Cinema

Lançamento da Foco 8-9 – Conversa com Salvador Amores

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uma parceria com a Foco – Revista de Cinema

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Por ocasião do lançamento do número 8-9 da Foco – Revista de Cinema no dia 30 de abril, convidamos críticos e curadores para uma leitura dos textos seguida de uma conversa com os editores. São nomes cujos trabalhos guardam afinidades com o formato e o conteúdo das pautas, com quem a troca de ideias serviu para explorar alguns dos temas tratados na revista. Os diálogos aconteceram entre fevereiro e abril de 2021, e serão publicados nas próximas semanas no Estado da Arte.

Na primeira parte, conversamos com Aaron Cutler. Nesta segunda, trazemos o diálogo com Salvador Amores. Como crítico, Amores colaborou com o MUBI Notebook, o Festival de Cinema de Locarno, com as revistas Correspondencias e La furia umana, entre outras publicações. Em 2019, foi programador do Cineclub 15 asientos no Instituto Francês da América Latina (IFAL) e curador da retrospectiva Paul Vecchiali na Cineteca Nacional do México. Atualmente, na Universidade Nacional Autônoma do México, coordena o Foro de la crítica permanente, e é parte da equipe de programação do Festival Internacional de Cinema UNAM (FICUNAM).

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SALVADOR AMORES: Caros amigos da Foco, tendo lido os dossiês quase na íntegra, e, por motivos de trabalho, dado apenas uma olhada muito superficial no Jornal – o que me faz crer que minhas impressões estão muito incompletas –, gostaria de começar expressando o mais profundo apreço pelo trabalho que fizeram nesta edição, uma consequência lógica e ao mesmo tempo uma expansão em todos os sentidos do que a Foco foi até agora; mudança de paradigma em relação às revistas de cinema – online ou não; e, sem vontade de exagerar, um grande acontecimento na história da crítica cinematográfica do século XXI.

Os pontos que atravessam a edição são evidentes, são comunicados de forma clara e me parecem apreensíveis para qualquer tipo de leitor, com a única exigência de que tenham um grau mínimo de atenção. Ainda que o trabalho, pela sua amplitude, possa parecer, à distância, de excessiva ambição, penso que a verdadeira crítica, como a arte, se tem algo que poderíamos chamar de “padrão”, consiste em perder a regularidade para recuperá-la novamente no ato. As relações devem ser algo que não aparecem simplesmente, mas que envolvem ativamente a imaginação do espectador ou leitor. Nesse sentido, o trabalho – por ganhar consistência e regularidade no ato de ler cada texto –, mais uma vez, me entusiasma bastante.

A primeira palavra-chave é esta: relação. São muitas as relações que aparecem ao longo da edição: das históricas às composicionais. (Eu também sinto uma afinidade muito profunda com as ideias apresentadas, desde o momento em que mencionei a Jean-Claude Rousseau que suas descrições de seus próprios filmes pareciam estar descrevendo um filme de Lang e ele desviou da pergunta.) Mas, em vez de reiterar as relações óbvias que a edição destaca, gostaria de abordar um breve punhado de tópicos que, sub-repticiamente, aparecem às vezes na superfície, como flashes, durante a leitura. Relações talvez mais ocultas, sobre as quais gostaria de ouvir suas opiniões. Com isso, espero não só aprender – esta edição da Foco já foi uma experiência pedagógica muito profunda –, mas talvez colocar sobre a mesa coisas que (só talvez) existiram no processo de trabalho apenas inconscientemente. E se isso os ajudar, melhor ainda.

Então, vamos começar.

Há um certo modo de relacionar objetos, de envolvê-los, que chama a minha atenção porque é em essência profundamente clássico, e no modo como o fizeram aparece como tal, sem deixar de ser, ao mesmo tempo, profundamente novo, por causa dos objetos aos quais é aplicado. Estou falando da polaridade. Um modelo um tanto típico na teoria da história da arte – pensemos em Wölfflin –, a polaridade está presente não apenas em Bazin – acreditar na realidade ou acreditar na imagem – ou em Sitney, mas, em outro sentido, de uma forma mais “macro”, em Wollen e Michelson. Do mesmo modo, alguns dos grandes textos da edição – penso, por exemplo, no texto de Andrade sobre Sollima [“O teatro de feira dos desertos de Almería”] –, se articulam a partir do mesmo modelo epistemológico, embora neste caso pareça indissociável da noção de dialética. Uma frase como esta: “uma forma […] que encontra o seu equilíbrio não nas dicotomias que estão em sua origem nem nas convergências que tem como destino, mas numa série de contradições sabiamente entrelaçadas que terminam por revelar as estruturas internas dos conteúdos e dos objetos que essa dialética se presta a analisar”, ou esta: “Sendo o oposto da relativização, que tende a abolir qualquer síntese, a dialética se define por um corpo-a-corpo que cristaliza as contradições e permite que as oposições se tornem meras posições, reveladas assim em toda a sua interdependência”, então, poderiam estar falando não apenas sobre Sollima, mas também sobre o trabalho crítico realizado nesta edição da Foco. O que me interessa disso tudo é a atualização do modelo polar. Embora seja óbvio que o que está acontecendo aqui é antes de tudo uma distinção do que constitui cada pólo (ou uma relativização de ambas as mitologias, da maneira como Fleischer relativizou a mise en scène) para depois dar lugar a um processo de tecelagem – de pontes que se comunicam –, eu perguntaria, primeiro, sobre esse modelo polar (não é algo análogo ao que perguntam a Aprà quando evocam Frye?), e depois, sobre os limites que esse modelo tem. Num terceiro momento viria, inevitavelmente: o que há depois de aproximar os dois pólos? Eu me pergunto se a sua empreitada não é semelhante nesse sentido à de Eisenstein de acordo com Michelson: “A concepção de montagem de Eisenstein, derivada da ortodoxia dialética, não é tão convincente teoricamente quanto é revigorante esteticamente”.

