LiteraturaPoesia

O Divã de Goethe

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“Admite! Os poetas do Oriente são maiores que os do Ocidente”: O Divã de Goethe

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por Marcus Mazzari

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O Goethe de Tischbein, 1786

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A contrapelo da sombria situação em que o Brasil se encontra, a obra de Goethe vem gozando de crescente interesse, sendo que nesse boom o ano de 2020 registra um expressivo marco: a primeira tradução integral em língua portuguesa do mais extenso ciclo lírico goethiano, publicado originalmente em 1819 (oito anos depois surgiria uma edição ampliada). Assinada por Daniel Martineschen (Estação Liberdade), a tradução traz um título — Divã ocidento-oriental — que de imediato pode causar certa estranheza com o adjetivo “ocidento”, não consignado nos dicionários de língua portuguesa, recentes ou mais antigos, como o Bluteau ou o Morais.

Esse eventual estranhamento talvez desperte no leitor a impressão de que ele está prestes a entrar numa oficina tradutória experimental e vanguardista, próxima às concepções, para citar um grande nome, de Haroldo de Campos, que assenta todo seu trabalho de “transcriador” sobre o pilar de uma “operação paronomástica generalizada, de Jakobson, centrada no princípio de equivalência da função poética”. Mas já a leitura dos poemas do primeiro dos 12 livros em versos que compõem o volume ocidental-oriental — o “Livro do cantor”: Moganni Nameh, na designação persa igualmente empregada por Goethe para cada livro — não confirma tal impressão e, chegando ao “Posfácio” de Martineschen, o leitor ficará sabendo que o tradutor encontrou “auxílio” antes na tradução do Fausto realizada por Jenny Klabin Segall ao longo de três décadas.

No geral, são sóbrios os recursos mobilizados pelo tradutor para transpor os poemas goethianos ao português, começando pelo empenho em reproduzir com rigor e fidelidade o esquema métrico, rímico e estrófico do original. Via de regra, procurou-se reproduzir o verso de quatro acentos e em ritmo trocaico — sucessão de acentos fortes e fracos — por meio da redondilha maior (sete sílabas), enquanto que os versos de três acentos foram transpostos com as cinco sílabas da redondilha menor. Aparentemente ocorreria assim a subtração sistemática, em relação ao original, de uma sílaba, mas ao se valer com frequência de sinalefas e elisões, Martineschen ganha a possibilidade de corresponder adequadamente à estrutura métrica dos versos goethianos. Em si essa dilatação do número de sílabas pode não constituir propriamente uma vantagem no âmbito do gênero lírico, que se distingue pela condensação. No entanto, Martineschen conquistou desse modo uma maior flexibilidade para a transposição do “sentido” presente nos poemas em que o poeta “ocidental” dialoga com seus colegas “orientais”, sobretudo o seu “gêmeo” persa do século XIV Hafez, conforme se formula na terceira estrofe do poema “Ilimitado”, com seu ritmo predominantemente trocaico de quatro acentos no original, e que na tradução oscila entre sete e (com a duplicação de “contigo”) nove sílabas poéticas: “E pode o mundo se afundar, / Hafez, contigo, contigo apenas / disputarei! Prazer e penas / sejam a nós, gêmeos, plenas! / Como tu beber e amar / será o orgulho, a minha sina!”

Se o intertexto levantino de Goethe — “Admite! Os poetas do Oriente / são maiores que os do Ocidente”, lemos no “Livro dos provérbios” — já estava muito distante do leitor alemão das primeiras décadas do século XIX, tanto mais remoto ele se encontra em relação ao leitor brasileiro contemporâneo e, nesse sentido, lhe seriam muito bem-vindas notas breves e objetivas que elucidassem alusões e referências de que os poemas são pródigos. É certo que o próprio poeta pospôs ao seu ciclo lírico um 13º livro em prosa (“Notas e ensaios para melhor compreensão” do Divã”) justamente para facilitar a orientação do leitor nesse diálogo poético que se estende por cinco séculos; contudo, mesmo assim o leitor terá de pesquisar por conta própria a fim de captar em níveis mais profundos o sentido de certos poemas, e isso não apenas no tocante a conceitos e elementos do mundo islâmico, como se manifestam em dois poemas intitulados “Fátua”, mas por vezes também em relação à cultura ocidental. Por exemplo, quando Goethe, criticando a hipocrisia religiosa (tão atuante entre nós), delineia um paralelo entre as adversidades impostas a Hafez e Ulrich Hutten por “hábitos marrons e azuis”, na metonímia original, traduzida de maneira explicativa por “monges cristãos e muçulmanos”. (Uma elucidação concisa sobre Ulrich Hutten, humanista alemão que viveu entre 1488 e 1523, seria certamente bastante útil ao leitor brasileiro nesse poema.)

