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Mais misérias cariocas?

A bailarina Cecília Kerche se apresenta durante manifestação em apoio ao Theatro Municipal do Rio de Janeiro (Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil/Fotospublicas.com)
 

por Leandro Oliveira

Ao longo do ano, a coluna Falando de Música deste blog pretendeu, a seu modo, posicionar-se nas batalhas da música clássica no país. Introduzimos bibliografia relevante, lançamos luz a temas controversos e informamos os assuntos inescapáveis, aqueles que imaginamos permitir ao melômano leitor do nosso espaço acompanhar a grande conversação internacional da qual a música de concerto brasileira, mesmo que relutantemente, faz parte. Talvez uma das discussões mais dramáticas tenha sido a da avaliação, no princípio do ano, do quadro e produção da música carioca, desdobrada em duas publicações intituladas “Misérias Cariocas”. Acreditamos valer a pena, antes de fechar 2017, lançar um olhar sobre as consequências de tudo que foi dito.

Primeiro, o mais importante: nos bastidores, a vida musical carioca parece se mexer. Após o desastre administrativo e artístico dos anos Minczuk, a OSB contratou como diretora executiva Ana Flavia Cabral, que comentou a esta coluna algumas das conquistas da orquestra este ano. Os contratos de patrocínio firmados com a NTS, Bradesco, Vale e Brookfield permitiram a volta do pagamento dos salários de seus músicos, e oxigenaram a Fundação para a renegociação daqueles atrasados. As parcerias firmadas com a Sala Cecília Meirelles e a aprovação do projeto de Lei Rouanet para 2018, habilitando a orquestra à captação de recursos junto a iniciativa privada no próximo ano, prometem boas perspectivas. Retornando aos poucos sua atividade de apresentações, a OSB está ainda distante de sua velocidade de cruzeiro, mas no ano que termina revelou ter disposição de colocar ordem na casa, e já começa a mostrar que tem motores – eles podem eventualmente voltar a funcionar e, oxalá, colocar o avião no ar.

Assim, a produção sinfônica da cidade ficou a cargo da Orquestra Petrobrás Pró-Música, que com  a série “Álbuns” ofereceu ao público grandes trabalhos do pop e rock. O projeto trouxe “Ventura” do Los Hermanos e “Thriller” de Michael Jackson: e a resposta do público foi a mais calorosa. A previsão é que no próximo ano sejam apresentados alguns dos clássicos do Pink Floyd. Com o projeto pioneiro da OPES, os meios da orquestra sinfônica atingem outros fins que não o do ambiente clássico – e nisto talvez tenhamos uma aposta curiosa e, claro, legítima. Devemos olhar atentamente seus desdobramentos, embora, por óbvio, saibamos tratar-se de experimento não necessária ou desejavelmente reproduzível em outras instituições do gênero.

Neste sentido é que, sem dúvida, o projeto genuinamente clássico o mais auspicioso da cidade é aquele levado adiante pelo spalla da mesma OPES, Felipe Prazeres e sua “Johann Sebastian Rio”. Trata-se de uma orquestra de câmara que, com forte ação nas mídias sociais – a orquestra nasceu pelo Youtube – experimenta apresentações em espaços não tradicionais e formatos audiovisuais os mais estimulantes. Após um sucesso incontestável de alguns de seus vídeoclipes, neste final de ano a orquestra produziu um belo vídeo com “As Quatro Estações” de Vivaldi sobre a pista de decolagem do aeroporto Galeão. Entre suas apresentações de 2017, Felipe destaca aquela das “Quatro Estações Portenhas” de Astor Piazzola com o violinista italiano Domenico Nordio, na Casa das Artes. Todos os concertos estão disponíveis no canal da orquestra.