É claro que o texto intimidador de Baptista, “Mitos de origem e destino”, possui, talvez sugeridas, algumas chaves para acessar o que procuro. Mas gostaria de sugerir outra possibilidade, talvez um pouco rebuscada, mas que constituiria outro grande tema que me veio à mente depois de lê-lo, e que na verdade também é tratado brevemente no referido texto. Diz respeito ao Éden. Se o Éden que Michelson identifica [“O filme e a aspiração radical”] via a prática e a reflexão, apesar de suas bifurcações, coexistindo sob o objetivo comum de fazer avançar as coisas, a sensação que tive depois de ler o extenso mapa traçado nesta edição da Foco foi que se aquele Éden não pudesse ser recuperado nos mesmos termos, esta empresa pedagógica e afetiva – como Matheus Kerniski disse sobre Bressane – parecia sugerir uma espécie de outro Éden, um Éden “histórico” onde toda a arte e a reflexão sobre ela são históricas e contemporâneas ao mesmo tempo; as fronteiras são abolidas, coexistindo com o mesmo objetivo de fazer as coisas avançarem. Uma analogia é este breve testemunho de Brakhage sobre a exibição de um de seus filmes: “[Nathaniel] Dorsky foi o único a realmente ver que, quando a coisa esquenta em A Child’s Garden and the Serious Sea, isto é, quando somos imersos na adultidade e a imaginação da criança tenta saltar à semelhança de uma flor, algo passível de fusão com o mar, Nick viu que minha mão passa a se tornar integrada à lente. Você pode ver partes e fragmentos e sombras da minha mão bloqueando as coisas, parando-as, de modo que a minha mão se forma, entra em conflito com, e literalmente captura os arredores. E Nick viu que chegou a este ponto quando – e eu concordo – o Éden é restaurado. Mas não é como era antes, é agora mais uma lembrança. Está lá, em meio a uma série de imagens emblemáticas, como a criança e o homem e o barco e o corvo. Não é como era antes. É lembrado, entre uma série de coisas.” O paraíso recuperado é um tanto, paradoxalmente, unilateral (e talvez imaginário), já que não acontece na prática do cinema (o cinema de hoje não quer avançar nada nem “recuperar” nada) mas isso não importa, porque neste novo Éden de objetos históricos e historicizados – a series of things; relativizados – tudo pode ser observado em sua realidade estética mais plena por meio de relações estabelecidas e, assim, coexistir em direção a um mesmo fim.

A história é, então, outro dos tópicos que eu queria abordar. Em um sentido ontológico, o trabalho apresentado parece próximo de cumprir o ideal de Charles Olson: a história como função. A história do cinema como função do cinema. E outro, um tanto relacionado: “A História é a prática do espaço no tempo”. Conscientes como estamos da falta de historicidade na crítica cinematográfica atual, tal ambição me parece “necessária”, para colocá-la da forma mais vulgar possível. Como disse Eliot sobre Joyce: “É apenas um modo de controlar, de ordenar, de dar forma e significado ao imenso panorama de futilidade e anarquia que é a história contemporânea”.

(Como uma nota à parte: talvez o ponto de união entre epistemologia polar e historicidade, tocando tangencialmente o Éden, resida na figura retórica da antimetábole, que tenho a intuição – em função das frases que separam o Jornal – de que conhecem muito bem. A famosa antimetábole de De Maistre poderia muito bem vir a calhar: “o restabelecimento da Monarquia, que chamamos de contrarrevolução, não será em absoluto uma revolução contrária, mas o contrário da revolução”. Mudem ao seu gosto as palavras monarquia e revolução…)

Há muito mais para se discutir: a Itália, o presente das mitologias em si (especialmente as realistas) … Eu mal arranhei a superfície. Mas, para não me estender muito, além do que apontei acima, gostaria de fazer algumas perguntas, das quais, talvez, depois de suas respostas, mais tópicos surgirão.

Sobre a frase: “Os mitos, quando aplicados ao juízo, não podem senão distorcer os critérios de outras regiões.” O juízo, problema fundamental da crítica: o que fazer com ele? Se ao longo da história da crítica cinematográfica ele foi submetido a um diversificado número de mitos em constante mutação, o que resta dele após despojá-lo de seus mitos?