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O Hafis-Goethe-Denkmal na Beethovenplatz, Weimar

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“Anelo abençoado” e “Gingo biloba”

Divã é um substantivo de origem persa (d?w?n) e significa, em sentido literário, “ciclo” ou “coletânea”. De certo modo, esse extenso conjunto de poemas inspirados em Hafez e outros poetas persas e árabes, pode ser visto como pendant “oriental” às Elegias romanas, escritas após a viagem italiana entre setembro de 1786 e abril de 1788 e publicadas integralmente apenas em 1914. Entre os poemas mais conhecidos do Divã está Selige Sehnsucht, título que o tradutor Manuel Bandeira condensou numa única palavra: “Anelo”. Martineschen o traduz por “Anelo abençoado”, enquanto a versão do português Paulo Quintela traz “Nostalgia de bem-aventurança”. (“Nostalgia” é também a opção do famoso tradutor espanhol Rafael Cansinos Assens: “Dichosa nostalgia”.)

Há ainda outras traduções desse poema para o português, mas não será demérito para nenhuma delas, incluindo-se a de Martineschen, afirmar que o autor do “Gazal em louvor de Hafiz”, um dos poemas mais musicais de toda a lírica brasileira, colocou-se num patamar incomparável ao dar aos heptassílabos de seu “Anelo” o ritmo melífluo, sem tropeço algum, que pode ser exemplificado com a última das cinco estrofes: “‘Morre e transmuda-te’: enquanto / Não cumpres esse destino, / És sobre a terra sombria / Qual sombrio peregrino”. A tradução de Martineschen reproduz fielmente, ao contrário da bandeiriana, a duplicação do pronome demonstrativo (“isto”) presente no original sob a forma de das e dieses, mas perde a correspondência entre “hóspede turvo” e “terra sombria”, mediante a qual os termos se reiteram e intensificam: “Se isto não te habita, / isto: morre e te transforma! / Não passas de visita / Na terra sem forma”. Já Quintela preserva a correspondência (“conviva turvo” e “trevas”, uma vez que transforma em substantivo o adjetivo goethiano que qualifica “terra”), mas conferindo um peso excessivo ao fecho do poema com o conceito “terra-mãe”: “E enquanto não entenderes / Isto: — Morre e devém! —, / Serás só turvo conviva / Nas trevas da terra-mãe”.

Outro célebre poema do Divã foi inspirado por um Oriente ainda mais remoto do que as terras de Chiraz ou Samarcanda: “Gingo biloba”, título que alude à folha bilobada da árvore Ginkgo (por razões sonoras Goethe omitiu o “k” na terceira versão do poema), originária da China e do Japão. Como em “Anelo”, a mensagem desse poema do “Livro de Zuleica”, nada dizendo ao “vulgo”, está destinada a edificar os “sábios”. Martineschen traduz exemplarmente em redondilhas maiores, valendo-se de sinalefas, mas também de hiato no quarto verso, o ritmo alemão trocaico de quatro acentos:

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Folha de árvore do Oriente

que no meu jardim se faz,

dá-me a ver sentido ausente

que aos sábios só apraz.

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Será apenas um vivo ser?

Que de si em si se parte,

serão dois? que, no colher,

dão em um sem que se aparte?

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Pra atender a tais questões

alcancei um senso azado;

não vês tu nestas canções

que sou Um e duplicado?

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Na primeira estrofe temos a apresentação da “folha” da árvore que, do Oriente, foi transplantada ao jardim do poeta, sugerindo-se uma correlação com a “folha” de papel que, contendo a terceira versão de “Gingo biloba”, integrou-se ao “florilégio” ocidental-oriental — ou “antologia”, para usar esse substantivo com conotações botânicas, já que oriundo do grego anthos, “flor”.