Sem dúvida, as plataformas digitais permitiram as grandes surpresas positivas da cena carioca. Conforme as palavras de André Cardoso, presidente da Academia Brasileira de Música, tem se mostrado acertada a decisão do investimento nas tecnologias digitais por parte da instituição. Diz Cardoso:

A ABM tinha um selo fonográfico que produziu muitos CDs, todos dedicados aos compositores e intérpretes brasileiros. Mas tínhamos grande dificuldade para distribuí-los. Boa parte da tiragem ficava estocada em nossa sede, ou seja, não cumpria sua finalidade de difundir a produção musical brasileira. Optamos por investir então nas gravações ao vivo de nossos concertos e disponibilizá-las gratuitamente pela web. O resultado tem sido muito bom, pois atingimos um público muito maior.

Foram produzidos e estão disponíveis para acesso gratuito as primeiras gravações de obras como “Madonna” e “Verde Velhice” de Villa-Lobos, a “Sinfonia V” e “Paisagem Sonora para violoncelo e orquestra de sopros” de José Siqueira, além da incrível “Sinfonia no. 1″ de Lorenzo Fernandez. Em 2017, foram ao ar duas obras primas do repertório sinfônico brasileiro muito pouco executadas, a “Sinfonia no. 2 – Caçador de Esmeraldas” de Lorenzo Fernandez e a “Sinfonia Tropical” de Francisco Mignone.

Para Cardoso, o meio digital hoje tem sido a melhor forma de chegar ao público e internacionalizar o repertório. Neste sentido, os demais trabalhos de 2017 parecem ter sido mesmo muito positivos. A ABM promoveu um acordo de cooperação para a divulgação da música brasileira e o catálogo do Banco de Partituras da ABM no exterior através de embaixadas e consulados do Brasil. “Conseguimos inserir obras de Villa-Lobos na programação de orquestras da Ucrânia e Israel”, diz ele. A partir de um acordo internacional importante, seguem em continuidade com a editora Max Eschig (Paris) novas edições revisadas e corrigidas de várias obras de Villa-Lobos. É um trabalho monumental de crítica de obras como os concertos para violão e harpa, o “Momoprecoce”, a “Alvorada na Floresta Tropical”, a “Bachianas Brasileiras no.9”, o “Choros 10” ou as “Danças Africanas”. Este trabalho de análise e edição crítica das partituras do nosso maior compositor viu a finalização, neste ano, da ópera “Yerma” e, claro, a “Sinfonia no.1” – produzida a partir de convênio com a OSESP, que prevê a gravação integral das sinfonias pelo selo inglês Naxos.

Em 2017, a ABM foi ainda decisiva para viabilização da Bienal de Música Brasileira Contemporânea, que esteve ameaçada pelo corte no orçamento da FUNARTE, e apoiou eventos artísticos e acadêmicos que comemoraram os 250 anos do Padre José Maurício Nunes Garcia, na Escola de Música da UFRJ, no Real Gabinete Português de Leitura e na Antiga Sé. Para 2018, a Academia prevê concertos em homenagem aos 150 anos de nascimento de Francisco Braga, 90 anos de Edino Krieger e Mário Tavares e os 70 anos do sempre querido Ronaldo Miranda.

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Agora, as misérias. O Theatro Municipal seguiu a trilha melancólica já prevista em princípios do ano. O secretário de cultura André Lazaroni, até onde se sabe, Presidente da Fundação Theatro Municial, mantenedora da instituição, foi o protagonista de um dos mais constrangedores episódios da política recente quando, como aliado dos presos da Lava Jato da família Picciani, em discurso na tribuna da Assembléia Legislativa do Estado, confundiu o autor alemão Bertold Brecht com um personagem das sátiras do ator e comediante Chico Anysio, o Bertoldo Brecha (Veeeeeeenha!). A situação deveria ir para compêndios desta pequena “História da cultura fluminense”, por sintetizar o que se tornou a comédia trágica do estado que já foi a capital cultural do país.

Mas deixando de lado tais ligeirezas, o que resta da instituição Theatro Municipal é a temporada de manifestações mensais de seus artistas por salários atrasados. A direção titubeante de André Heller, sem força política para defender a instituição nas esferas superiores, sem o carisma ou estofo necessário para galvanizar o corpo estável, e sem a imaginação para produzir algo consistente sob tal penúria financeira, fez do extraordinário edifício mera sede de cancelamentos ou espaço de locação para espetáculos autônomos que acabam por lotar mais ou menos as platéias do espaço.

