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A persistente vulnerabilidade da democracia liberal

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O ensaio a seguir foi publicado originalmente por William A. Galston, professor de estudos de governança na Brookings Institution, no Journal of Democracy (vol. 10, n. 02, outubro de 2020). O conteúdo aqui reproduzido — uma adaptação de seu livro Anti-Pluralism: The Populist Threat to Liberal Democracy — faz parte da parceria institucional para produção e divulgação de conteúdo, gratuito e de livre acesso, firmada entre o Estado da Arte e a Fundação Fernando Henrique Cardoso.

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William A. Galston

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A persistente vulnerabilidade da democracia liberal

por William A. Gaslton

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A democracia liberal está sob pressão e na defensiva. Após um período de ascensão que durou três décadas, com o número de democracias liberais atingindo seu pico histórico em 2005, os últimos catorze anos testemunharam um declínio constante. Muitas democracias liberais perderam sua vitalidade e apoio popular; algumas perderam características fundamentais da forma liberal-democrática de governo; outras as abandonaram de vez. Na Hungria, na Turquia, na Índia e no Brasil, líderes de mentalidade autoritária empunhando credenciais democráticas tentaram cercear os direitos de minorias e a competição política. Muitos desses líderes apropriaram-se da pandemia de Covid-19 para expandir seus poderes especiais, que relutarão em abdicar ao fim da crise. A liberdade de imprensa está sob ameaça, assim como o Estado de direito e a coexistência pacífica de grupos étnicos e religiosos em sociedades diversas.

Muito antes do início da pandemia de Covid-19, políticos e intelectuais antiliberais haviam lançado uma lista de acusações contra o liberalismo (veja abaixo). Populistas acusaram o liberalismo de ter se tornado uma desculpa para que elitistas antidemocráticos tomassem o poder dos cidadãos comuns ao mesmo tempo em que iam contra seus interesses econômicos. Nacionalistas alegavam que o liberalismo construiu leis e instituições internacionais que violavam a soberania das nações e as impediam de perseguir interesses nacionais legítimos. Tradicionalistas alegavam que o individualismo liberal corroía comunidades morais e religiosas e que a liberdade liberal eliminara a distinção entre liberdade e permissão. Se tudo for questão de escolha, argumentavam eles, então tudo é permitido, e o niilismo é inevitável.

Apesar de sua atualidade na política de hoje, essas acusações não são novas e, de um modo geral, nem verdadeiras. Mas forças mais profundas estão em curso. Como qualquer outra forma de governo, a democracia liberal possui fraquezas estruturais intrínsecas que as dificuldades atuais exacerbam, mas não criam. Essas fraquezas residem no código genético da democracia liberal, passadas de geração a geração, cuja expressão varia com as circunstâncias. Uma liderança sensata pode mitigar essas fraquezas, mas não as eliminar. São uma condição a ser tratada, não uma doença a ser curada.

Acadêmicos e analistas políticos estudaram extensivamente as causas do atual retrocesso liberal-democrático. O diagnóstico agora é claro, mesmo que haja discordância quanto aos pesos atribuídos a causas específicas.

A crise financeira global que começou em 2008 minou a confiança no consenso neoliberal que havia dominado a política desde a queda do Muro de Berlim (1989) e o colapso da União Soviética (1991). Enquanto o setor manufatureiro passava por dificuldades, muitos cidadãos da classe média e da classe operária tornaram-se vítimas da globalização e da ascensão da economia da informação. A recuperação incrivelmente lenta e a adoção prematura de políticas de austeridade fiscal alimentaram o descontentamento público, bem como o crescimento da desigualdade entre regiões geográficas e entre as classes econômicas de cada país.

O descontentamento público ia muito além das questões econômicas. À medida que a globalização se intensificava e a relevância das fronteiras nacionais diminuía (especialmente entre os países da União Europeia), o ritmo da imigração se acelerou e as populações nacionais tornaram-se mais diversas. Alguns cidadãos — sobretudo urbanos e com alta escolaridade — viam isso com bons olhos; outros, nem tanto. A crise dos refugiados na Europa em 2015 intensificou essa divisão, e os partidos anti-imigração viram seu apoio popular disparar.

A religião foi outra fonte de conflito cultural. Em sociedades democráticas onde a filiação às religiões tradicionais permaneceu ampla, o componente “liberal” da democracia liberal tornou-se sinônimo de atitudes antitradicionais, especialmente em questões de sexualidade e relações de gênero. Os tradicionalistas se ressentiam do que viam como tentativas de elites culturais, governos e instituições internacionais de impor suas visões sobre os dissidentes — e se organizaram contra isso.

Além da economia e da cultura, a governança tornou-se uma terceira fonte de insatisfação com a democracia liberal. Em muitas democracias consolidadas, havia um duopólio de partidos políticos de centro-esquerda e de centro-direita que se alternavam no poder — e, por vezes, construíam coalizões amplas por meio das quais governavam juntos — , fazendo com que muitos cidadãos se sentissem pouco representados. Em democracias emergentes dos países da antiga União Soviética, a esperança democrática se apagou no meio de denúncias de corrupção, em que elites (muitas das quais antigos membros do regime comunista) lucravam com o processo desordenado de privatização dos ativos estatais. Em todo o mundo democrático, cidadãos comuns criticavam o que viam como instituições pouco representativas e burocratas que dominavam órgãos financeiros e de regulação.