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Ginkgo Biloba

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Nas duas estrofes seguintes acumulam-se interrogações sobre a natureza da folha e a identidade do poeta, tendo por pano de fundo o motivo do duplo e da duplicidade. A folha bipartida parece assomar enquanto metáfora simbólica da simbiose entre os “gêmeos” Goethe e Hafez e, por extensão, entre o Ocidente e o Oriente. Ou entre Goethe e “Hatem”, nome tomado a dois poetas árabes e assumido pelo poeta ocidental para dialogar com Zuleica, por sua vez a máscara persa de Marianne von Willemer, que Goethe encontrou durante uma viagem pela região renana em 1814 e que, entrando com grande virtuosismo no jogo erótico-lírico, contribuiu com algumas “folhas” para o herbário poético publicado em 1819.

Nesse sentido, essa folha que se divide em duas, ou que se formou pela união de duas, simboliza igualmente o enlace lírico de Hatem e Zuleica. As três estrofes de “Gingo biloba” também foram traduzidas por Paulo Quintela, mas em Portugal há ainda a bela versão de João Barrento, reproduzida abaixo para que se possa estabelecer eventual comparação com a tradução de Martineschen:

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Esta folha, que o Oriente

Ao meu jardim confiou,

Dá a provar o secreto

Saber que o sábio formou.

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É um ser vivo que em si

Mesmo em dois se dividiu?

Ou são dois que se elegeram

E o mundo neles um viu?

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Dessas perguntas que fazes

Sentido certo te dou:

Não sentes nos cantos meus

Como eu uno e duplo sou?[1]

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Tipologia da Tradução

A motivação crucial que lançou Goethe à elaboração de seu mais extenso ciclo lírico adveio da intensa leitura, a partir de junho de 1814, do Divã de Hafez, na tradução do diplomata e orientalista austríaco Hammer-Purgstall (1774–1856). O impacto dessa experiência foi tão avassalador que o poeta alemão se viu obrigado a reagir “produtivamente” ao novo mundo descortinado por Hafez, isto é, respondendo aos poemas persas com criações próprias. Do contrário, diz um escrito autobiográfico, “eu não poderia ter-me sustentado diante do poderoso fenômeno”. Em torno da leitura dessa tradução, Goethe catalisa toda sua ocupação anterior com a literatura e a cultura do Oriente, seus conhecimentos prévios de poetas árabes e persas e também o contato com o Antigo Testamento, como o texto “Israel no deserto” que, redigido em maio de 1797, é integrado às “Notas e ensaios”.

Não surpreende que, num dos capítulos dessa parte teórica, Goethe teça considerações sobre um aspecto essencial na constituição da Weltliteratur (Literatura Mundial), conceito que criará poucos anos depois: a tradução. Propõe-se então uma tipologia tripartite da arte tradutória, sendo que o primeiro tipo diz respeito a uma tradução sempre em prosa, nivelando-se todas as peculiaridades do original. O poeta exemplifica com a versão bíblica de Lutero quão valiosa tal tradução por assim dizer homogeneizante pode revelar-se: “Apesar de a prosa eliminar por completo toda idiossincrasia de qualquer arte poética e rebaixar o entusiasmo poético a um mesmo nível, mesmo assim ela presta um grande serviço inicial, pois nos surpreende com o extraordinário do estrangeiro dentro de nosso aconchego nacional e de nosso cotidiano, de modo que, sem que saibamos como, fornece-nos um ânimo mais elevado e verdadeiramente nos edifica. A tradução bíblica de Lutero vai produzir sempre um efeito desses”.

O segundo tipo aparece designado como “paródico”, concebido no puro sentido do termo, ou seja, desenvolvendo-se em “paralelo”. O tradutor se transpõe inteiramente ao horizonte cultural do original, mas ao mesmo tempo apropriando-se do elemento estrangeiro por meio do que lhe é próprio e, assim, exprimindo o estrangeiro através dos recursos de sua língua materna, de sua própria cultura. As valiosas traduções que Wieland fez da obra shakespeariana (enaltecidas no romance Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister) ofereceriam, segundo a argumentação goethiana, a ilustração para essa modalidade de tradução.

O terceiro tipo consiste na tentativa de aproximar a tradução o mais rente possível ao original. Seria essa modalidade de tradução que sofre de início a mais forte resistência, como mostra a recepção, observa Goethe, das transposições que Johann Heinrich Voss (1751–1826) fez das epopeias homéricas; pois ao amoldar-se às particularidades do original, o tradutor fere muitas vezes o gosto de seus contemporâneos, não raro infringindo normas do “idioma de chegada”.

