Editorial

Editorial: Cultura em tempos digitais

Há 30 anos, a jovem editora paulista Companhia das Letras publicava o livro O Mundo Moderno – Dez Grandes Escritores, do professor inglês Sir Malcom Bradbury. Bradbury, na verdade, havia servido como consultor para a série de televisão homônima, e que o Channel 4 britânico exibira em 1988. Ao longo de dez programas de uma hora, as obras seminais de Dostoiévski, Ibsen, Conrad, Thomas Mann, Proust, Joyce, T. S. Eliot, Pirandello, Virginia Wool e Kafka eram apresentadas com brilho por uma equipe de dramatização de alta qualidade (Eileen Atkins, Dave Suchet, Roger Rees, Tim Roth) e analisadas por um time de especialistas que contava com nomes com George Steiner, Frank Kermode, Anthony Burgess e Peter Acroyd, entre outros. O amplo fenômeno do Modernismo, entendido em sua complexidade e variedade, chegava ao grande público da televisão.

Tudo isso na televisão? Sim. Importa dizer, contudo, que as barreiras não eram poucas: então a televisão seria veículo para a realização e difusão da alta cultura, do pensamento mais sutil, da reflexão e da análise mais demorada? De fato. O espanto — em verdade, o preconceito — não era novo. Na verdade, foi a consciência desse obstáculo que permitiu ao idealizador da série, o brilhante e infatigável jornalista britânico Melvyn Bragg, levar a cabo o projeto.

No prefácio que escreveu para o livro, Bragg relembra um episódio notável na história de outro meio, outra mídia, também ela objeto encarada com desdém e escárnio em seus primórdios por alguns dos grandes nomes da cultura estabelecida.

“Laurence Olivier gosta de contar como foi que William Wyler o levou a trabalhar em cinema. Olivier, como a maioria dos atores britânicos estava convencido de que o teatro era infinitamente superior ao cinema. Wyler era uma das muitas pessoas que discordavam e achava que uma das causas dessa atitude esnobe talvez fosse o fato de o ator inglês típico não saber trabalhar em cinema. Em O morro dos ventos uivantes, o Old Vic [teatro que Olivier dirigia] e Hollywood entraram em choque; Olivier saiu da experiência chamuscado, mas aprendeu alguma coisa.

Wyler o dirigiu de modo impiedoso — debochando de seus gestos grandiloquentes, de sua voz dinâmica, de sua postura de ator. A uma certa altura, Olivier (ele até hoje não consegue lembrar do episódio sem corar de vergonha) virou-se para a equipe de produção, um punhado de americanos calejados, e disse: ‘Nesse meio estreito e anêmico de vocês não há lugar para uma grande interpretação’. Dizem que as gargalhadas ainda ecoam no estúdio.”

Foi Wyler quem convenceu Olivier que o cinema não era um meio inferior. Até Shakespeare poderia ser feito para o cinema. Anos mais tarde, o Olivier protagonizaria filmes como Henrique VRicardo III Hamlet.

Melvyn Bragg tinha consciência, nos idos da década de 1980, que a televisão ainda era alvo de uma esnobismo do mesmo tipo. Meio recente, nela tudo era apresentado a todos como que sem distinção, “do lixo ao sublime”. Mesmo nesse meio, contudo, a televisão britânica oferecia uma “relativa generosidade em relação a horários e verbas; uma atitude compreensiva para com os programas dirigidos a minorias necessariamente com audiências pequenas e dificuldades mercadológicas; a facilidade de formar grupos de trabalho em que um lucra com a participação do outro”, o que honrava uma tradição que, frise-se, apenas a Inglaterra e o Reino Unido tinham, e que remonta aos icônicos programas de Sir Kenneth Clark, como Civilisations.  Foi graças a essas condições que Bragg reuniu, primeiro em seu The South Bank Show, e depois no programa O Mundo Moderno, um refinado time de atores, roteiristas, diretores e produtores — além de acadêmicos da mais alta qualidade — para produzir um programa televisivo que ia de da dramatização do Ulysses, de Joyce, às análises de George Steiner sobre O Processo, de Kafka.

Não é exagero afirmar que os meios digitais, com suas publicações on-line, seus podcasts e novos formatos de programas em vídeo pensados exclusivamente para a internet, passam por algo análogo. A internet levou a fórmula “do lixo ao sublime” a um limite inimaginável: da mais abjeta vulgaridade, semi-criminal (quando não estritamente criminosa), vai-se às alturas do sublime, como constatam as excelentes opções de consumo da alta cultura e do pensamento sério em novas mídias.

Podemos ficar queixosos do baixo nível nas redes sociais, mas também podemos usar nosso tempo conectado para assistirmos gratuitamente aos cursos de centenas de universidades do mundo inteiro. Em vez de reclamar da disseminação de fake news, podemos acessar uma quantidade imensa de informações a baixo custo (quando não gratuitamente) produzidas nos melhores centros jornalísticos do planeta.

Com a cultura não é diferente. Nunca houve um momento tão privilegiado para oferecer conteúdo de alta qualidade em matéria de arte, cultura e ideias de maneira ampla e acessível. Ao mesmo tempo, nunca foi tão necessário o trabalho de filtro — a seleção cuidadosa, o esforço editorial, o trabalho em equipe que fortalece o conjunto, a aposta no conhecimento especializado, claro e objetivo. Essa lição, novamente, aprendemo-la com Melvyn Bragg, que há 20 anos está à frente do espetacular programa In our time, da BBC Radio 4. Um programa que começou na rádio, adaptou-se perfeitamente ao formato digital dos podcasts e que já reuniu praticamente todos os grandes professores e pesquisadores britânicos para que falassem de suas áreas de atuação. São programas sobre Aristóteles, sobre “gravidade”, sobre matemática, sobre literatura ou história, que chegam a milhões de ouvintes.

Não faltam exemplos de publicações que, em atividade há décadas, quando não há séculos, fizeram bem a transição para este novo universo da imensidão indefinida do “lixo ao sublime digital” sem perder a qualidade, a identidade e o foco: da quase bicentenária The Spectator à jovem (cinquentona) The New York Review of Books, estão aí veículos clássicos convivendo, estimulando e sendo estimulados por novas publicações que já nasceram com a marca do mundo digital, como a Quillette.

O Estado da Arte, neste seu terceiro ano de atividade no portal do Estadão, busca oferecer, nos limites de suas possibilidades, uma única coisa: a convicção de que esta aposta vale a pena. A aposta na reflexão especializada em detrimento do opinionismo verborrágico; no ensaio de fôlego em lugar da manchete que passa por informação; no conhecimento que fica, e deixará seus frutos, não na estridência chamativa, mas que nada consolida. Nem sempre conseguiremos estar à altura desse propósito. Mas nossas limitações, tendo o alvo acertado no altura certa, ainda terão a vantagem da honesta entrega a um propósito digno de ser perseguido.

Ao longo do mês de fevereiro, o leitor do Estado da Arte vai receber muitas novidades. A primeira delas será a nova casa — o novo site do projeto, reunindo diversas outras iniciativas. Principalmente, perceberá a aposta do Estado da Arte em uma integração cada vez maior com os formatos digitais que tão bem têm servido à popularização do conhecimento. Uma nova temporada de artigos, ensaios, entrevistas, podcasts e muitos outros conteúdos fornecerá o arco temático das atividades do primeiro semestre.

Espero que nossos leitores estejam tão ansiosos quanto eu por essas novidades todas.

Eduardo Wolf