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Berlin, 1989

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Antiliberalismo e descontentamento

Essa tríade de descontentamento abriu as portas a regimes que nunca fingiram ser liberais-democráticos — a Rússia de Vladimir Putin e a China de Xi Jinping —, e que viam o enfraquecimento da democracia liberal como algo favorável a suas aspirações. A Rússia não mediu esforços para bloquear a ascensão de instituições democráticas estáveis na Ucrânia e enfraquecer a União Europeia. A China usou seu crescente poder econômico para afastar países em desenvolvimento da órbita democrática e torná-los mais dependentes do modelo chinês de capitalismo estatal autoritário.

Isso não é algo novo. Nos últimos dois séculos, cada era teve sua forma preponderante de antiliberalismo. No século 19, foi a aliança entre monarquias conservadoras e a Igreja Católica. Durante grande parte do século 20, foram os regimes liderados por ideologias antiliberais, como o comunismo e o fascismo.

Atualmente, o maior desafio à democracia liberal não vem de uma ameaça externa, mas de descontentamentos internos. Alguns cidadãos de democracias liberais admiram os princípios de seu sistema, mas um número maior de cidadãos as apoia por conta de seu desempenho. Se governos liberais-democráticos não forem capazes de dar resposta aos problemas mais urgentes de seus países de uma maneira que conquiste a aprovação da população, o apoio a instituições liberais-democráticas diminuirá, abrindo portas para alternativas. A pandemia de Covid-19 é apenas o mais recente teste de competência de democracias liberais. Muitas delas pareciam estar prestes a ser reprovadas, enquanto governos autoritários se gabavam de seus superiores poderes de organização e, no caso da China, até mesmo se apresentavam também como fontes de generosidade internacional.

Diferentemente da ascensão da oposição à democracia liberal nos anos 1920 e 1930, a dissidência atual normalmente assume a forma de insurgências populistas, que dizem querer restaurar e não substituir a democracia. Na linguagem contemporânea, “populismo” significa um tipo distinto de política: a ascensão das pessoas comuns contra aqueles vistos como detentores de excessivo poder político, econômico e cultural. O populismo normalmente traz à tona um líder forte que consegue, ao mesmo tempo, canalizar os sentimentos da população e direcionar sua luta contra a concentração de poder. Líderes populistas atacam os “inimigos do povo” em termos moralistas, chamando-os de conspiradores corruptos contra cidadãos comuns, frequentemente com ligações ocultas com forças externas. O sucesso de movimentos e líderes populistas depende de um constante conflito com esses inimigos e uma luta sem fim contra as forças que representam. Programas populistas criam distinções que atraem ainda mais conflitos: são nacionalistas e não internacionalistas, e protecionistas no sentido amplo do termo, apresentando-se como baluartes contra bens importados, imigração estrangeira e ideias de fora. Muitos populistas nacionalistas se unem a forças culturalmente conservadoras contra o que veem como um ataque progressista à moralidade tradicional.

A visão populista é dicotômica, dividindo a sociedade em duas forças opostas, cada qual com um interesse comum e um objetivo único. Uma dessas forças (“o povo”) é completamente virtuosa; a outra (“a elite”) é irremediavelmente maligna. A força do mal é o ingrediente ativo, trabalhando contra os interesses de sua vítima, a força do bem. Como as pessoas de bem não são poderosas o bastante para superar as forças sombrias, normalmente buscam um líder forte para defendê-las contra o mal que as oprime e as priva do que é seu por direito. Os populistas dizem atacar o liberalismo em nome da democracia. Conseguem fazê-lo porque a democracia traz consigo princípios que operam em diferentes dimensões. “Democracia” diz respeito a um modo de governo, enquanto “liberal” define o campo no qual esse modo de governo pode operar de maneira legítima. No conceito de democracia liberal, o antônimo de “liberal” não é “conservador”, mas “total”. A democracia liberal é uma democracia limitada pelo medo da tirania e pelo princípio dos direitos individuais.

Historicamente, os liberais temiam qualquer governo — democrático ou não — que desejasse que suas decisões tivessem alcance ilimitado. Um governo ilimitado é tirânico de nascença, e basta um demagogo hábil para fazer dessa ameaça uma realidade. Por prudência, portanto, regimes liberais normalmente possuem múltiplos centros de poder, muitas vezes competindo entre si.