Na perspectiva dessa tipologia, a tradução de Daniel Martineschen se inclinaria para a segunda espécie, a “paródica”. Pois os princípios que nortearam seu trabalho com o Divan goethiano encontram-se, como dito, muito distantes das concepções de um Haroldo de Campos, que não só empurram suas traduções — seja a da Ilíada ou de trechos do Fausto — para o terceiro campo, mas levam-nas ainda a ultrapassá-lo, com a proposta de uma “operação paronomástica generalizada” e a consequente hybris de converter o original em tradução de sua própria “transcriação” — ou “transluciferação mefisto-fáustica”, no caso de Goethe.

Comparado com essa ousada oficina tradutória, o trabalho de Martineschen revela-se bem mais sóbrio: “Meu objetivo foi tentar traduzir o Divã reproduzindo em português o ritmo e a sonoridade da poesia (mesmo que isso soe vago), procurando simplificar soluções e evitar rebuscamento” observa ele no posfácio. Nesta passagem, todavia, o tradutor parece desconsiderar o fato de ter resvalado por termos como leixa-pren ou glamour, sem correspondência no original. Pode-se apontar também, problematizando a afirmação do tradutor de ter procurado “simplificar soluções e evitar rebuscamento”, para a dificuldade de se entender o verso “No olho raia a alba no lenho” (“Livro de Zuleica”): “Tive um sonho — interpreta: / No olho raia a alba no lenho. / Diz poeta, diz profeta: / Que sonho é esse que eu tenho?” No original, é mais fácil para o leitor compreender a sintaxe desse verso em que, literalmente, “a alba resplandecia no olho através da árvore”.

Observe-se ainda que reproduzir “o ritmo e a sonoridade” dos poemas do Divan goethiano — meta almejada pelo tradutor brasileiro — constitui tarefa das mais complexas, que dificilmente terá sido realizada com pleno êxito em qualquer outra tradução dessa coleção lírica. O trabalho de Martineschen destaca-se antes, e de modo admirável, pelo empenho em reproduzir os esquemas métricos e rímicos do original. Mas nesse ponto se infiltra vez ou outra no Divã brasileiro algo que ronda toda tradução empenhada em corresponder com rigor às estruturas formais de obras versificadas, que é o afastamento, em grau maior ou menor, do “sentido” dos versos, abalando-se assim a interação original entre duas dimensões que, na concepção goethiana seriam inseparáveis: “Conteúdo traz a forma consigo. Forma jamais existe sem conteúdo”.

Talvez essa constatação possa ser exemplificada sumariamente com alguns exemplos, começando pelo poema que, embora não tenha sido o primeiro a ser escrito, abre o Divã: “Hégira”, termo que designa a fuga de Maomé de Meca para Medina no ano 622, marcando o início de uma nova era no calendário muçulmano. De início um mero detalhe: “Norte e oeste e sul se espalham”, lê-se no primeiro verso do poema; mas em alemão o verbo é mais forte do que “espalhar”: trata-se de zersplittern (“estilhaçar”, “esfacelar”), com o qual se alude também às profundas rachaduras causadas no mapa geopolítico europeu por Napoleão, o que levou Goethe a empreender sua “Hégira” rumo ao Oriente de Hafez, concebido como pátria da poesia — uma Pasárgada lírica, para aludir à utopia de Bandeira. Fechando a antepenúltima estrofe, os versos “Ó Hafez, sem teus poemas / esta terra tem problemas” revelam-se como solução algo banal, imposta pela necessidade de rima que, resolvida aqui de modo menos feliz (“poemas”–“problemas”), enfraquece a vigorosa condensação que Martineschen havia alcançado nos versos anteriores da estrofe: “Nos rochedos, pela trilha, / com sua mula vai o guia; / às estrelas canta alto — / medo assoma os maus de assalto”.

