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Disfarces pueris: a sensualidade dissimulada em “O Balanço” de Fragonard

por Laura Ferrazza

Vivemos hoje um tempo em que o erotismo e a sensualidade estão, muitas vezes, tão explícitos que parecem mesmo cansativos ou esvaziados de sentido. Cada época confere aos jogos amorosos e à sexualidade suas marcas próprias, suas formas peculiares. No século XVIII francês, a dissimulação da conquista às vezes se disfarça em meio a brincadeiras aparentemente inocentes, como o jogo da cabra-cega ou as ondulações de um balanço. A pintura da época, que procurava retratar os mais variados tipos de diversão e jogos amorosos, também dedicou-se a retratar essas brincadeiras aparentemente pueris. 

Entre os quadros que trataram do tema, talvez o mais conhecido seja “O Balanço” (1767), pintado por Jean Honoré Fragonard (1732 – 1806). A imagem de uma jovem no balanço já fora retratada várias vezes e formava uma longa tradição artística.  Fragonard abordou o tema de forma magistral, mesclando uma técnica ousada de pinceladas fluídas com uma intrincada montagem de cena: de forma aparentemente casual, comanda as ações de personagens que mais parecem saídos de uma peça de Marivaux. O título original em francês é revelador: Les hasards heureux de l’escarpolette, que poderia ser traduzido como: “os felizes acasos do balanço”.

O quadro tem uma biografia interessante. No ano de 1767, o arrecadador de impostos do clero, Barão Saint-Julien, procurou um artista para pintar um quadro cujas minúcias ele mesmo havia idealizado. A primeira opção de Saint-Julien foi o pintor Doyen, que se sentiu ofendido pela frivolidade do tema proposto e logo o recusou. Fragonard, ao contrário, aceitou a encomenda com grande satisfação. Um documento que sobreviveu registra o pedido do autor da encomenda: “Desejaria que você pintasse minha Senhora” – assim ele designava sua amada – “em um balanço empurrado por um bispo. Eu me situarei de maneira que esteja ao alcance das pernas dessa bela mocinha e será ainda melhor se você quiser alegrar um pouco mais o quadro”.

Desse registro, podemos depreender vários motivos, que deveriam aparecer no quadro, mas que talvez o façam de forma velada. Conseguimos também vislumbrar até onde alçou-se a imaginação do pintor, que imprime ao desejo de seu cliente seu toque pessoal, reproduzindo alguns códigos sociais que hoje nos escapam. 

De que maneira Fragornard nos apresenta a cena encomendada por Saint-Julien?  Em meio a uma paisagem luxuriante de árvores diáfanas, vemos uma mulher banhada por uma iluminação intensa, que voa no ar sentada em um balanço. As cores e as formas de seu traje destacam-se entre os verdes acastanhados da paisagem em torno. A seus pés, está um jovem rapaz, em pose tão teatral como a da moça.  Nas sombras ao fundo, um senhor manipula as cordas do balanço. No jardim, algumas estátuas de “puttis” ou amorzinhos evocam as divindades do cortejo de Vênus, a deusa do amor, reforçando o apelo erótico da cena. 

A ação se desenrola com ares de espetáculo ao ar livre, num jardim cujas ramagens são demasiado irreais. A luz incide como um holofote, tanto no centro da cena, onde estão a moça e o balanço, como no rosto do jovem abaixado. Além disso, os corpos apresentam uma composição física que os assemelha um pouco às figuras das pequenas esculturas em porcelana, grande sucesso da época. O imobilismo é rompido pelas torções corporais e movimentos diáfanos das vestes. 

A dama no balanço era a amante do Barão de Saint-Julien. Ninguém pensaria em colocar uma legítima esposa numa cena repleta de conotação sexual. A personagem central é descrita como uma “bela mocinha”, fato comprovado pela figura do quadro. Seu amado está mesmo na altura de suas pernas, mas todo o movimento do balanço, que faz ondular as saias e as anáguas, deixa expostas para nós, observadores, suas meias e seus sapatos. Esses últimos tinham forte apelo erótico no período: os saltos altos e os bicos finos, que emergiam das saias levemente levantadas, eram muito sugestivos. É preciso pensar que, na posição em que se encontra Julien, algo mais pode ser visto, uma vez que nessa época não se usava nenhum tipo de calcinha ou calçola. Logo, nesse voo aparentemente lúdico e inocente, a coquete revela para o amante a visão de sua mais profunda intimidade. 

A satisfação amorosa da jovem não se expressa em sua face, que mantém a desejada aparência de indiferença, própria do período. Suas emoções e sensações podem ser notadas no pezinho em ponta que deixa voar o sapatinho estilo “mulle”, e também na mão que solta a corda do balanço e faz uma intrincada posição com os dedos, e no olhar apaixonado que ela lança ao amado. Além disso, ouso dizer que a convulsão desordenada de seu vestido, que nos revela camadas, rendas, babados e a leveza do tecido, age também nesse jogo amoroso. O rosto do amante aos seus pés é menos sutil, suas faces parecem afogueadas, ante o vislumbre das partes íntimas de sua amada; a boca entreaberta denuncia sua satisfação diante do que vê. O artista destaca a expressão do homem iluminando seu rosto de maneira semelhante à que anteriormente se reservava aos santos, face a uma visão celestial. Contudo, o que o personagem de Fragonard antevê é o prenúncio de prazeres puramente terrenos.

Notemos ainda o homem ao fundo da cena. Ele não está usando vestes religiosas de um bispo, como havia solicitado o autor da encomenda. O artista preferiu transformar o suposto bispo em uma figura alusiva a certos personagens descritos em romances libertinos do período: o marido complacente com as traições da esposa, muito mais jovem que ele. Dessa maneira, o quadro evoca um triângulo amoroso. O sapatinho que a dama deixa escapar reforçaria seu consentimento amoroso para com o amante postado aos seus pés. É preciso lembrar que no instante seguinte ao momento apreendido pelo artista, o marido puxará novamente as cordas do balanço e a dama seguirá equilibrando-se entre um e outro. 

O equilíbrio é evocado por Fragonard, a fim de contornar os perigos dos ardis românticos. A ação é óbvia, mas as intenções estão disfarçadas de acaso. O jovem galante parece ter tropeçado e caído no arbusto aos pés de uma estátua que, por acaso, evoca os deuses do Amor. É também por acidente que seu olhar se ergue e ele vislumbra o que há por baixo das saias esvoaçantes da jovem encantadora do balanço. A maneira como a ação acontece nos revela o jogo coquete entre voyeurismo e exibicionismo, entre a sugestão e a ação, numa sensualidade que surge como que ao acaso – e talvez tenha sido exatamente isso o que tornou a cena imortal. 

Laura Ferrazza

Laura Ferrazza é Doutora em História da Arte e História da Moda (PUCRS/Sorbonne). Professora/pesquisadora autônoma, ministra cursos livres.