Para finalizar, vou dizer que, como já havia previsto no início, até a leitura da edição 8-9 da Foco não havia visto as reais possibilidades do formato “revista de filmes online”. Embora no escopo de seu conteúdo a revista esteja a anos-luz de todas as revistas impressas que ainda existem, acho mais interessante falar sobre as possibilidades intrínsecas do modelo de web que ela explora. Obviamente, algo tão amplo seria impossível de imprimir, mas também sua ambição totalizante e vinculante só seria compatível com o projeto original da “world wide web”. Nesse sentido, vai a minha última pergunta: será esta a vanguarda das ‘revistas de cinema’? Para conceber uma resposta positiva, seria necessário rejeitar a afirmação de Bazin de que a vanguarda só era possível quando atingia grande número de pessoas (e embora eu saiba que a Foco tem um nicho extenso de seguidores, está longe de ser massivo à la Renoir…). E isso nos remete à possibilidade histórica, aos pólos, ao Éden… enfim, que forma perfeita é o círculo.

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BRUNO ANDRADE: Caro Salvador, muito obrigado pela leitura cuidadosa, pelos elogios e pelas observações.

Com relação à questão que levantas quando fazes a analogia entre o que escrevi sobre o cinema de Sollima e o trabalho crítico que realizamos, eu me permito evocar novamente Walter Benjamin, autor da citação que abre a nova edição: ele dizia que era necessário ver o passado como saturado de “agoras” (no plural), o que vai um pouco na contramão do que se faz mais frequentemente, que é ver o agora como saturado de “passado” (no singular).

Quanto às outras perguntas que nos colocaste, a edição atual tem com as anteriores uma relação semelhante à que alguns textos possuem com outros: seguimos por algumas portas que já haviam sido abertas, mas que agora nos revelaram alguns caminhos inteiramente novos, enquanto outros dão continuidade a questões que abordamos em ocasiões passadas. É possível dizer que, ao mesmo tempo que há uma ampliação do raio de nossa pesquisa, há também um desfecho lógico para um trajeto que foi seguido até a última edição. Foi quando tivemos a oportunidade de nos colocar explicitamente o que entendíamos por cinema contemporâneo – não “o cinema feito hoje”, mas “todo o cinema feito até hoje”. No entanto, essa questão permaneceu apenas como uma proposta, pois no fim das contas não foi naquela edição que realmente a afrontamos, mas sim nesta.

Onde me parece que há não só uma expansão como uma transição para uma nova etapa, ou um novo nível de discussão crítica, é no que a ideia de “todo o cinema feito até hoje” acabou implicando, e que é o que apresentamos agora: não apenas o acréscimo do cinema das vanguardas, mas a busca pelas tensões e os atritos mais produtivos entre os diferentes pólos do imenso campo cinematográfico. Essa edição representa um gesto de ampliar a própria concepção do que significa essa frase, que acreditamos que pode, e até deve, ser ampliada mais ainda no futuro.

O que entendo por “consequência lógica”, e porque concordo com a tua observação: os números anteriores, centralizados principalmente na questão da mise en scène, do cinema de gênero ou do filme romanesco (penso aqui em Carax e Guiguet), e enfatizando na medida do possível o trabalho composicional dos cineastas nesses campos, permitiram-nos até certo ponto abordar os campos das vanguardas e do cinema experimental como um novo desafio. Caso tivéssemos feito o caminho oposto, não tenho certeza se acabaríamos conseguindo incorporar essas linhas de força tão distintas.

Nossa maior preocupação, durante todo o trabalho de concepção, foi com a maneira como os textos se ligavam uns com os outros: quais questões amplificavam, quais atritos acentuavam ou atenuavam, o que era possível incorporar a cada texto, o quanto era desejável deixar de lado. Além da ideia geral do tensionamento entre as duas vanguardas, havia o interesse de buscar referências que fossem caras a nós, e que poderiam completar uma imagem geral na medida em que o leitor perscrutasse a edição. O recorte do cinema italiano, que ronda quase todas as pautas, é aquele que provavelmente une da forma mais natural as relações históricas às composicionais (além da pauta Sollima, penso aqui no texto que Adriano Aprà escreveu sobre produções independentes que ele tem programado e exibido nos últimos anos [“A via neoexperimental do cinema italiano”]). Já no caso do western, sentimos a necessidade de acrescentar a alguns dados históricos do gênero uma exploração da sua riqueza formal (o que se vê bem nos textos de Miguel Marías e Noël Simsolo, entre outros). E há uma discussão, que já vem de outras edições, sobre um tipo de mise en scène ligada ao cinema de gênero, que tentamos levar ao limite. Esses recortes se unem e se separam em vários pontos da edição, e acredito que é esse movimento de concentração e dispersão que faz com que a participação do leitor seja bastante solicitada no decorrer das pautas.