Quanto ao Museu Villa-Lobos, o que vimos foi a repetição do mesmo padrão já denunciado neste espaço em princípios do ano. As verbas oficiais foram, mais uma vez, disponibilizadas para artistas e produtores cuja presença se justificaria por sua capacidade de atração de recursos financeiros no mercado: mas nenhum recurso no mercado foi atraído, nem captado por meio das leis de incentivo fiscal. Para a produção do mais recente “Festival Villa-Lobos” – o site anunciava “Ano Baden Powell” – foram levantados pelo menos 264 mil reais injetados diretamente pela administração pública para pagar, entre outras rubricas difusas, o violonista Yamandu Costa, ou fazer o lançamento do disco “Avenida Atlântica” – comemorando não os 130 anos de nascimento de nosso maior compositor mas os 50 anos de carreira do Guinga!

Tais artistas, respeitáveis e brilhantes, por óbvio não precisam do nosso Villa-Lobos e seu (nosso) dinheiro – e afinal, para eles há, ao longo de todo o ano, oportunidades para lotar palcos e espaços de prestígio como os teatros do Sesc e outros já consagrados pelo mercado fonográfico. Não esqueçamos que o Festival Villa-Lobos foi fundado em 1961, juntamente com o Museu que leva seu nome, pela viúva do compositor, Arminda “Mindinha” Villa-Lobos. Seu objetivo declarado é o de reverenciar a vida e a obra daquele que se tornou um dos maiores compositores da música de concerto do século 20. Tal como está, foi evidentemente desvirtuado de sua função. Será mesmo que os responsáveis pelo Festival acreditam que a produção extensa e variada de Villa-Lobos (talvez o mais prolífico compositor do século vinte) não sustentaria a presença de público por um final de semana? Não pode ser. Eu confio no nosso maior compositor e acho, sinceramente, que escolhendo entre suas obras para piano, violão, pequenos e médios grupos de câmara, canções para piano e obras de orquestra, ou seja, com uma programação cuidada com cultura, sem preguiça e alguma criatividade, nosso maior compositor sustenta-se por dois, três, dez dias. Os recursos financeiros para tanto, está provado, os há.

Assim, seguimos na esperança de ter nos próximos anos um Festival Villa-Lobos que mereça seu nome, com a apresentação de alguma das brilhantes sinfonias recentemente restauradas pela Academia Brasileira de Música e pela Osesp (ainda inéditas no Rio de Janeiro) ou algo da parte mais hermética de sua produção, ainda desafiadora ao grande público. Esperamos que a nova direção, dado o justo tempo hábil para implementação de algum plano de gestão consequente, ao menos retifique a promiscuidade administrativa e artística atual do Festival, a fim de restaurar nele alguma dignidade ao papel de Villa-Lobos neste que deveria ser o mais prestigioso evento público a celebrar seu nome.

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Para finalizar esta panorâmica sobre o cenário da música carioca, vale lembrar o Prêmio Especial pelo conjunto da obra dado pela APCA para o compositor carioca João Guilherme Ripper, cujas obras “Desenredo” e “Cinco poemas de Vinícius de Moraes” foram já apresentadas em São Paulo pela Osesp. Sua produção operística conta, entre outros, com títulos como “Onheama”, apresentada no Festival Terras Sem Sombra em Portugal em 2016, “Domitila”, apresentada no Theatro São Pedro em 2017, e “Piedade”, realizada na temporada do Theatro Colón em 2017. O prêmio é o reconhecimento a um dos mais ativos e relevantes artistas do universo clássico brasileiro dos últimos anos.

Leandro Oliveira

Leandro Oliveira é autor do livro “Falando de Música: Oito lições sobre música clássica” (editora Todavia, 2020). Tem experiência internacional em transmissões de música clássica, e é responsável pela direção das transmissões da “Maratona Beethoven”. Realizou doutorado com pesquisa na área pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.