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Por que o impeachment foi tirado da mesa?

por Felipe Freller

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Uma evolução singular marca a trajetória do cenário político brasileiro em 2020. No primeiro semestre, a política parecia rumar para o colapso completo, com dois cenários vislumbrados e disputados pelos analistas. No primeiro deles, o presidente Jair Bolsonaro consumaria o “autogolpe” ventilado desde a campanha eleitoral, apoiando-se nas manifestações que pediam o fechamento do Congresso Nacional e do STF. Embora poucos democratas tenham permanecido totalmente imunes a esse medo, é também verdade que Bolsonaro nunca pareceu reunir as condições e a agregação de forças necessárias para consolidar esse “autogolpe” pura e simplesmente, abolindo de um só golpe os contrapesos dos demais poderes da República. Diante da radicalização da situação política promovida pelo próprio presidente, sobretudo ao aderir às manifestações golpistas e proclamar em frente ao Quartel General do Exército, em 19 de abril, “Não queremos negociar nada, queremos é ação pelo Brasil”, era o segundo cenário político que parecia se abrir, como única resposta possível a um líder que tensiona a tal ponto a democracia: o impeachment. A situação de Bolsonaro começava a se mostrar cada vez mais insustentável, à luz de sua recusa em enfrentar a pandemia do novo coronavírus, sua associação cada vez mais explícita a movimentos antidemocráticos, o avanço das investigações contra sua família e o abandono de figuras que o haviam apoiado em 2018, como Doria, Witzel, Caiado, Mandetta e outros.

Se a expectativa por um impeachment de Jair Bolsonaro teve um clímax, foi o discurso de despedida de Sergio Moro, em 24 de abril, em que o ex-juiz federal acusou o presidente de intervir politicamente na Polícia Federal para barrar investigações contra sua família e deu a senha para a abertura do processo de destituição. Não era o único crime de responsabilidade de Bolsonaro a vir à tona ao longo de seu mandato, nem a acusação de Moro embasou todos os pedidos de impeachment encaminhados à Câmara dos Deputados em 2020. Porém, o ministro da Justiça demissionário tinha consciência de criar, naquela sexta-feira de abril, um clima especialmente propício para o impeachment, baseado em uma lógica que ele já havia mostrado dominar bem: a do escândalo político-midiático.

O impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, já havia demonstrado que as motivações judiciais do processo de destituição são secundárias em relação às causas políticas, o que é natural em um processo fundamentalmente político. Não obstante, o fato de o impedimento de Rousseff não ter partido de um escândalo específico envolvendo a sua pessoa, mas ter resultado antes de uma campanha mais geral contra o Partido dos Trabalhadores (PT), tornou o processo uma longa luta política de quase dois anos, cujo resultado até hoje é contestado por uma parte expressiva da sociedade brasileira. A acusação de Moro, ao contrário, prometia abrir um processo mais rápido e pontual, que lembrasse o impeachment de Fernando Collor. Um fato simples e facilmente demonstrável (atestado sem ambiguidades pela famosa reunião ministerial de 22 de abril) serviria de estopim para destituir sem grandes contestações (salvo de uma inexpressiva base de apoiadores fanáticos) um presidente corrupto, inepto, isolado politicamente e responsável por uma das maiores crises da história brasileira. Ao menos, parece ter sido esse o cenário imaginado por Moro, que somaria a seu currículo de Lava Jato o papel de “estrela” do impeachment de Bolsonaro, credenciando-se para 2022 ao mesmo tempo em que se vingaria das humilhações infligidas pelo presidente, além de passar a imagem (enganosa) de nunca ter se associado verdadeiramente a ele. Não eram poucos os que imaginavam que Bolsonaro não sobreviveria muitos dias a uma eventual demissão de Moro, ainda mais de um Moro que sai atirando.

