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Filarmônica de Viena e Sol Gabetta em Lucerna

Sol Gabetta e Franz Welser-Möst após apresentação com Filarmônica de Viena (foto divulgada pelas mídias sociais do Festival de Música de Lucerna)

por Leandro Oliveira

Franz Welser-Möst tem alguns truques a ensinar a seus confrades de batuta. Um deles é simples: jamais perder o início, o meio e o fim de uma ideia musical – por mais complexa que pareça a textura, por mais assimétricos que pareçam seus componentes.

O caso é que essa pequena tarefa só pode ser posta em prática a partir do desenvolvimento de algumas habilidades. A primeira delas, é claro, a capacidade de análise (o que nem sempre é fácil na escrita orquestral); no caso dos maestros, é necessário ainda algum poder de comunicação – seja através de palavras no ensaio, seja através de gestos na performance.

A excelente versão da “Quinta Sinfonia” de Anton Bruckner, realizada por Welser-Möst e a Filarmônica de Viena o dia 07 de setembro, fechou as atividades deste crítico e sua temporada de uma semana acompanhando as performances do Festival de Música de Lucerna em 2018. Foi um final feliz: ao longo dos 80 minutos da obra, ouvimos uma orquestra absolutamente convicta e sintonizada às ideias do maestro – e apenas essa simbiose poderia permitir tal voo profundo pela poética do compositor austríaco.

Nos quatro movimentos vimos como o jogo de acúmulo de tensão e contraste dinâmicos de Bruckner pode construir ao mesmo tempo um universo monstruoso e complexo, pela densidade, mas também original e apaixonante, pela intensidade. Welser-Möst e a Filarmônica de Viena traduziram em ato tanto a acolhida bruckneriana da sonoridade de Wagner, quanto suas formas elípticas (ou quiméricas) e pujança material – pujança que se expressa não apenas na riqueza de variações motívicas, mas na qualidade das texturas, além da virilidade mesma com que a orquestra precisa desafiar as cordilheiras de sua linguagem. Foi uma performance notável.

Poucos programas poderiam ilustrar tão bem a questão de Milan Kundera em sua “A Insustentável leveza do ser”: afinal o que é mais positivo, a leveza ou a profundidade? Em contraste com Bruckner, na primeira parte do programa, a estrela Sol Gabetta apresentou o – solar, festivo, exuberante! – “Concerto para violoncelo” em dó maior de Joseph Haydn.

Uma pequena jóia do virtuosismo clássico, o “Concerto” foi inequivocamente defendido pelo carisma sorridente da grande instrumentista. Seria pedir demais que uma orquestra por demais senhora de si como é a Filarmônica de Viena a acompanhasse nos termos “historicamente orientados” com o qual ela baseia sua leitura – afinal, todos que conhecemos Viena (Filarmônica, Conservatório, etc) sabemos como ela pode ser orgulhosa de “seu próprio” classicismo…

E isso, mesmo sendo o rigor filológico da solista atualizado para um instrumento moderno; ela dá atenção ao excesso de vibratos, uma sensibilidade para as articulações (sem preciosismos). Tudo isso passou longe da dicção do tutti orquestral. Embora por vezes parecesse obra do doutor Frankenstein, numa peça que concentra tanta atenção no protagonismo do solista, o resultado foi afinal convincente. Sol Gabetta foi aplaudida com veemência pelo público que lotava o KKL-Luzern; infelizmente, para todos nós, escusou-se do bis.

Leandro Oliveira

Leandro Oliveira é autor do livro “Falando de Música: Oito lições sobre música clássica” (editora Todavia, 2020). Tem experiência internacional em transmissões de música clássica, e é responsável pela direção das transmissões da “Maratona Beethoven”. Realizou doutorado com pesquisa na área pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.