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Archipels nitrate (Claudio Pazienza, 2009)

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LUCAS BAPTISTA: Um dos tópicos levantados, e que me parece uma boa via de acesso a outras discussões, é o problema do juízo de valor, identificado no texto “Mitos de origem e destino”. A concepção que sustenta esse texto foi informada em grande parte pela obra de Northrop Frye. É uma visão do juízo como sendo talvez inevitável, mas certamente não como o horizonte da atividade crítica. Pode ser o ponto de partida, mas não o ponto de chegada. Ao mesmo tempo – já tocando em uma das questões –, não acho que seja possível ou desejável impedir o surgimento de “mitos” na crítica. Um mito, no sentido tratado pelo texto, é uma expressão do que há de individual e parcial em determinado cinema. Como o pensamento sobre uma arte tende muitas vezes à expressão de ideais e entusiasmos, é natural que seja atravessado por mitos. O que me parece necessário é complementar a existência desses mitos com uma visão mais ampla, que toma por critério não a experiência no que ela tem de único, mas sim o conhecimento no que ele tem de universal ou coletivo. É importante que exista uma tensão entre essas funções, mas uma tensão produtiva – como a tensão entre subjetividade e objetividade. Não é, portanto, uma questão de evitar o juízo, mas de evitar que o juízo seja o fator determinante. Para isso, o método comparativo nos pareceu fundamental, ao permitir que diferentes juízos fossem postos lado a lado. Quando Paul Sharits e André Bazin são trazidos para uma discussão, por exemplo (como no texto de Guilherme Savioli, “Mecânica da incerteza”), não basta selecionar um deles como o único critério, pois isso apenas ecoaria um juízo já existente; mais interessante é reconhecer o valor parcial de cada um deles, mas também o valor de um campo onde ambos coexistem, e no qual surgem obras ainda não compreendidas adequadamente.

O que nos leva à questão da polaridade. Eu tenho a impressão de que a polaridade – e, na verdade, muito do que está implicado na pauta das vanguardas – representa aqui uma figura do que já era sugerido em edições passadas, ou pelo menos na anterior. A polaridade é uma figura compacta do comparatismo, baseada em uma oposição clara. Talvez o comparatismo seja a consequência natural de uma crítica que se afasta do circuito comercial e do caráter mais imediato das discussões contemporâneas. Na ausência de um molde jornalístico ou acadêmico, como é o nosso caso, é preciso encontrar referências próprias, dar ao leitor outras coordenadas. A pauta das vanguardas surgiu como a versão mais explícita dessa proposta, e a partir dela a mesma figura terminou sendo expandida a outras partes da edição. Nesse sentido, eu concordo que é um esforço menos convincente como “teoria”, e mais revigorante em termos de reflexão. É uma hipótese de trabalho. O que acontece depois que os pólos são aproximados? Depende de como são aproximados: num caso, a aproximação pode soar definitiva; em outro, pode levar a novas polaridades, antes desconhecidas; pode-se descobrir afinidades onde pareciam existir oposições, e vice-versa. O grande mérito disso, eu acho, é estimular o pensamento por meio de relações distantes ou inesperadas. Imagino que nisso esteja também o limite do método, e por isso ele deve ser complementado (em números futuros da Foco, ou mesmo por outras publicações) por um olhar mais contínuo historicamente, e por recortes mais concisos em termos geográficos.

Passamos, portanto, à história. Não conhecia a citação de Charles Olson, mas ela realmente descreve bem a postura que tivemos na edição. É uma postura que vê a “história do cinema” como algo que emerge dos próprios filmes, sobretudo da sua dimensão formal. É o sentido que consideramos quando usamos a expressão “história das formas”. Existe também, é claro, uma “história geral”, da qual o cinema faz parte, e que busca relacioná-lo à economia, à política, à sociologia etc. Mas, ainda que as duas esferas devam coexistir, nosso esforço foi bastante concentrado na primeira (apesar de textos mais historiográficos, como o de João Palhares sobre Sollima [“Sergio Sollima depois de Revolver”], ou algumas traduções no Jornal). Talvez as duas estejam em falta na reflexão atual, porém a primeira nos pareceu ainda mais em baixa, e vimos nosso esforço quase como uma compensação. Um olhar detido sobre as formas, com uma noção ampla da história do cinema, atravessando modos e gêneros, contextos de produção e crítica, propondo relações e visões de conjunto, não é algo que encontramos com facilidade, e é necessário que exista. Se tivesse que indicar uma crença subjacente a isso, eu diria que nós vimos o trabalho com essa dimensão “interna” do cinema como sendo preliminar a um trabalho sobre a sua dimensão “externa”. Em outras palavras, acreditamos que, seja qual for a reflexão historiográfica a ser feita sobre essas obras, ela deve necessariamente incluir essas ligações formais. Uma outra citação, de Roland Barthes, é representativa dessa postura: “É muito possível que, no plano da ‘vida’, exista apenas uma totalidade indiscernível de estruturas e de formas. Mas a ciência despreza o inefável: ela precisa falar a ‘vida’, para poder transformá-la. Contra um certo dom-quixotismo, aliás, infelizmente platônico, da síntese, toda a crítica deve admitir a ascese, o artifício da análise, e na análise, tornar apropriados os métodos e as linguagens. Menos aterrorizada pelo espectro de um ‘formalismo’, a crítica histórica teria sido, talvez, menos estéril; teria compreendido que o estudo específico das formas não contradiz em nada os princípios necessários da totalidade da História. Antes pelo contrário: quanto mais um sistema é especificamente definido em suas formas, tanto mais é dócil à crítica histórica. Parodiando uma frase conhecida, diria que um pouco de formalismo nos afasta da História, mas muito formalismo aproxima-nos dela.”