Pois bem, nos meses seguintes, os dois cenários vislumbrados no primeiro semestre foram se dissipando. As manifestações golpistas de domingo foram cessando, e, o que interessa destacar, a pauta do impeachment foi se esvaziando. Os movimentos de Bolsonaro, voluntários e involuntários, que lhe deram uma sobrevida são conhecidos. Por um lado, a aproximação com o chamado “centrão”, facilitada pela saída de Moro, impediu a formação de uma maioria parlamentar pró-impeachment. Por outro lado, o auxílio emergencial, aprovado contra a vontade do governo, acabou revertendo a queda de popularidade de Bolsonaro e enterrando o clima para sua destituição. Outros fatores merecem ser destacados: apesar de se esforçar, desde o início do mandato, para parecer mais sensato do que Bolsonaro, o vice-presidente Hamilton Mourão não parece contar ainda com credenciais para ter a confiança da classe política e dos setores da sociedade que defendem a democracia. A linha política de um eventual governo encabeçado pelo general da reserva ainda é, no mínimo, uma grande incógnita.

O protagonismo que Moro pretendia ter no processo de impeachment de Bolsonaro tampouco pode ser negligenciado para explicar por que a oposição não embarcou com entusiasmo e unidade na oportunidade que se abriu em 24 de abril. “Não pode haver inversão da história. O Bolsonaro é filho do Moro, e não o Moro cria do Bolsonaro. Nessa disputa toda, os dois são bandidos, mas é o Bolsonaro que é a cria e não o contrário. E os dois são filhos das mentiras inventadas pela Globo”, publicou o ex-presidente Lula no Twitter no dia seguinte à demissão de Moro, deixando claro que o inimigo principal continuava sendo o ex-juiz da Lava Jato, de quem Bolsonaro seria apenas um rebento, e não o inverso. Percebia-se, assim, que o impeachment baseado na lógica do escândalo político-midiático não seria tão simples quanto parecia ter suposto Moro: afinal, o escândalo político-midiático tem protagonistas que podem querer usufruir desse prestígio nas eleições seguintes, e as forças políticas que poderiam se interessar pela destituição de Bolsonaro estavam longe de desejar um processo em que o ex-ministro da Justiça pudesse posar de “estrela”.

Desse modo, o clímax foi se transformando em anticlímax, e a crise política aberta por Bolsonaro — a qual deveria, como toda crise política, dar lugar a uma decisão sobre o que fazer — foi cedendo espaço à acomodação. O presidente precisou recuar da retórica golpista diante dos inquéritos abertos pelo STF e do avanço das investigações contra sua família (notadamente após a prisão de Fabrício Queiroz, em 18 de junho), contentando-se, por ora, em se acomodar à política do “centrão”. As demais forças políticas olham, com uma precipitação inusitada, para 2022, procurando adiantar um cenário eleitoral totalmente imprevisível, em que, dependendo das escolhas dos próximos dois anos, Bolsonaro pode chegar como favorito ou sem força sequer para ir ao segundo turno. Enquanto isso, o impeachment é tirado definitivamente da mesa, e qualquer decisão sobre como sair da crise é empurrada para o eleitor de 2022.

Assim, dificuldades institucionais do processo de impeachment no Brasil, assim como escolhas erradas da oposição, contribuíram para afastar, por ora, a perspectiva de destituição de Bolsonaro. Parte dessas dificuldades institucionais já se mostrou no impeachment de Rousseff. A passagem do poder ao vice-presidente, em caso de impedimento do cabeça de chapa, tem se revelado um verdadeiro obstáculo. Em 2016, a ascensão à presidência de um vice que não tinha compromisso com o programa vencedor em 2014 e estava disposto a se aliar aos derrotados tornou o impeachment uma mudança de governo não democrática (é verdade que o PT tem responsabilidades por ter indicado duas vezes Michel Temer para a vice-presidência). No governo Bolsonaro, as incógnitas sobre Mourão servem como um escudo para o impeachment — o que é sabido ter pesado na própria escolha do vice. Diante desses cenários, a possibilidade de convocação de novas eleições em caso de impeachment deveria ser cogitada em eventuais projetos de reforma institucional.