Mas os liberais também apresentavam princípios e razões para um governo limitado. Os indivíduos não são apenas moralmente iguais, como dizem os democratas; cada pessoa, enquanto ser humano, possui direitos e liberdades que nenhum governo pode tirar. Um objetivo fundamental do governo é garantir esses direitos, e as ações do governo que os violam são, por definição, ilegítimas. Obviamente, indivíduos podem concordar em limitar alguns direitos quando conflitam com outros direitos. Em uma emergência, por exemplo, o exercício pleno do direito à liberdade pode conflitar com o direito à vida. Mas direitos básicos são inalienáveis, mesmo por uma maioria popular, e a população sempre detém esses direitos dos quais temporariamente abdicam.

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Vladimir Putin e Donald Trump

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O que o liberalismo não é

Os antiliberais atuais — populistas, nacionalistas e tradicionalistas — valem-se de uma tradição venerável que ataca o liberalismo pelo que ele não é. Aqui, resumidamente, estão algumas das acusações enganosas que costumam ser lançadas contra ele, seguidas de breves comentários nossos.

Como o liberalismo se baseia em uma antropologia que exalta o individualismo e escolhas irrestritas e nega as restrições do que é dado e não escolhido, ele não consegue acomodar o tradicionalismo cultural. Essa acusação apoia-se em uma velha incapacidade de distinguir entre política e cultura. No liberalismo, a escolha funciona como uma fonte de autoridade política. Como coloca a Declaração de Independência dos Estados Unidos, nossas instituições de governo “[derivam] seus justos poderes do consentimento dos governados”. Portanto, o liberalismo precisa rejeitar o poder divino dos reis e do clero. Aqueles que acreditam que a autoridade política legítima deriva das instituições e ensinamentos de uma crença específica são, por princípio, antiliberais.

Em nossa vida social e cultural, em contraste, há muitas fontes de autoridade diferentes. As famílias gozam de autoridade legítima sobre seus filhos, independentemente do que pensam crianças indisciplinadas e adolescentes rebeldes. Nenhum liberal por princípio argumentaria que a Igreja Católica precise se reorganizar de acordo com os princípios da soberania popular. Comunidades tradicionais como os amish e os judeus ultraortodoxos podem viver suas vidas de acordo com práticas ancestrais que regimes liberais precisam permitir, a não ser que tais práticas violem direitos individuais ou ameacem bens públicos básicos, como a saúde pública.

Mas, em sociedades liberais, os indivíduos que crescem em comunidades tradicionais não podem ser impedidos de repudiar essas comunidades quando se tornam adultos. Não escolhemos as circunstâncias nas quais nascemos, mas, em algum momento, adquirimos o direito de deixá-las, e o Estado liberal pode garantir esse direito contra forças comunais que o neguem.

Obviamente, a exposição ao ?que é proibido é algo desafiador para as comunidades tradicionais. Até mesmo as crianças mais isoladas um dia descobrem que há um mundo além das fronteiras de seu grupo e que podem fazer parte dele, mesmo que a um grande custo. Grupos cujo modo de vida depende de um autocontrole meticulosamente cultivado estão sujeitos a ouvir os chamados da autoexpressão e da autorrealização.

Não é por acaso que o judaísmo tradicional chama aqueles que ignoram as leis judaicas de “epicuristas”. A pressuposição é que os violadores que abandonam as restrições da lei o fazem em busca de prazeres proibidos. A libertação dos desejos humanos é sempre o caminho mais fácil, contra o qual as comunidades tradicionais sempre lutaram.

Resumindo, os antiliberais têm razão ao observar que os vários modos de vida existentes nas sociedades liberais complicam a tarefa de preservar comunidades tradicionais, mas se equivocam ao reclamar que a diversidade liberal torna a preservação cultural impossível. Em sociedades liberais, comunidades tradicionais precisam prosperar pelos atrativos de seu modo de vida, não porque seus membros não têm outra escolha senão lá permanecer.

O liberalismo abraça uma narrativa sem fundamento da liberdade enquanto escolha ilimitada, tornando as sociedades liberais incapazes de distinguir entre liberdade e permissão ou entre virtude e vício. Há algum fundamento nessa acusação. As sociedades liberais de fato permitem que indivíduos tenham uma gama maior de escolhas, por exemplo, sobre expressão de gênero e conduta sexual, do que sociedades tradicionais.

Mas um foco indevido nessas questões é uma forma de miopia moral. A ideia de que sociedades liberais são neutras em termos de valores, ou que desejam ou possam sê-lo, não resiste a uma observação atenta. Essas sociedades abraçam um conjunto de virtudes, incluindo trabalho, respeito às leis, responsabilidade por si e pela família, tolerância a diferenças legítimas, honestidade nas interações públicas e disposição de exercer sua cidadania. Sem autocontrole, o bom funcionamento de sociedades liberais heterogêneas torna-se impossível. As profissões nessas sociedades — professores, bombeiros, policiais, militares, profissionais da saúde, entre outros — personificam códigos de conduta permeados por virtudes e princípios morais, que buscam transmitir a futuros praticantes. A importância real desses códigos tem estado em evidência na resposta à pandemia de Covid-19.