Quanto à possibilidade de um “Éden histórico”, sou reticente quanto a isso representar um objetivo alcançável, mas é certamente um ponto de referência positivo. Acho que a sugestão estava, na verdade, contida no prefácio ao número anterior, já mencionado, quando nos referimos ao interesse por “todo o cinema feito até hoje”. Um dado que nos parece emblemático dessa ideia é que, nesta edição, além dos filmes, ela terminou envolvendo o próprio quadro de textos. Incluímos autores das mais variadas gerações e nacionalidades, desde veteranos até iniciantes, com abordagens muito distintas, mas que convergiram no mesmo plano. Da mesma forma, buscamos dar continuidade ao diálogo que a revista já propunha entre artigos clássicos e artigos inéditos. Seria, então, uma coexistência de épocas e modos de crítica. Esta foi uma variedade imprevista, mas que se mostrou importante no conjunto.

Sobre o formato da revista online, muito ainda deve ser explorado, sem dúvida. Acredito que parte disso envolve o que Aprà fala sobre os critofilm. É o lado da escrita, que pode, afinal, incorporar não apenas imagens, mas também vídeos, ou mesmo usar links para tornar mais preciso o discurso. Mas há ainda o lado da concepção editorial, da relação com os filmes, os textos e o próprio leitor. Uma revista impressa tem o alcance limitado por sua distribuição, o que não acontece em revistas online. Como as fronteiras geográficas desaparecem na web, diferentes idiomas podem ali coexistir. E acima de tudo, uma revista online, por não depender de vendas dos seus exemplares, não precisa responder ao circuito comercial, ou mesmo ao cenário cultural imediato, para garantir a própria sobrevivência. É possível definir os objetos com base nos interesses dos críticos, que podem ser mais amplos e flexíveis. Pode-se dedicar anos à elaboração de um dossiê, como fizemos, considerando que os textos serão lidos menos como respostas urgentes a um cenário, e mais como uma espécie de pequeno arquivo da crítica. Isso reflete algo da cinefilia atual, que tem acesso a filmografias e bibliografias de épocas e países diversos. O entusiasta do cinema hoje se depara com uma profusão de informações, mas elas tendem a ser dispersas, desenraizadas. Nesse ambiente, uma das funções possíveis à crítica é justamente propor um contexto ou direcionamento. A “metahistória” de Frampton e as História(s) do cinema de Godard talvez sejam as grandes referências para isso na edição.

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JLG/JLG: Autorretrato de dezembro (Jean-Luc Godard, 1994)

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SALVADOR AMORES: O que eu poderia dizer agora, sem ainda ter terminado a leitura do Jornal, onde tudo parece se contrair e se expandir, é mais curto, muito menos curioso. Gostaria de começar evocando Hugh Kenner, uma figura que considero central para o número, obviamente em seu relacionamento com Pound e Frampton. Este último disse: “Parece-me que Kenner quer levar a consciência do leitor de uma visão patética a uma visão operativa da arte”, e acho que suas palavras fazem sentido para a proposta da Foco 8-9. O convite feito ao leitor é singular e generoso em nosso presente, marcado por (palavras daquele velho livro de Adorno e Horkheimer) “a bárbara ausência de relações”.

Esse é outro tema, talvez contido de uma forma ou de outra em todos os que já discutimos: as relações com o presente. (Curiosamente, vejo agora, intitularam o texto sobre Adieu au langage e Le livre d’image – que li quando ainda não tinha nome – de uma forma muito adequada [“O presente provisório do cinema”].) O crítico como o único capaz de pressentir (é curioso o quanto essa palavra se assemelha a presente, mas não sei nada sobre etimologias) as obras do futuro quando em plena força de sua liberdade imaginativa, de sua liberdade crítica (acontecerá algo análogo para prever a degeneração das formas?). Inevitavelmente, surge daí uma questão que tem a ver com a maneira de pressentir as configurações críticas do futuro. Se eu acho “Mitos de origem e destino” admirável é, em parte, por causa disso: por se aventurar a relacionar formalmente – e, por consequência, historicamente – sistemas críticos (como o resto do número faz com os sistemas dos próprios filmes) sob a aspiração de conjecturar a crítica vindoura. Toda essa vontade, que reaparece na edição, é também a identificação do limite da maioria das críticas do presente; o que [Karl] Kraus censurou em Heine: “Ele podia escrever cem páginas, mas não conseguia moldar a linguagem das cem páginas que não foram escritas”.

E é uma pena, nesse sentido, que a programação cinematográfica esteja hoje tão longe de ser uma disciplina auxiliar da crítica e da prática do cinema. À distância, por exemplo, parece que no Brasil a crítica de cinema (aquela que vocês representam) está a anos-luz do que é uma ideia de programação bastante comum. Já se foram os von Bagh, os Bénard da Costa, os Dütsch, que compreenderam o papel crucial que o programador devia assumir para que ocorram tais intercâmbios temporais (passado-presente-futuro) e de meios (reflexão-prática) … O vínculo, é claro, ainda está na figura de Aprà.