Enfraquecimento semelhante, e condicionado por exigência rímica, se faz sentir no segundo poema do “Livro de Timur”, o qual, dirigido a Zuleica, prepara o livro subsequente, Sukeika Nameh. Buscando fechar a terceira estrofe em rima com “ímpeto pleno”, o tradutor usa o pouco expressivo “nada sereno”, que pode soar ao leitor como mero preenchimento rímico e métrico do verso, destoando assim da vivacidade poética mantida até então: “um [mundo] que pulsa com ardores / que, em seu ímpeto pleno, / semelha muito aos amores / de bulbul, nada sereno”. No original fala-se, em tradução literal, dos amores do bulbul (os amores entre o rouxinol e a rosa, frequente motivo na poesia persa) e do “canto que excita a alma” (que na tradução decai para o complemento “nada sereno”), isto é, o canto enlevado e lamurioso do pássaro fortemente presente também na lírica ocidental.

E se Goethe abre seu ciclo lírico sugerindo, nos últimos versos de “Hégira”, que as palavras do poeta batem suavemente às portas do paraíso, em “Boa noite” — poema que fecha o Divã — encontramo-nos de fato em pleno paraíso e o poeta suplica então ao anjo Gabriel, que já no poema anterior embalara no sono “os sete adormecidos” de uma lenda cristã e muçulmana, que cuide agora dos “membros do exausto”. O adjetivo substantivado “exausto” se refere ao “poeta”, mas na tradução o leitor encontrará a forma plural: “Gabriel cuide das vidas / dos exaustos, com prazer”.

No final do “Livro de Zuleica”, o mais extenso do ciclo, o leitor da tradução brasileira se deparará com um equívoco, agora não de número, mas de gênero. Atrás de Zuleica (nome que aparece num gazel de Hafez) esconde-se, como observado acima, Marianne von Willemer e o livro que traz seu nome consiste em diálogos amorosos que a bela mulher trava com Hatem, sob cuja figura Goethe teria passado a palavra, na visão de Walter Benjamin, ao “elemento inconstante e selvagem de sua juventude” e dado “à sabedoria de mendigos, bêbados e andarilhos a forma mais elevada que jamais encontraram”.[2]

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Marianne von Willemer

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No diálogo entre Zuleica e Hatem — impregnado de símbolos como o bulbul e o hudhud (poupa eurasiática), pássaros provenientes da poesia de Hafez — nem sempre fica claro quem tomou a palavra. No último poema do “Livro de Zuleica”, por exemplo, não se explicita quem está falando e o mesmo ocorre na sextilha anterior, que a edição brasileira não separa claramente do poema de encerramento, o qual, sem ostentar um título particular, abre-se com o verso “Em mil formas podes te esconder”. Essas “mil formas” aludem aos 99 nomes que a tradição muçulmana atribui a Alá. Martineschen transpõe para sua versão a monorrima presente nos versos pares do poema assim como outros detalhes do esquema rímico goethiano; contudo, ao leitor brasileiro fica a impressão de que é a mulher que se dirige ao amado, quando se trata do contrário, conforme indiciam os epítetos femininos que, na tradução, aparecem incorretamente como masculinos: Oniamado, Onipresente, Onilisonjeiro e mais sete do tipo, até chegar na derradeira estrofe: “O que sei com senso externo, interno, / tu Oni-instrutor [no original: Allbelehrende, a que tudo ensina, Oni-instrutora] conheço por meio de ti; / e quando os nomes de Alá, cem, externo, / em cada um ressoa um nome de ti”.

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Globalização e Literatura Mundial

De todo modo, soluções mais discutíveis ou mesmo eventuais equívocos que possam ser apontados neste Divã ocidento-oriental (facilmente sanáveis para uma próxima edição) em nada diminuem os méritos de uma tradução a que o próprio Goethe não deixaria de prestar reconhecimento. Numa carta que enviou em janeiro de 1828 a Thomas Carlyle, que quatro anos antes publicara sua tradução dos Anos de aprendizado de Wilhelm Meister, o poeta lança mão do vocabulário do comércio, que ele via em processo de crescente globalização, para valorizar o papel do tradutor na constituição de uma literatura também cada vez mais globalizada, a que ele chamou Weltliteratur. Pois apesar de suas insuficiências intrínsecas, a tradução é vista por Goethe como “um dos negócios mais importantes e dignos na movimentação geral do mundo”. E em seguida, o epistológrafo recorre ao mesmo campo metafórico que nos anos anteriores havia impregnado seu Divã: “O Alcorão diz: ‘Deus deu a todo povo um profeta em sua própria língua’. Assim todo tradutor é um profeta para seu povo”.