Num nível mais profundo, o conceito de escolha individual, da qual depende o liberalismo, apoia-se em algo não escolhido — ou seja, nos direitos de que cada indivíduo é “dotado”, de acordo com a crença liberal americana. Não escolhemos ser portadores desses direitos, e não podemos escolher renunciar a eles. Também não podemos tirá-los de outras pessoas. São um fato moral “autoevidente” que restringe o que é certo fazer.

O liberalismo é uma forma de imperialismo cultural que força os proponentes de valores tradicionais a abandonar suas crenças e se curvar diante de uma nova ortodoxia. Como qualquer outra crença, infelizmente, o liberalismo possui seu quinhão de fanáticos que prega o liberalismo para além do que seria razoável. Mas o êxito do liberalismo depende da distinção entre a esfera pública, governada por princípios públicos, e uma esfera privada na qual crenças e práticas que conflitam com as normas públicas estão protegidas.

Por exemplo, a Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu que o casamento entre pessoas do mesmo sexo é um direito individual e não uma opção que as autoridades públicas podem garantir ou rejeitar. Mas isso não significa que qualquer autoridade pública tenha o direito de exigir que comunidades cuja fé conflite com essa decisão reconheçam, e menos ainda que celebrem, casamento entre pessoas do mesmo sexo. Fazê-lo significaria transformar a legitimidade política do liberalismo em uma ortodoxia cultural opressiva.

Os críticos do liberalismo contemporâneo contestarão (corretamente) dizendo que, na prática, as coisas não são tão simples. E os donos de negócios, para quem prestar certos serviços a casais do mesmo sexo violaria sua crença religiosa? O que devem fazer as famílias moralmente tradicionais quando livros didáticos de escolas públicas promovem normas sobre casamento com as quais essas famílias não concordam?

Essas são questões difíceis, mas não precisam ser insolúveis. Por exemplo, a Lei de Habitação Justa de 1968, que proíbe a discriminação nas vendas e aluguéis de imóveis, contém o que é conhecido por “exceção da Sra. Murphy”: se uma moradia possuir quatro ou menos unidades para alugar e o proprietário viver em uma dessas unidades, essa moradia está isenta dos dispositivos de não discriminação da lei. A ideia é que a casa de um indivíduo é mais privada do que pública e deveria ser tratada de maneira diferente. Proprietários não deveriam ser forçados a alugar a casa de fundo a alguém que não deseje que more lá, por qualquer motivo que seja.

Como demonstrou o movimento feminista, a linha que divide o público do privado não deveria ser vista como algo imutável. A antiga tradição que colocava a violência contra o cônjuge na esfera privada perdeu espaço por razões imperiosas pelas quais ela deveria ser tratada como uma questão pública. Um lar não cria uma muralha protetora para violência e agressão, que violam direitos humanos básicos e a ordem de uma sociedade.

O ponto é: um liberalismo fiel a seus princípios basilares está atento à diferença entre o que é público e o que não é. Um liberalismo que ignora esse princípio em nome de outros objetivos torna-se iliberal, empunhando uma espada contra seus adversários. Alternativas tradicionalistas e autoritárias ao liberalismo, no entanto, não oferecem uma distinção mais coerente entre o público e o privado: não oferecem distinção nenhuma. Sob seu comando, o governo estaria livre para controlar cada aspecto de nossas vidas.

Liberais não podem ser nacionalistas. Essa acusação é incorreta, tanto histórica como filosoficamente. Durante o século 19, muitas revoltas nacionalistas contra a opressão local e imperial foram inspiradas em princípios liberais. (A luta de Garibaldi para liberar e unificar a Itália é um exemplo clássico.) Influenciados por Isaiah Berlin, pensadores políticos contemporâneos como David Miller e Yael Tamir defenderam o nacionalismo liberal como uma alternativa coerente ao nacionalismo iliberal e ao universalismo liberal.

Duas características do liberalismo inspiraram essa crítica infundada. Os liberais são capazes de aceitar uma identidade nacional com base em tradições históricas e culturais, mas não com base em raça ou etnia. Os liberais, em outras palavras, podem ser nacionalistas cívicos, mas não etnonacionalistas. Exaltar uma raça ou grupo étnico acima dos demais em um espaço cívico compartilhado é incompatível com princípios liberais fundamentais.

O liberalismo abraça princípios universais, dando origem à conclusão equivocada de que os liberais não são capazes de aceitar preferências nacionais. Non sequitur. Embora o peso e valor moral de seu filho seja igual ao do meu, isso não significa que sou obrigado a me importar com seu filho tanto quanto me importo com o meu. De maneira similar, o princípio de que “todos os homens são criados iguais” não implica que os seres humanos não possam viver em países separados e independentes, ou que os cidadãos de um país sejam proibidos de se importar mais com seus concidadãos do que com os cidadãos de outros países. Dentro de certos limites, o liberalismo é compatível com uma autopreferência coletiva, políticas migratórias restritivas e fronteiras nacionais bem definidas. O fato de que alguns liberais defendam a abertura de fronteiras não implica que todos os liberais precisam fazê-lo por princípio.