Não quero deixar de mencionar que é sugestiva a hipótese que Bruno aponta, sobre um caminho inverso ao trilhado pela Foco, já que esta começou com um interesse pelo cinema romanesco e agora o abriu à vanguarda. A crítica cinematográfica de vanguarda, não isenta de muitos dos problemas da crítica cinematográfica da tradição realista, muitas vezes recorre a uma espécie de elogio primitivista, a uma tentativa de tabula rasa; são realmente muito poucos os que alcançam aquela ‘visão operacional’ que permite as relações entre as formas de cinema em sua totalidade. (Além do mais, é difícil encontrá-lo mesmo dentro do campo limitado do que é conhecido como “cinema de vanguarda”, para além dos esforços já canônicos de Sitney). O que prevalece, como vocês disseram bem a Aprà, é uma visão acrítica, um ecumenismo, uma exaltação da ‘pura subjetividade’ – apenas esse critério da ‘experiência no que ela tem de único’ de que fala Lucas –, e um desprezo pelo desconhecido. Nesse sentido, o texto de Fred Camper [“O mito do filme de vanguarda”], que é, devo dizer, um dos meus favoritos da edição, destaca-se justamente por demonstrar a plausibilidade desse caminho inverso: partir de um conhecimento profundo da vanguarda americana para ir em direção a filmes que serviram de matriz para a vanguarda europeia, alcançando resultados análogos aos encontrados pela crítica condenada a essa tradição: os mistérios da crítica, ou todos os caminhos levam a Roma; círculos concêntricos…

É notável que existam textos individuais que explicitam sutilmente a intenção geral da edição. Além de Camper, é o caso daquele opúsculo de Lucas, que explicita a relação entre os sistemas críticos que atuam ao longo da edição; ou desse texto de Bruno sobre Godard, que faz o correspondente com as buscas gerais do número: por um lado, exercer uma crítica livre e intempestiva; por outro, buscar as tensões, os acordos entre obras de arte e temporalidades – ideia quase ausente na crítica cinematográfica, que é excitante e comum entre os grandes críticos comparatistas, de Svetlana Alpers intuindo Monet em Velázquez, a Frampton intuindo Whitehead em neurofisiologia, por meio de Hofstadter (um livro que também interessava muito a Kenner [Gödel, Escher, Bach: An Eternal Golden Braid]) – ambos, talvez mais importante, exercidos contra qualquer tentativa de monumentalização.

Por enquanto, há pouco a acrescentar; e espero não ter sido simplesmente repetitivo, mas de certa forma as questões que surgem ao ler um são respondidas pelo que diz o outro. Se eu quisesse, por exemplo, perguntar a Bruno qual o caminho que a extensão de sua ideia de “cinema contemporâneo” deveria tomar posteriormente, poderia encontrar a resposta na intervenção de Lucas: reconhecer o campo onde coexistem todas as formas e todos os juízos contrários, formular novos recortes, tudo para evitar o estupor crítico diante daqueles filmes estranhos e anômalos, que não são nem daqui nem dali, ou de nenhum dos lados ao mesmo tempo, e que constituem o presente saudável (provisório ou absoluto) e o futuro da arte cinematográfica. Já visto jamais visto, Wolfram, a saliva do Lobo, Adieu au langage

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LUCAS BAPTISTA: Não me lembrava da observação de Frampton, mas ela – aliás, como todas as citações que nos trouxe – parece indicar algo do horizonte que tivemos em mente durante esta edição. Kenner é de fato um nome importante, e um verdadeiro antídoto para a “ausência de relações”, no seu comparatismo permanente, na sua atenção às passagens e aos retornos históricos, à via de mão dupla entre as diferentes épocas. Além do termo “operacional”, o que eu destacaria, e que me parece ter a ver com nosso contexto, é o que Frampton chamou de “ampliação do alcance da sensibilidade”. O que Frampton diz é que escrever sobre cinema, pensar o cinema através de filmes e debates, o discurso sobre o cinema, em suma, é, antes de tudo, uma forma de estender o conhecimento e a percepção sobre a arte, e que isso é útil tanto para um artista como para um crítico – ambos colaboram para “fazer avançar as coisas”. Mas, para que isso ocorra na crítica, é preciso que a identificação pessoal e a valorização de certas experiências (a dimensão do pathos) sejam colocadas em suspensão. Para que as ideias de Brakhage e Mourlet, por exemplo, sejam postas lado a lado (como no texto de Fábio Visnadi, “O vão do mosaico”), é necessário observar o que, de cada formulação, responde a uma discussão local, e o que pode integrar uma discussão mais vasta e permanente. É preciso, em resumo, identificar o que é dito por certos indivíduos em determinados contextos, e o que parece ser dito por um conjunto mais amplo chamado “cinema” (o que é fundamental, inclusive, para um estudo histórico mais preciso, retomando o trecho de Barthes). Boa parte do que tentamos fazer com as traduções, a disposição dos textos e o comentário a alguns deles, foi pensado nesse sentido.