Disponibilizando ao leitor brasileiro a primeira tradução integral em língua portuguesa do intenso diálogo poético do autor do Fausto com a tradição persa e árabe, Martineschen oferece ao mesmo tempo uma contribuição inestimável à nossa cultura — um feito que se mostra tão mais notável à luz de seu empenho em reproduzir com rigor a estrutura formal dos poemas alemães — ao contrário, por exemplo, da tradução espanhola de Rafael C. Assens.

Fazer com que Hatem e Zuleica dialoguem em português em “igual palavra e som”, não apenas “olhar a olhar”, mas também “rima a rima” — como diz o poema “Bahram-Gor, dizem, inventou a rima” — representa um objetivo para cuja magnitude, mas também risco, o próprio Goethe chamou a atenção ao discorrer sobre as vantagens de uma tradução em prosa, como meio para se contornarem as imensas dificuldades de uma tradução em versos. Já nas “Notas e ensaios” que acompanham seu Divã, o poeta lamenta que a Canção dos Nibelungos (início do século XIII), redigida em alto-alemão médio (Mittelhochdeutsch) e em estrofes de quatro versos rimados em parelha (“estrofes dos Nibelungos”), não tivesse sido traduzida para o alemão moderno numa “prosa útil”, o que teria propiciado ao leitor uma fruição desse heroico épico medieval em “toda sua força”. Também numa conversa (18 de janeiro de 1825) com Eckermann sobre canções sérvias, Goethe sugere que os encantos dos versos populares eslavos transpareceriam numa simples tradução em prosa de seus “motivos”. Sobre essa questão da traduzibilidade de versos manifestaram-se, como sabido, grandes nomes da Literatura Mundial, e já Dante, cinco séculos antes de Goethe, negava a possibilidade de preservar “toda a doçura e harmonia” de uma criação em versos ao traduzi-la “da sua língua para outra”.[3]

Daniel Martineschen, felizmente, não se deixou guiar por semelhantes concepções e, com isso, seu Divã ocidento-oriental apresenta ao leitor preciosos exemplos da arte tradutória in the realms of gold, como John Keats chamou o “reino da poesia”. Primorosas, por exemplo, são as três quadras em redondilha menor do poema “Aparição”, o qual, imantado pelo símbolo do arco-íris não só colorido, mas também branco (por trás do qual se oculta a teoria goethiana das cores), culmina na estrofe: “Tu, velho querido, / não deves chorar; / teu cabelo é embranquecido, / mas tu vais amar”. Igualmente sóbria e admirável é a tradução do “Livro de leitura”, inspirado em poemas que Goethe — também o poeta cometeu seus deslizes… — atribuiu ao persa Nezami (1141–1209), mas na verdade provenientes do turco Nischani (século X): “Maravilhoso livro dos livros / é o livro do amor! / Atencioso eu o li: / pouca folha de alegria, / cadernos todos de dores; / uma seção faz a separação. / Reencontro! Um só capítulo, / fragmentário. Tomos de mágoa / alargados com explicações, / infindas, sem medida”.

O leitor que percorrer as páginas desse primeiro Divã goethiano em língua portuguesa estará palmilhando os caminhos e jardins de uma Chiraz que o “gêmeo” de Hafez amalgamou a paisagens renanas, resultando dessa fusão uma utopia de elevada poesia, envolta pelo canto do bulbul e do hudhud, mensageiro amoroso já nos tempos “do rei Salomão e da rainha de Sabá” (poema “Saudação”, no “Livro do amor”), e sabendo a denso odor de rosas, jasmins e do vinho celebrado em incontáveis versos.

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Hudhud, desenho do ornitólogo Johann Friedrich Naumann

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Ao leitor brasileiro descortinar-se-ão poemas regidos pelo princípio da “polaridade”, de fundamental importância tanto para a obra científica quanto literária de Goethe. E à polaridade ocidental-oriental que transparece no título da coletânea associam-se várias outras, começando com a amorosa: felicidade em poucas “folhas” e sofrimento em muitos “tomos”; o paraíso da poesia e o pesadelo da história: “tronos racham e impérios estremecem”, o que se relaciona ao posterior paralelo entre o inverno de Napoleão na Rússia e o de Timur (Tamerlão) na China em 1405; o êxtase sensível do vinho e a visão sufista de Deus; juventude (Zuleica) e velhice (Hatem); vida e morte: “morre e te transforma!”; unidade e duplicidade: “não vês tu nestas canções / que sou Um e duplicado?”; ou ainda, para citar mais um exemplo, a “polaridade” corporal que deve inspirar gratidão ao ser humano, sístole e diástole, o inspirar e o expirar: “Existem duas graças no respirar: / sorver o ar, dele se liberar. / Um refresca, o outro oprime: / a vida é assim, mista e sublime. / Graça a Deus, se ele te aperta; / dá graça a Ele se te liberta”.