O liberalismo exige que seus seguidores apoiem o internacionalismo wilsoniano, uma base insustentável para as relações internacionais. Isso não é verdade. Essa versão de internacionalismo, na verdade, é uma aplicação duvidosa de princípios liberais na esfera da política externa. Woodrow Wilson acreditava que uma ordem internacional com base em regras e supervisionada por uma organização internacional ofereceria uma alternativa efetiva à guerra como instrumento de política de Estado. No entanto, o liberalismo em um país é uma alternativa coerente que há muito orienta a política externa americana. Assim seria uma organização internacional que permitisse a adesão apenas de democracias liberais, que supostamente é a regra da União Europeia.

Há espaço para um debate legítimo sobre a base do direito internacional e o grau no qual instituições internacionais podem devidamente restringir a defesa de interesses nacionais. Mas a alegação de que as nações são livres para definir e perseguir seus próprios interesses da maneira que desejarem não se sustenta, e a história do século 19 ilustra o desastre a que esse argumento pode levar.

O liberalismo significa apoiar a ideia de que a história progride de maneira inexorável em direção ao liberalismo como o princípio que guiará a vida política em todos os lugares. Embora seja verdade que muitos liberais abraçaram a crença de que a história está do seu lado, nem todos o fazem — nem deveriam. Mesmo se você acreditar que o pensamento racional nos obriga a abraçar princípios liberais, não se pode concluir a partir disso que a história esteja se movendo de maneira inexorável em uma direção que favoreça o liberalismo, a menos que você também acredite que a razão seja a força dominante guiando as transformações históricas. Os liberais pessimistas são capazes de imaginar uma época na qual a política liberal poderia se afundar numa onda de autoritarismo sem deixar de ser, em princípio, a melhor forma de governo. Os liberais não precisam acreditar que haja uma inclinação da história em direção à justiça ou alguma outra virtude humana. Liberais sensatos entendem que não há nada de inevitável no sucesso do liberalismo, dentro ou fora do país e, se sua sobrevivência for considerada como algo certo, ele pode fracassar.

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Sir Isaiah Berlin

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Fragilidades duradouras

Embora essas conhecidas críticas à democracia liberal representem entendimentos equivocados e, em alguns casos, interpretações errôneas deliberadas, eliminá-las revela as dificuldades mais profundas que a democracia liberal sempre enfrentará. De fato, a lista das vulnerabilidades inevitáveis da democracia liberal é impressionante.

O liberalismo se apoia em um individualismo baseado em princípios, que combina as bênçãos da liberdade aos fardos da responsabilidade pessoal. Quando esses fardos são mais do que conseguimos suportar, o desejo por um líder salvador que nos livre deles pode tornar-se incontrolável.

ethos liberal é decisivamente não heroico, valorizando mais a segurança do que o risco e a paz mais do que a guerra — o que não significa que risco e guerra possam sempre ser evitados, ou que alguns membros de sociedades liberais não valorizem os riscos ou a vida militar. Mas, na maior parte das vezes, regimes liberais tentam oferecer a seus cidadãos o máximo de segurança possível, e veem a guerra como um mal necessário e não como uma empreitada gloriosa. Contra esse pano de fundo, a vida liberal pode parecer pouco empolgante ou nobre, alimentando o desejo por conflito e aventura. E, como observaram teóricos como Karl Popper e Isaiah Berlin, o liberalismo normalmente abraça um ethos aparentemente mundano de progresso incremental por tentativa e erro. O liberalismo, portanto, tende a desapontar aqueles que aspiram a ideais românticos, grandes reformas e líderes visionários.

A democracia liberal pressupõe atitude e psicologia política distintas. Muitos de seus requisitos são difíceis e exigem autocontrole — por exemplo, respeito pelo Estado de direito e paciência no processo de legislar. Para aqueles que prezam por ações decisivas, essas restrições irritam e podem tornar atraente a ideia de uma governança autoritária.

Os cidadãos muitas vezes desejam mais unidade e solidariedade do que a vida liberal normalmente oferece, e a comunidade — especialmente a comunidade da tribo — pode ser uma alternativa satisfatória à solidão da autoexpressão individual. O liberalismo, com sua essência antitribal e seus conceitos abstratos de cidadania igualitária, regras objetivas e humanidade comum, pode muitas vezes se ver forçado a ir contra a corrente de sentimentos amplamente difundidos. O apoio aberto do antiliberalismo ao tribalismo, sua atitude maniqueísta e o constante conflito que isso acarreta tiram sua força da persistente incompletude da vida em sociedades liberais, oferecendo potentes matizes de amor e ódio que o liberalismo, com seus tons mais cinzas, não é capaz de oferecer. A antipatia tem seu apelo, e o conflito, como o amor, pode nos fazer sentir mais vivos.