(Isso talvez soe mais teórico do que parece, mas é um direcionamento análogo ao das ciências. As ciências veem, a partir de seus objetos, um “campo de estudos”, algo maior do que os seus praticantes, ainda que composto por todos eles. Eu desconfio que a reserva de muitos com essa abordagem venha de uma noção superficial ou mesmo caricata do que seriam as ciências: frias, estéreis, distantes de qualquer trabalho com a imaginação. Nada mais diferente das concepções de Kenner e Frampton, que além de fascinados pelas ciências, viram a arte como um jogo, sujeito a regras funcionais, mas essencialmente imaginativo. O receio parece ser o de que uma afinidade da crítica com as ciências terminaria destruindo a arte. Mas não seria a visão mais redutiva de todas justamente esta, que vê a arte como algo que pode ser destruído por um olhar científico?)

Quanto à relação entre o presente e o pressentimento, eu colocaria uma dúvida. Eu tenho alguma desconfiança da crítica quando ela toma para si a tarefa de prever ou apontar o futuro das próprias realizações. Não vejo o mesmo problema na criação artística, onde o gesto vanguardista por excelência é o manifesto, a redução das possibilidades em nome de um só fundamento. Para o artista, a redução é (já que trouxemos o termo) operacional: se o discurso é redutivo, a realização da obra gera uma espécie de compensação. Mas quando a crítica passa a agir em nome de um determinado projeto, a tendência é que ocorram distorções no discurso em si, sem a contraparte. A consistência, a amplitude, a transparência, a honestidade intelectual são as baixas usuais na crítica quando ela segue este caminho, e o resultado tende a ser apenas redutivo, não operacional. Um exemplo que me vem à mente é quando falamos com Aprà sobre os cineastas ignorados ou rebaixados pelos Cahiers na fase mais célebre da revista. Em muitos casos, não parecia existir interesse em compreender certos filmes, em ampliar a sensibilidade para integrar certas formas; bastava que uma obra fosse promovida e outra demolida. Defender um certo cinema importava mais do que a compreensão das possibilidades do cinema (não é casual que vários deles tenham se tornado realizadores). A maioria das polêmicas na crítica, quando seguem este padrão, se tornam muito rapidamente “capítulos na história do gosto”. A bolsa de valores dos autores se torna o centro das atenções, a polêmica de um dia é substituída pela do próximo, e a ampliação da sensibilidade, se ocorre, tende a ocorrer apesar – e não por causa – disso.

O movimento do presente ao futuro de que fala, a meu ver, é mais produtivo quando é feito de maneira indireta. O que há de melhor nas entrevistas de Rivette (“Montagem” e “Espaço”) ou nas palestras de Sitney (“A ideia de morfologia” e “A ideia de abstração”) que traduzimos são as percepções que se sustentam mesmo depois que os juízos e as expectativas do momento foram dispersos. É o que nos parece mover o trabalho recente de Adriano Aprà, o que ele mesmo chamou de algo mais próximo da crônica. Seria isso um didatismo aberto, ou não-teleológico? Não sei… Mas eu acredito que o melhor que se pode fazer – e o que vejo de melhor nesta edição – é selecionar e dispor as peças, traçar algumas relações entre elas, apresentar sobre elas um olhar mais positivo do que propositivo, para que o futuro seja intuído, em vez de descrito como solução às deficiências do presente. Parafraseando Borges, eu diria que a razão para isso é uma só: não sabemos o que é o presente.

Já sobre o cenário da programação e curadoria, existem muitos fatores, e todos eles terminaram contribuindo com este número. O Brasil na última década teve uma série de mostras e retrospectivas dedicadas ao cinema experimental. Muitas tiveram um papel introdutório, apresentando filmes (e, em alguns casos, textos) a um público que não os conhecia. No mesmo período, surgiram inúmeras pesquisas acadêmicas dedicadas a esse cinema – o que se explica também pelo maior acesso digital às obras. Houve algo como uma “ampliação da sensibilidade”, fundamental sobretudo porque o Brasil tem uma forte herança francesa, e sempre foi mais familiarizado com as tradições do longa-metragem narrativo e do documentário. O mais importante nesse movimento, então, foi tornar as vanguardas parte do repertório da cinefilia e da academia. As revistas de crítica absorveram também essas mudanças, cada uma à sua maneira: algumas mais, outras menos, e com mais ou menos consciência. Esta edição da Foco é um resultado direto desse processo. Mas o que sentimos como uma necessidade maior, e que não encontramos com frequência, foi um olhar que considerasse duas coisas. Primeiro, que não visse o cinema experimental com o entusiasmo pela novidade, o “elogio primitivista” de que você fala, a mera exaltação de “um outro cinema”. Isso acontece tanto em recortes de curadoria como em textos de crítica, e não nos parece produtivo, de maneira alguma. Em segundo, que visse o caráter histórico e teórico do cinema experimental, de modo a localizar suas principais discussões e perceber suas ligações com o cinema narrativo. Assim como uma dedicação intensa à linhagem dos Cahiers faz com que muitos ignorem o cinema experimental, sabemos que o mesmo acontece na direção oposta, o que consideramos um problema a ser tratado. A pauta das duas vanguardas foi a chave que encontramos, praticamente o tópico ideal para lidar com a questão.

