrer a estes recursos cosméticos no salão de beleza do Hotel des Bains, na ilha de Lido, Veneza: ele decide pintar o cabelo para ocultar os fios brancos, mas também resolve arquear as sobrancelhas e ajustar cada detalhe do seu rosto para parecer mais jovem do que é. De certa maneira, a imagem do belo senhor entre homens jovens, que lhe provoca profundo incômodo, cumpre, na narrativa, uma certa função de antecipação do que veremos mais à frente. Mas, mais ainda, esta cena do senhor entre jovens em momentos de prazer compartilhado o incomoda tanto porque ela parece brotar do fundo do seu desejo. Ele quer ser este homem velho que é autorizado, pelos jovens, a ter prazer com eles.

Afinal, Morte em Veneza é uma história de paixão pederasta. E uma paixão que se mistura com o desejo de se desterrar. Já em Veneza, Aschenbach se apaixona por Tadzio. No decorrer da narrativa, eles não trocam qualquer palavra e toda a obsessão do escritor pelo jovem rapaz se desenvolve apenas a partir de troca de olhares. É interessante perceber que a paixão de Aschenbach por Tadzio está profundamente inspirada por sua redescoberta de Veneza. Ao avistar a cidade do navio, antes de aterrissar de fato, ele se dá conta de que está descobrindo uma cidade diferente daquela com a qual se deparou quando chegou por terra. Como escreve Mann na voz de uma narrador bastante consciente daquilo que se passa no interior de seu personagem principal, ao avistar Veneza do mar, Aschenbach “examinava o seu coração austero, fatigado, para saber se novos entusiasmos e perturbações, tardias aventuras sentimentais, talvez aguardassem o turista ocioso” (idem, p. 45). Estabelece-se aqui, então, uma associação entre a paisagem que se aproxima — externa, objetiva — e os seus anseios subjetivos mais profundos — uma paixão, ainda que tardia. A busca por uma terra estranha também se revela como uma procura por aquilo que é estranho ao escritor: a paixão. Viajar, nesse sentido, é algo que se faz não simplesmente para descobrir um lugar desconhecido, até porque Aschenbach já tinha visitado Veneza anteriormente, mas para experimentar sentimentos desconhecidos ou, ao menos, distantes. Como é possível observar no decorrer da narrativa, a ida a Veneza é, em vez de uma busca pelo descobrimento de um espaço geográfico ainda desconhecido (como faria um turista simplesmente interessado em acumular destinos), uma procura por novos afetos, por uma certa experiência de despossessão dionisíaca que a paixão tão particularmente oferece, por um festival báquico que se apresenta em um de seus sonhos no hotel. A viagem a Veneza é, na verdade, um movimento em direção à vivacidade, à insolência, ao usufruto do mundo e de suas aparências.

No que concerne à experiência do espaço geográfico, Veneza se revela como plena de repulsas e encantos. Quando está em uma gôndola veneziana, por exemplo, Aschenbach sente estranhamento diante de uma embarcação que mais parece um caixão.

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Esses barcos tão caracteristicamente negros como são, entre todos os objetos do mundo, apenas os caixões — eles provocam em nós a associação a aventuras clandestinas e perversas nas águas noturnas, e ainda mais à própria morte, a féretros, a sombrios enterros, ao silêncio da última viagem. (idem, p. 50).

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The Grand Canal in Venice, Manet, 1875

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Não é a primeira vez que o escritor se aventura em uma gôndola veneziana, mas é a primeira desde muito tempo. Por outro lado, o espetáculo da praia na ilha de Lido o encanta. “A paisagem da praia, esse panorama de despreocupada cultura, que, à margem do elemento, se entrega aos prazeres dos sentidos, distraía-o e deliciava-o como sempre(idem, p. 71). Veneza em si, como espaço geográfico, não é unânime em sua beleza, nem em seus defeitos. Não é o lugar idealizado que é finalmente encontrado ou o espaço destituído de seu caráter ideal após ser visto em sua forma saturada de realidade. Veneza, em si mesma, não é o centro desta narrativa, tampouco o centro do desejo de Aschenbach.

No entanto, em determinado momento da novela, o escritor é atravessado pelo desejo de ir embora de Veneza, em uma espécie de antecipação daquilo que viria posteriormente: a cólera asiática, que se espalhará pela cidade. Enquanto caminhava pela cidade, Aschenbach passa a sentir falta de ar, febre e tontura, além de perceber que os odores dos canais impediam a sua respiração. De volta ao hotel, antes mesmo de jantar, ele decide ir embora, pede a nota no hotel e começa a organizar os seus pertences para ir a outro lugar. Mais uma vez, aqui parece estar ocorrendo uma antecipação inconsciente do que virá depois — a doença —, mas também uma espécie de negação daquilo que o escritor já sabe sentir — a paixão pederasta. Uma série de acontecimentos pouco relevantes, na verdade, o faz desistir de partir. Ele atribui grande importância a eles, mais do que eles de fato têm, isto para justificar a sua mudança de ideia de não mais partir. A sua intuição de que talvez a temperatura da cidade não lhe fizesse bem o levou a querer partir, no entanto a sua paixão por Tadzio, que se torna mais consciente no momento em que se vê prestes a partir, lhe leva a mudar de planos. No decorrer da novela, estabelece-se este conflito entre ficar e partir, sendo o primeiro motivado por Dionísio, afinal Tadzio tampouco abandona Lido, e o segundo por Apolo. É preciso ir, porque a doença está por todos os lugares, mas não é possível ir quando o seu objeto do desejo está neste lugar. Para Aschenbach, Veneza pouco importa. Quem lhe importa, Tadzio, apenas está em Veneza, e talvez por um acaso. Quando circula por Veneza, Aschenbach está a procura, na verdade, dos olhares de Tadzio. Ele não vai a Veneza para apreciá-la, mas para seguir, de maneira obcecada, o corpo da pessoa amada.

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Punta della Dogana in Venice, Canaletto, c. 1724-30

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Nota:

[*] Em Morte em Veneza, há um certo pressuposto de que o inconsciente existe, como vemos nos sonhos de Aschenbach, repletos de significados e ressonâncias na vida real, assim como nas suas ações, que nem sempre resultam de um fundo interno consciente, mas de um lugar mais opaco e obscuro como é o caso do inconsciente. Não é por acaso, no entanto. Mann, que assistiu ao nascimento da psicanálise, sempre se interessou pelo trabalho de Freud. Muitas das reflexões desenvolvidas pelo pai da psicanálise ganham exemplificação em Morte em Veneza. Cf. Mann (1959).

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Referências

EBERHARDT, Isabelle. Écrits sur le sable. Œuvres complètes. Tome 1. Paris: Grasset, 1988.

MANN, Thomas. Morte em Veneza. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

______. “Freud and the Future”. Daedalus, Myth and Mythmaking. v. 88, n. 2,  p. 374-378, 1959.

STASZAK, Jean-Franc?ois. “Qu’est-ce que l’exotisme?”. Le Globe. Revue genevoise de ge?ographie. Genebra, tomo 148, p. 7-30, 2008.

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Bárbara Buril

Bárbara Buril é doutoranda em Filosofia pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). É pesquisadora-visitante na Universidade de Lucerna (Suíça), com a Bolsa de Excelência do Governo Suíço para Pesquisadores Estrangeiros (Eskas). É mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e graduada em Comunicação Social/Jornalismo pela mesma universidade. e-mail: baiburil@gmail.com.