Ao discorrer em sua Estética (segmento “O panteísmo da arte”) sobre a “poesia muçulmana”, Hegel delineia como conclusão um paralelo entre os “Divãs” de Hafez e de Goethe, observando que os poemas ocidental-orientais de 1819 só puderam nascer graças à profundidade e ao frescor juvenil do espírito goethiano, também “a um sentido que se espraiou pela mais ampla latitude, seguro de si em todas as tormentas”, assim como — e Hegel cita então versos do poema “A Zuleica” — graças a “um [mundo] que pulsa com ardores / que, em seu ímpeto pleno, / semelha muito aos amores / de bulbul […]”. Na perspectiva desse espraiamento “pela mais ampla latitude”, pode-se afirmar que o mergulho na tradição poética do Oriente desempenhou papel crucial na concepção de uma Weltliteratur destinada a ocupar lugar cada vez mais relevante no mundo globalizado. No contexto da então emergente Literatura Mundial os poemas haveriam de fecundar-se e renovar-se mutuamente em meio a uma “dança das esferas, harmônica no tumulto”, como formulou o velho poeta em versos que colocam ao lado da harpa do rei Davi e do bulbul de Hafez a colorida serpente brasileira encontrada muitos anos atrás na canção tupi que Montaigne comenta no célebre ensaio sobre “Os Canibais”:

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Como Davi entoou a harpa e o canto principesco,

A canção da viticultora soou docemente junto ao trono,

O bulbul do persa envolve o canteiro de rosas

E pele de serpente esplandece como cinto indígena,

De polo a polo, canções se renovam,

Uma dança das esferas, harmônica no tumulto;

Deixai que todos os povos sob o mesmo céu

Animados se regozijem nas mesmas dádivas.[4]

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Duzentos anos após Goethe ter publicado seu mais extenso ciclo lírico, a extraordinária tradução de Daniel Martineschen descortina ao leitor brasileiro a possibilidade de se regozijar nesses poemas que celebram a fecunda interação entre duas grandes tradições literárias: “Grandioso o Oriente / o Mediterrâneo cruzou; / Quem ama Hafez e o entende / sabe o que Calderón cantou”.

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Placa comemorativa no Goethe-Hafis-Denkmal

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Notas:

[1] Esse e outros poemas de Goethe acompanham o ensaio de João Barrento “Poesia. A glorificação do sensível”, publicado no Dossiê Goethe da Revista Estudos Avançados (USP), Nº 96, agosto de 2019: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142019000200317&lng=en&nrm=iso .

[2] “Goethe” (trad. de Irene Aron e Sidney Camargo), in Ensaios reunidos: Escritos sobre Goethe. São Paulo, Duas Cidades/Editora 34, 2009, p. 168.

[3] Dante Alighieri, Convívio (trad. de Emanuel F. de Brito). São Paulo: Cia das Letras, 2019, p. 123.

[4] Esse poema foi redigido em 1827 e publicado postumamente sob o título Weltliteratur — ver a esse respeito o ensaio “Natureza ou Deus: afinidades panteístas entre Goethe e o ‘brasileiro’ Martius”: Revista Estudos Avançados, Nº 69, agosto de 2010: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142010000200012&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt .

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Marcus Mazzari

Marcus V. Mazzari é professor de Literatura Comparada na USP. Traduziu textos de Walter Benjamin, Gottfried Keller, Jeremias Gotthelf e outros. Entre suas publicações mais recentes estão A Dupla Noite das Tílias. História e Natureza no Fausto de Goethe (Ed. 34, 2019) e (coorganizador) Romance de formação: Caminhos e descaminhos do herói (Ateliê Editorial, 2020). Elaborou comentários, apresentações e posfácios para a Primeira e Segunda Parte do Fausto de Goethe, em tradução de Jenny K. Segall (Ed. 34, edições bilíngues e ilustradas). Coordena a coleção “Thomas Mann” na Cia. das Letras.