História

Escravidão no Brasil: historiografia, estruturas e dinâmicas

por Caio Vioto

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Diversos temas históricos são conhecidos pela quase totalidade da população — ainda que de forma superficial —, a escravidão é um deles. A grande maioria das pessoas sabe que, em algum tempo, em partes do território que convencionamos chamar de Brasil, seres humanos negros eram propriedade de seres humanos brancos. Sabe-se também, no senso comum, que esta relação era bastante assimétrica e que os escravizados sofriam cotidianamente com a violência por parte de seus proprietários. Em geral, o conhecimento se esgota por aí. Muitos imaginam que, do século XVI até a abolição, em 1888, as “estruturas” da escravidão se reproduziram ao longo de todo o tempo e espaço, de maneira idêntica ao que se verificava em outros lugares e épocas que passaram pelo mesmo tipo de fenômeno histórico. É neste ponto, no entanto, que as concepções genéricas se chocam com aquilo que foi produzido pela historiografia especializada, ao menos nos últimos 40 anos.

Nas décadas de 1960 e 1970 predominou a interpretação que ressaltava um caráter estrutural, por influência do conceito marxista de “modo de produção”. Para esta abordagem, a escravidão, marcada pelas relações de violência e opressão, seria um instrumento da acumulação capitalista e da dominação das elites coloniais que, mesmo após os processos de independência, sobretudo na América, continuaram “dependentes” das exportações de matérias-primas para o centro do capitalismo industrial. Da mesma forma, o fim da escravidão teria sido resultado de suas “contradições internas”, dado que, para se reproduzir, o sistema capitalista necessitaria de mão-de-obra livre e assalariada, bem como de mercado consumidor, o que tornaria a escravidão incompatível com uma “segunda fase” do avanço capitalista. Assim, a ênfase nos aspectos globais seria mais importante para a compreensão do fenômeno da escravidão, em detrimento das nuances locais e das especificidades ao longo do tempo.

A partir da década de 1980, o debate se desloca para as dinâmicas culturais, sociais e políticas do fenômeno. A abordagem econômica, no entanto, não é abandonada, mas se volta para os aspectos locais e demográficos, divergindo dos objetivos anteriores de compreensão global da escravidão. Passamos a ter, então, novas considerações, que não costumavam ser objeto da escola estruturalista, das quais podemos destacar a mobilidade socioeconômica de ex-escravos. Com isso, a escravidão antes entendida como um processo universal passa a ter contornos mais sutis e específicos. Nesse aspecto, a historiografia mais atual se choca com a alegação de que a mobilidade social seria uma exceção no contexto da escravidão. Conforme os historiadores Manolo Florentino e José Roberto Pinto de Góes:

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Já em 1779, nas freguesias urbanas e rurais do Rio de Janeiro, onde a plantation açucareira tinha grande peso na economia regional, os “homens de cor” representavam 31% de todos os livres. Em Campos dos Goitacazes, a população parda e negra, livre, era mais de 1/3 do total. Na província que detinha a maior quantidade de escravos durante a década de 1830 —Minas Gerais—, os mestiços representavam 2/3 dos homens livres. Este perfil aumentou ao longo do século XIX, de tal maneira que o Censo de 1872 indica que metade da população livre de todo o Brasil era constituída por negros e pardos.

Negros e mulatos, pessoas livres e proprietárias. Em Minas Gerais, na localidade de Serro Frio, em 1738, quase ¼ dos proprietários eram forros; possuíam 10% dos escravos. Em 1771, o mesmo ocorria em Congonhas de Sabará. Em algumas localidades baianas de finais do século XVIII, os negros e mulatos livres representavam entre 20% e a metade dos proprietários. Em 1835, em áreas dominadas pela cultura do fumo, os “não brancos” podiam corresponder a 1/3 dos donos de escravos, proporção que se elevava a quase metade em algumas regiões dedicadas à plantação de cana (2013, p. 7).

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Esta amostra estatística, que encontra diversas correspondências na historiografia mais recente, evidencia um grau de mobilidade bem maior do que pode imaginar o senso comum ou a concepção estruturalista sobre a escravidão. Possíveis motivos para isso se encontram no fato de que, ao contrário do que possa parecer para uma visão demasiado retrospectiva, ou seja, que olha do presente para o passado, o fator raça, ainda que importante, especialmente no início do processo da escravidão moderna, não foi determinante para a escravidão nos séculos seguintes, de modo que não havia impeditivos incontornáveis para que um escravo deixasse sua condição, nem para que, quando livre, adquirisse escravos. Diante disso, afirmam os autores, entremeados por uma citação de Joaquim Nabuco em Abolicionismo, sua magnum opus:

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A escravidão brasileira não se tornara um monopólio dos brancos: “a escravidão entre nós manteve-se aberta e estendeu os seus privilégios a todos indistintamente: brancos ou pretos, ingênuos ou libertos, escravos mesmos, estrangeiros ou nacionais, ricos ou pobres”. A escravidão retirava forças de um profundo enraizamento social (2013, p.  24).