Além disso, a dependência do impeachment em relação à lógica do escândalo político-midiático tem se tornado um empecilho. Em 2016, a ausência de escândalo envolvendo diretamente Rousseff contribuiu para macular a legitimidade do processo de impeachment — sendo que a grave crise política por que o país passava justificava uma decisão a respeito do que fazer, e a Constituição não oferecia outros caminhos além do impedimento. Em 2020, o principal escândalo político-midiático que despontou não pareceu oportuno aos principais partidos de oposição, que cometeram o erro de se acomodar à perspectiva de mais dois anos de governo Bolsonaro. Ora, uma reforma institucional seria bem-vinda, para tornar o processo de impeachment mais “natural”, por assim dizer. Ou seja, o Congresso Nacional deveria ter o direito de julgar discricionariamente, em momentos críticos, a condução global do governo, sem que esse julgamento precisasse partir de um crime específico estipulado pela lei. O autor franco-suíço Benjamin Constant (1767-1830), discutindo a responsabilidade dos ministros (chamada de impeachment na Inglaterra), argumentava ser “ilusória toda tentativa de redigir sobre a responsabilidade uma lei precisa e detalhada, como devem ser as leis criminais”, pois a previsão de todas as maneiras pelas quais um governante pode prejudicar seu país e precisar ser julgado “se tornaria um tratado de história e de política, e suas disposições só se refeririam ao passado”.[1] Nem mesmo longos tratados de história e de política seriam capazes de prever todos os danos que Bolsonaro proporciona ao Brasil — da recusa em enfrentar a pandemia ao emparelhamento das instituições de controle, da destruição dos estabelecimentos culturais e educacionais à catástrofe ambiental e ao isolamento internacional.

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Benjamin Constant, 1847

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São esses danos ao Brasil que tornam urgente o processo de impeachment de Bolsonaro. Se esse acidente infeliz da vida política nacional ameaça efetivamente a continuidade da democracia, ainda é cedo para dizer. O que é certo é que a grave crise política, econômica, sanitária e civilizacional por que passa o Brasil exige um julgamento público da conduta do presidente — mesmo que ainda não haja votos suficientes para o impeachment no Congresso Nacional. Se retornarmos a Constant, veremos que o objetivo primordial da responsabilização dos governantes não é sua punição, mas “fomentar na nação, pela vigilância de seus representantes, pela publicidade de seus debates, e pelo exercício da liberdade de imprensa, aplicado à análise de todos os atos ministeriais, um espírito de exame, um interesse habitual na manutenção da Constituição do Estado, uma participação constante nos negócios, em poucas palavras, um sentimento animado de vida política”.[2] A acomodação institucional que se seguiu às crises provocadas por Bolsonaro contribui, ao contrário, para normalizar o atual estado de coisas, prejudicando o “espírito de exame” dos cidadãos brasileiros e abrindo um caminho perigoso para 2022. É por isso que, em 2021, é desejável que o impeachment volte a ser posto na mesa, com ou sem escândalo político-midiático.

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Cemitério Parque Taruma, em Manaus (Michael Dantas/AFP)

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Notas:

[1] CONSTANT, B. Cours de politique constitutionnelle. I. Genebra/Paris: Slatkine, 1982, p. 405-406. Tradução minha.

[2] Ibidem, p. 427. Tradução minha.

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Felipe Freller

Felipe Freller é doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP) e em Estudos Políticos pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), na França. É autor do livro Quando é preciso decidir: Benjamin Constant e o problema do arbítrio (Appris, 2021), derivado da tese de doutorado vencedora do Grande Prêmio CAPES de Tese Oscar Niemeyer 2021 do Colégio de Humanidades. Atualmente realiza pesquisa de pós-doutorado no Departamento de Filosofia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), com bolsa da FAPESP, e é pesquisador associado do Centre d’Études Sociologiques et Politiques Raymond Aron da École des Hautes Études en Sciences Sociales (CESPRA-EHESS).