As sociedades liberais-democráticas exigem que cada cidadão compartilhe o espaço cívico com outras pessoas de diferentes cores e visões. Alguns acham isso bastante estimulante; outros se irritam com isso. Não se espera que os cidadãos concordem ou gostem um dos outros, mas espera-se que permitam que outros possam falar e agir como desejam, dentro de limites amplos. O desejo de suprimir opiniões e comportamentos considerados ofensivos é instintivo. Reprimir esse sentimento vai contra a corrente e exige prática e doutrinação. Mesmo quando esse processo de formação social é bem sucedido, um resíduo do desejo de suprimir a diferença permanece, e o resultado é o conflito interno. Essa é a vertente especificamente liberal-democrática da dolorosa renúncia aos impulsos instintivos analisada por Sigmund Freud em O mal-estar na civilização.

Assim como Freud explorou a dimensão da tragédia original da qual a civilização nunca consegue se livrar completamente, façamos uma pausa para refletir sobre as vulnerabilidades com as quais a democracia liberal (enfrentando seu próprio destino trágico) sempre precisará lidar.

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A complexidade da motivação humana.

Desde o início, a democracia liberal esteve vinculada ao racionalismo — o respeito à ciência, ao conhecimento técnico, a evidências empíricas e a argumentos racionais, de maneira geral. O racionalismo gerou a esperança de que a própria política — o desenho de políticas públicas e instituições basilares — poderia ser movida pela razão. Como argumentou Alexander Hamilton no início de O Federalista, a questão é: “São as sociedades dos homens realmente capazes de instituir um bom governo a partir da reflexão e da escolha, ou estão fadadas a depender para sempre do acaso e da força em suas organizações políticas?”. Ele não estava sozinho entre os fundadores dos
Estados Unidos em sua determinação de demonstrar que a esperança pela razão como base da escolha política era uma aspiração realista.

Os liberais nunca acreditaram que a razão poderia ser sempre a motivação dominante da ação. Como o ex-premiê polonês Donald Tusk alertou o Conselho Europeu sobre o aumento do populismo: “As emoções, os símbolos e as simplificações são fatores de motivação mais fortes para as pessoas do que os argumentos e os programas racionais”. O racionalismo excessivo irá minar os propósitos liberais, argumentou ele, porque “as pessoas não lutam com toda a determinação por processos ou ideias abstratas. Estarão prontas a intervir nos assuntos públicos e a fazerem grandes sacrifícios, isso sim, se dentro de si despertarem as emoções”.

Reconhecer a necessidade de símbolos e emoções inspiradoras não é a única deferência do liberalismo à complexidade da motivação humana. Desde o início, pensadores liberais já reconheciam, e por vezes promoviam, o papel dos interesses individuais e de grupo nas questões humanas. Esperavam que instituições construídas de maneira engenhosa poderiam transformar a busca do interesse próprio em um garantidor da liberdade política e uma fonte de progresso material.

Os liberais sempre reconheceram a influência de uma terceira força, as paixões, sobre as ações humanas. Mas nunca haviam visto as paixões como fontes de ruptura e turbulência. Ambição, inveja, belicosidade e a busca da honra nos levaram a rejeitar os impulsos da razão e mesmo o interesse próprio. As paixões podem ser destrutivas e, por vezes, autodestrutivas. Podem estar em conflito com os objetivos de segurança, prosperidade e paz — o coração do modo de vida que viemos a chamar de “burguesia”.

Nesse aspecto, como em outros, o antiliberalismo segue as tendências humanas, e o liberalismo vai contra a corrente. A vida em sociedades governadas com base em regras suprime raiva e agressividade. Designar um inimigo legitima a manifestação dessa raiva e agressividade acumuladas. O populismo torna a política mais parecida com a guerra, o que explica em parte sua atratividade.

Desde a aurora da modernidade, pensadores liberais esperavam que o interesse próprio esclarecido pudesse subjugar ou mesmo suplantar nosso instinto de recorrer imediatamente às paixões. Em 1914, muitos analistas consideravam uma guerra europeia impensável por causa dos danos econômicos que ela causaria. Em 1936, com os horrores da Primeira Guerra Mundial ainda frescos na memória, John Maynard Keynes escreveria: “Perigosas inclinações humanas podem ser direcionadas para canais comparativamente inofensivos pela existência de oportunidades para ganhar dinheiro e riqueza privada, que, se não puderem ser satisfeitas dessa maneira, podem encontrar sua saída na crueldade, na busca imprudente de poder e autoridade pessoal, e em outras formas de autoengrandecimento.”

Ele parecia ter esquecido que o século de relativa paz e prosperidade após o Congresso de Viena também havia testemunhado o florescimento de sentimentos antiburguesia — em particular, desprezo por atividades comerciais e pela timidez autoprotetora da vida burguesa.

Pensadores e políticos antiburguesia dominaram os anos do período entreguerras, preparando o caminho para o fascismo italiano e o nacional-socialismo alemão. Em tempos de caos e conflitos, seres humanos anseiam pela tranquilidade da vida cotidiana, e muitos ficam satisfeitos quando a conseguem. Mas outros não, e isso tende a incluir não apenas os potenciais líderes de sociedades, mas também indivíduos cujas aspirações vão além do conforto material. Teorias políticas que negligenciam a realidade desses tipos humanos estão fadadas à inadequação, tanto enquanto narrativas da realidade quanto como guias para a ação. O realismo demanda mais do que um foco estrito na ordem política na qual os indivíduos possam perseguir seu interesse próprio.