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Machado de Assis e Joaquim Nabuco

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A citação pode soar bastante estranha para quem não é familiarizado com o assunto — e talvez uma das principais funções da História enquanto ciência seja nos causar esse tipo de reação -, mas esclarece que a escravidão, em sua época, não era considerada uma “barbárie”, isto é, não gerava na maioria de seus contemporâneos o choque e a aversão que se tornaram consensos sociais e políticos em nosso tempo, visto que era tida como uma prática legítima e naturalizada. Isso não significa, no entanto, que sua instituição não era objeto de conflitos e resistências. Assim, legitimidade e contestação coexistiam, dentro das complexidades, contradições e paradoxos que caracterizam os fenômenos históricos.

Nesse sentido, um dos marcos da renovação da historiografia sobre a escravidão é a obra de João José Reis e Eduardo Silva, Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista (1989), na qual os autores procuram salientar as gradações entre a representação do escravizado enquanto sujeito completamente passivo acerca de sua condição e aqueles que lideraram os atos heroicos de resistência. Também são evidenciadas as heterogeneidades entre os escravizados, em termos de origem étnica e religião. No interior dessas relações dinâmicas, além das fugas e rebeliões, encontravam-se estratégias de negociação, por parte de escravos e proprietários, em questões como dias de descanso e concessão de terras para cultivo. Tais reivindicações e acordos eram de interesse mútuo: os escravizados procuravam melhorar, ainda que minimamente, suas condições cotidianas, ao passo que os proprietários objetivavam evitar revoltas e aumentar sua produtividade. Em suma, o detalhamento das situações históricas nos mostra o período escravista como um processo em aberto, com possibilidades e descontinuidades, que diverge das interpretações estruturais e estáticas da tendência historiográfica anterior.

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(Reprodução)

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Outra discussão recorrente é a relação entre capitalismo e escravidão. O historiador norte-americano Dale Tomich, em Pelo prisma da escravidão: trabalho, capital e economia mundial (2011), constrói sua tese em contraposição às visões marxista e neoclássica acerca da escravidão e à ideia de economia-mundo como fase de consolidação do capitalismo, que colocam uma relação de causalidade estrita entre o fim da primeira e o advento da última. Tais visões trazem uma análise retrospectiva da história, partindo de um dado (o fim da escravidão, concomitante com a revolução industrial) e procuram estabelecer os nexos causais, com base nas matrizes teóricas citadas, que levaram a este fenômeno histórico. De acordo com o autor, marxistas e neoclássicos veem a economia-mundo como um fator condicionante externo e ressaltam o papel dos Estados nacionais como unidade de análise. Tomich considera essas abordagens insuficientes, pois as transformações que ocorrem nas sociedades escravistas dependeram da interação de fatores internos como as relações entre terras, trabalho e tecnologia, bem como das dinâmicas entre as diversas zonas de produção que utilizavam o trabalho escravo. Assim, se por um lado o advento da economia-mundo enfraqueceu a escravidão em alguns lugares, acabou, por este mesmo motivo, fortalecendo-a em outros. Dessa forma, a abordagem do autor é prospectiva, partindo não de resultados históricos dados, mas de como as formações diversas e as interações entre as sociedades escravistas, num contexto de economia-mundo, constituíram estes fenômenos.

Tomich evita explicações gerais sobre as causas da abolição da escravidão, as quais considera diversas e conjunturais. Dessa forma, pontua que o século XIX foi, ao mesmo tempo, o momento derradeiro e o apogeu do desenvolvimento da escravidão. No final do século XVIII, a indústria açucareira do Caribe, que contava com mão-de-obra escrava, estava em posição de destaque na economia mundial, especialmente nos impérios coloniais francês e inglês, ao passo que em outras regiões, como o Brasil, com o fim do chamado ciclo do ouro, a escravidão estava “moribunda”. No século XIX, expande-se novamente em algumas localidades, para suprir as crescentes demandas por algodão, café e açúcar. Iniciava-se assim, um segundo ciclo da escravidão, bem próximo temporalmente de sua extinção.

Destacar nuances e complexidades na investigação da escravidão enquanto fenômeno histórico não significa “relativismo” ou algo que o valha, dado que a natureza científica da História, se podemos assim dizer, consiste exatamente em ver especificidades e diferenças, ou seja, em “relativizar” situações que são, de fato, empiricamente diferentes. Isso não significa que não existam aspectos de longa duração ou “estruturais” (mais em sentido temporal do que de reprodução de relações), tampouco significa uma “minimização” da condição de determinadas pessoas que viveram em outras épocas, ainda que suas percepções, em seu tempo, possam destoar bastante das nossas. Da mesma forma, são inegáveis os legados negativos da escravidão para a sociedade atual, que se manifestam nos mais variados tipos de desigualdades e discriminações. A compreensão do passado, no entanto, não existe apenas em função do presente. De qualquer modo, simplificar ou “estruturalizar” em demasia a história não faz com que nossos problemas sejam resolvidos. Pelo contrário, a interpretação presentista e excessivamente pragmática da história faz com que deixemos de notar as complexidades, diversidades e peculiaridades do nosso próprio tempo.

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Luiz Gama ilustrado por Raul Pompeia, 1882

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Caio César Vioto de Andrade

Caio César Vioto de Andrade é Doutor em História e Cultura Política pela UNESP-Franca.