Além disso, é preciso enfatizar que o trabalho de encontrar os filmes e os artigos, de escrever os textos e convidar os colaboradores, logo se tornou para nós um trabalho de aproximar pessoas que já pareciam ter afinidades com esse tipo de empreitada. Não apenas na escrita, mas também na pesquisa, na tradução, na exibição de filmes (muitos participaram – como nós mesmos – em atividades de cineclubismo ou curadoria). Se há uma variedade de nomes nos créditos da edição, é devido a esse cenário com que nos deparamos. Não diríamos, porém, que isso é algo próprio do momento brasileiro. A edição nos tomou seis anos em parte por termos a impressão de que buscávamos exceções, desvios, ou casos dispersos. Ao mesmo tempo, nosso entusiasmo veio do fato de que, na revista, esses vários casos pareciam se comunicar uns com os outros. Em última instância, organizar a edição foi sinônimo de organizar, e de se tornar, um contexto para que isso pudesse acontecer.

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BRUNO ANDRADE: O que retoma talvez a ideia da programação como aliada da crítica é que um trabalho como esse foi, afinal, uma espécie de curadoria, não apenas de textos, mas também de filmes que consolidam algumas questões. Foi importante, para nós, que essas escolhas pudessem aflorar as “tensões e acordos” entre obras e períodos. Em outras palavras: quais textos, sobre quais filmes? Em algumas ocasiões, selecionamos artigos que acabamos dispensando, porque suas ideias haviam sido incorporadas por outro, ou já se encontravam na leitura do conjunto. O fundamental permaneceu o seguinte: o que cada filme pode sugerir, em termos de reflexão crítica, e como isso pode ser posicionado no quadro geral? À medida que avançamos, percebemos uma simbiose entre os pontos levantados, de textos sobre filmes individuais àqueles com viés mais teórico ou ensaístico. O Jornal foi construído pensando nessas relações, quase como uma rede que pudesse sustentar as pautas.

Nosso desejo consistiu em ampliar essas relações, ao mesmo tempo em que afirmamos a necessidade de cruzar as referências, os objetos, os filmes que podem de fato estimular ou potencializar as comparações produtivas. É isso o que há de interessante no trabalho crítico de Fred Camper e dos outros redatores: esse conhecimento filme a filme que pode eventualmente levar às interseções onde alguma coisa nova, uma visão, uma percepção ou uma intuição, pode surgir.

A questão do que a vanguarda compartilha com a tradição realista foi precisamente o que nos motivou a dar prosseguimento a essa tentativa de uma crítica de corte transversal. É preciso dizer que, antes de começarmos o trabalho na edição em si, houve vários pontos cardeais que nos serviram de orientação, e que depois foram o norte para várias ideias que acabaram circulando entre os pólos. No caso desse caminho que parte do romanesco e segue em direção à vanguarda, ele nos parece o que há de mais estimulante em alguns dos grandes filmes que vimos nos últimos anos: Holy Motors, À l’aventure, Al primo soffio di vento, Deux, alguns Kiarostami, a produção de Bressane nas últimas décadas… E a verdade é que nada disso, pelo menos no que diz respeito ao nosso gesto e à nossa ambição crítica, é realmente novo. Ainda que a nossa pesquisa esteja longe de ter sido exaustiva, ela não deixa de ter acumulado um número considerável de exemplos que nos antecedem. Sem dúvida existe muito material que vai nessa direção, o que abre um caminho com enorme potencial a ser ainda investigado, de modo que a constatação de que o que fizemos “não é novidade” vem acompanhada de um “ainda há muito a ser feito”.

Talvez o maior problema para nós, durante o trabalho de edição, esteja relacionado a isso que concordo em chamar de “ecumenismo”. Queríamos que todos os textos tivessem abordagens distintas, as mais distintas possíveis, porém autônomas tanto em relação aos excessos da subjetividade, da crítica como comentário personalizado de um gosto, quanto de outros excessos como o do lirismo e o da autoridade cinéfila.

Como você disse, é fundamental reconhecer o campo onde as formas coexistem, onde os juízos contrários formulam novos cortes. Nesse sentido, o trabalho diz respeito tanto à formação de um tipo de espectador quanto à produção e circulação dos filmes que instigarão nesse espectador à formulação de novas ideias e percepções. A contemporaneidade de um filme pode perfeitamente se abrir a esse espectador, como se abriu a mim, no ano de 2006, durante as primeiras visões de Juventude em marcha e Merrill’s Marauders, em 2007 numa primeira visão de Toutes les nuits e numa revisão de Une flamme dans mon coeur, em 2010 numa revisão de Two Lovers e numa primeira visão de Midareru. O que quero dizer com isso é que o presente e a contemporaneidade são duas coisas distintas: uma obra pode pertencer ao presente de 1950 e ser perfeitamente contemporânea em 2021 (Stars in My Crown), duas obras distintas no presente em que foram realizadas podem se tornar contemporâneas pela maneira como esse espectador a que me refiro é capaz de relacioná-las (Le cochon e The Act of Seeing with One’s Own Eyes). É dessa forma que entendemos que o cinema contemporâneo, se é uma expressão com algum sentido, só pode ser a soma de todo o cinema feito até hoje.

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Já visto jamais visto (Andrea Tonacci, 2013)

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