A democracia liberal se apoia em uma filosofia da autopreservação confortável. Não há dúvidas de que esse seja um desejo dominante, ainda mais em tempos de pobreza, guerra e conflitos civis. Mas assim como o conflito atrai sua própria antítese, pode-se dizer o mesmo da tranquilidade. Como observou Bertrand Russell: “o impulso pelo perigo e aventura está profundamente enraizado na natureza humana, e nenhuma sociedade que ignore isso consegue permanecer estável por muito tempo”.

Essa proposição levou William James a buscar um “equivalente moral da guerra”. Embora não haja algo assim, o combate político chega perto. Assim como os movimentos sociais, quando massas de indivíduos que pensam de maneira parecida encontram um propósito comum na luta contra as imperfeições e injustiças da sociedade. Assim como as calamidades nacionais, que clamam por bravura e sacrifício. Assim como os raros momentos de propósito nacional, quando líderes carismáticos inspiram jovens idealistas a abdicar ganhos pessoais por um propósito maior.

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As ambiguidades da liberdade e da igualdade.

A democracia liberal também se apoia em uma filosofia de liberdade individual — e, com ela, a responsabilidade pessoal — , mas o individualismo nem sempre é satisfatório. A maioria das pessoas deseja um nível de comunidade e solidariedade que a vida em sociedades individualistas muitas vezes frustra. O preâmbulo da Constituição dos Estados Unidos fala dos “benefícios da liberdade”, mas a liberdade também pode ser um fardo. Como argumentou Erich Fromm em O medo à liberdade, a ansiedade que a liberdade muitas vezes produz pode levar ao desejo de dominar, e até mesmo destruir, o que parece incontrolável.

Essa ansiedade também pode levar as pessoas a buscar segurança psicológica por meio da submissão a uma autoridade externa. Diante de forças externas aparentemente irresistíveis, os indivíduos que sentem perder o controle pessoal sobre suas vidas muitas vezes buscam líderes que prometem oferecer domínio em vez de dependência do acaso, e que oferecem conforto psicológico por meio de ligações não mediadas com seus seguidores. A dominação e a submissão são o yin e o yang do autoritarismo e, também, e de certa forma de maneira mais benigna, de instituições hierárquicas em geral (incluindo aquelas que nem mesmo as sociedades mais liberais podem prescindir).

A democracia liberal oscila desconfortavelmente entre o particularismo e o universalismo. Por um lado, o compromisso com a igualdade erode as diferenças. Se a dignidade e os direitos pertencem a todos os seres humanos em virtude de sua humanidade comum, então tratar indivíduos de maneira diferente com base no lugar em que nasceram ou em suas crenças não parece justificável. Refugiados que fogem da perseguição deveriam ser tratados como gostaríamos de ser tratados se os papéis se invertessem. De uma perspectiva estritamente igualitária, as fronteiras nacionais parecem veículos para o egoísmo coletivo.

Por outro lado, o documento de fundação dos Estados Unidos fala tanto de povos como de indivíduos, e da “posição igual e separada, a que lhe dão direito as leis da natureza e as do Deus da natureza” a um povo. Em princípio, não apenas indivíduos, mas também povos se encontram em relação de igualdade entre si, e esses dois tipos de igualdade podem colidir na prática, bem como a liberdade individual e a autodeterminação da nação.

A liberdade e a igualdade também podem colidir. Alexis de Tocqueville demonstrava preocupação com o fato de que uma paixão descontrolada pela igualdade pudesse levar cidadãos democráticos a entregar suas liberdades a um despotismo suave de uma burocracia centralizada, uma preocupação que os conservadores de hoje frequentemente manifestam. Mas também há evidências do contrário: a paixão pela liberdade pode levar cidadãos democráticos a tolerar um grau de desigualdade que ameace transformar a democracia numa oligarquia. E o zelo descontrolado pela liberdade pode enfraquecer a ação coletiva da qual a segurança e o bem-estar do país podem depender em momentos de perigo.

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Sentimentos tribais.

Uma pitada de tribalismo parece fazer parte da condição humana e dos sentimentos inconfessos de indivíduos. Gostamos de nos associar com aqueles que compartilham de nossa língua, costumes e história, e tendemos a confiar mais neles do que em “pessoas de fora”. Quando os recursos precisam ser compartilhados, preferimos compartilhá-los com aqueles com os quais nos identificamos. Quando nossa tribo sofre uma ameaça, nosso senso de identidade se intensifica, assim como o impulso de defender nosso grupo. Quando acordos entre tribos ameaçam a identidade tribal, a tribo costuma prevalecer. Foi assim em 1914 no início da Primeira Guerra Mundial, quando a alardeada unidade internacional da classe operária da Europa entrou rapidamente em colapso e os trabalhadores se uniram em torno de suas respectivas bandeiras nacionais.

