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Cimarosa em duas entrevistas

Baseada na peça The Clandestine Marriage de George Colman “The Elder”, Il Matrimonio Segreto de Domenico Cimarosa (1749 – 1801) é não apenas a obra mais famosa do catálogo do compositor italiano, mas também uma das principais obras do repertório de finais do século XVIII.

Ela será executada como abertura da temporada lírica 2018 do Theatro São Pedro nesta sexta-feira, com récitas também nos dias 6, 9, 11 e 13 de Maio. Com direção cênica e iluminação de Caetano Vilela e direção musical da italiana Valentina Peleggi, o elenco conta com Jean William (Paolino), Pepes do Valle (Geronimo), Caroline de Comi (Carolina), Ana Lucia Benedetti (Fidalma), Michel de Souza (Conde Robinson) e Joyce Martins (Elisetta). O estilista Fause Haten assina os figurinos, e a cenografia é de Duda Arruk.

Sobre a montagem, Caetano respondeu três perguntas para o Estado da Arte.

Caetano, quais as dificuldades de encenação de uma ópera tão ilustre quanto desconhecida como é o caso de Il Matrimonio Segreto?

Caetano Vilela – Lidar com as inúmeras repetições do canto. Por exemplo, uma ária de 4 minutos tem mais da metade de repetição cantada! Resolver isso cenicamente é muito trabalhoso porque não basta ter criatividade é preciso estar em sintonia com o cantor já que o nível de dificuldade musical é altíssimo. E pode parecer clichê mas é a pura verdade: dirigir uma comédia é muitíssimo mais difícil do que fazer um drama ou tragédia. Fazer rir é coisa séria.

Qual seu momento preferido no libreto?
Caetano Vilela – A ária do personagem Paolino no II ato, “Pria che spunti in ciel l’aurora”, quando ele planeja fugir com a amada. É o momento musical que eu acho o mais sofisticado da ópera, aliás lembra muito Rossini.

Responda sinceramente: Cimarosa é menos encenado do que deveria?
Caetano Vilela – Não condeno seu ‘esquecimento’ na programação das casas de ópera. Cimarosa foi muito popular mas ele teve o azar em ser contemporâneo de Mozart e Rossini (que são superiores dramatúrgica e musicalmente) e pior; seu período de criação foi a transição do período barroco para o clássico e no final do século XVIII suas óperas já estavam ultrapassadas. Sua redescoberta tem valor histórico e sua musicalidade não é vulgar. Se focarmos no ‘marketing pessoal’ ele hoje poderia ser mais popular em muitos países, afinal, foi um revolucionário que se rebelou contra a corte dos Bourbons e foi preso e condenado a morte (posteriormente perdoado). Com excessão de ‘Matrimonio’ ninguém sabe que ele compôs mais de 60 outras óperas.

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Dizem alguns comentadores que, à ocasião da estréia, o Imperador Leopold II – para quem Mozart compusera sua última ópera, La Clemenza di Tito – gostou tanto de Il Matrimonio que convidou todos os artistas para jantar antes do bis: e, depois do jantar, exigiu que o bis fosse da ópera inteira!

Para além de ser a única ópera da história bisada na íntegra,  Il Matrimonio conta com uma música sempre agradável, em muitos termos precursora de Rossini. A comparação com o mestre italiano – e também com Mozart, seu contemporâneo mais imediato – ocupa parte das discussões musicológicas na história recepção de Cimarosa. Sobre isso, Valentina Peleggi, a diretora musical do espetáculo no Theatro São Pedro, traz para o leitor do Estado da Arte alguns comentários:

À sua época, Cimarosa e Mozart disputavam espaço. Em quais termos podemos comparar musicalmente Il Matrimonio Segreto e, por exemplo, Nozze di Figaro?

Valentina Peleggi – Cimarosa chegou em Viena em Dezembro 1791, nos últimos dias da vida de Mozart. As óperas dos dois eram muito conhecidas naquele tempo. Muitas vezes a crítica aproximou Cimarosa a Mozart, mas acredito seria mais correto o contrário – tendo em mente todo a produção da Escola Napoletana. Nas viagens pela Itália, Mozart teve a oportunidade de conhecer aquele gênero teatral/musical que era a opera buffa, do qual Cimarosa era um dos máximos e últimos exponentes: a concepção de unidade temporal, dos imprevistos, da comicidade, a importância dos números de conjuntos foram algumas das características que Mozart apreciou e que fez próprias na sua produção cômica.

O Matrimonio Segreto e Nozze de Figaro tem muitíssimos pontos de contato: tem um matrimonio entre dois jovens que sempre está em perigo, tem uma velha que se apaixona por um jovem (Marcellina e Fidalma), tem um Conde, tem muitos imprevistos entre os personagens. E olha a música:

A primeira é a abertura do Matrimonio, a segunda a abertura de Nozze!

Além de todos estes pontos de contato, tem uma grande, enorme diferença: o sentido profundo de cada obra. Com Nozze, Mozart quebra o equilíbrio da sociedade; o Conde representa uma sociedade que é já velha, que não consegue mais estabelecer a ordem nem o próprio predomínio. Ao Conde de Nozze  faz-se cair a máscara, e descobre-se um homem vencido – Figaro é o novo representante da “burguesia”, este é o futuro. O Conde do Matrimonio é ainda o nobre que resolve a intricada situação, que se ergue como deus ex maquina e estabelece de novo a tranquilidade. Com o mesmo material, e com a mesma elegância as duas são espelhos de duas visões completamente opostas: uma opera é filha do passado, e uma é espelho do futuro.

Leandro Oliveira

Leandro Oliveira é autor do livro “Falando de Música: Oito lições sobre música clássica” (editora Todavia, 2020). Tem experiência internacional em transmissões de música clássica, e é responsável pela direção das transmissões da “Maratona Beethoven”. Realizou doutorado com pesquisa na área pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.