O populismo, especialmente quando aliado ao etnonacionalismo, é abertamente tribal. Ele legitima sentimentos que os princípios liberais-democráticos suprimem. Essa é a origem de uma das principais forças do populismo. As tribos conferem mérito a seus membros e inferioridade aos não membros, normalmente em termos estereotípicos. Isso dá origem ao fenômeno extraordinariamente persistente do preconceito. Até mesmo quando membros de uma tribo são persuadidos por meio da razão e experiência de que seu preconceito é injustificado, o sentimento persiste. Políticos populistas compreendem isso e apelam ao preconceito de maneiras que satisfazem seus seguidores, mas que podem ter consequências perigosas para a segurança individual e para a ordem social.

Em situações de escassez ou ameaça, a dicotomia iguais/diferentes dá lugar à dicotomia amigos/inimigos. E quando um bem é inerentemente escasso, esse ciclo é ainda mais provável e pernicioso. Quando novos grupos desafiam hierarquias tradicionais, aqueles com maior status acabam resistindo. O ganho de alguns é necessariamente a perda de outros. E quando aqueles com maior status são convidados a renunciar a demandas com base em religião ou etnia em nome de uma identidade cívica comum, tendem a responder redobrando as demandas particularistas.

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Hierarquia versus igualdade.

Isso não quer dizer que os cidadãos de democracias liberais não tenham nenhum motivo para ter raiva. Em sociedades liberais-democráticas a igualdade moral convive com a desigualdade social e econômica. Quando a riqueza das elites econômicas parece desconectada — e mesmo oposta — do bem-estar da comunidade, a comunidade reage com indignação moral.

As desigualdades de status são ainda mais emocionalmente voláteis. Toda sociedade, não importa quão igualitária por princípio, possui múltiplas hierarquias sociais. Aqueles com maior status muitas vezes olham com desdém para pessoas de menor status social, que reagem ao desdém com ressentimento. Ser menosprezado, mesmo que por um gesto ou um olhar, sempre dói. Ser ignorado é ainda pior.

Em princípio, sociedades liberais-democráticas conferem status social com base no mérito e não em circunstâncias do nascimento. Mas os indivíduos podem ser bem sucedidos em várias dimensões, e o tipo de sucesso que uma sociedade coloca em destaque determina como ela define status. Em democracias liberais contemporâneas, indivíduos que não têm realizações educacionais e profissionais são muitas vezes considerados cidadãos de segunda classe, e a defesa de que essa hierarquia é baseada no mérito torna as coisas ainda piores. Compreensivelmente, aqueles que são desprezados reagem rejeitando a classificação com base na expertise em favor do bom senso e do instinto.

Instituições tecnocráticas de elite como o Fed, o banco central dos Estados Unidos, estão sempre expostas a crítica, ainda mais quando são construídas de maneira insulada, sem eleição. Nesses casos, preocupações econômicas e de status costumam se misturar, porque é natural imaginar que instituições distantes e opacas sirvam aos interesses das elites, e não dos cidadãos comuns.

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Ação versus restrição.

A governança liberal-democrática gera muitos tipos de frustração popular. Embora a democracia liberal seja compatível com o autogoverno, praticamente todos os países atualmente são tão grandes que instituições representativas — e, com elas, as várias patologias da representação — são inevitáveis. A distância geográfica produz uma distância psicológica, e as pessoas enquanto “principais” irão sempre temer que seus “agentes” sirvam a seus próprios interesses em vez daqueles dos cidadãos que supostamente representam. A corrupção entre os representantes, um perigo perene, tende a ser especialmente considerada generalizada quando a situação está ruim e é alta a desconfiança nos líderes e nas instituições.

Os cidadãos elegem representantes que não fazem — de fato, não podem fazer — o que cada eleitor deseja, em parte porque os eleitores apoiam os candidatos por razões diferentes — por vezes, opostas. O desejo dos cidadãos de se autogovernar conflita com as obrigações da vida cotidiana — e com a aversão que a maioria das pessoas sente pelo exercício da política. “O problema com o socialismo”, diz a frase atribuída a Oscar Wilde, é que “toma muitas manhãs”. O mesmo ocorre com qualquer outro programa político, se formos levar a frase a sério. A maioria dos cidadãos quer um governo que seja do povo e para o povo, mas é mais ambígua sobre um governo pelo povo.

Alguns sistemas liberais-democráticos dividem o poder entre múltiplas instituições, deliberadamente desacelerando o processo de tomada de decisão e criando a oportunidade de distintos pontos de vista moldarem a política. Sistemas parlamentaristas multipartidários tipicamente exigem que os partidos negociem para formar um governo. Ambos os sistemas frustram o desejo dos cidadãos de ações rápidas e decisivas. Outra fonte de frustração é o fato de que todos os regimes liberais-democráticos impedem que maiorias ajam quando seus desejos conflitam com os direitos de indivíduos e de grupos minoritários.

Max Weber descreveu o processo de formulação de políticas públicas como a “perfuração lenta de tábuas duras”. Em nenhum lugar isso é mais verdade do que em democracias liberais. Quando os cidadãos nesses regimes se frustram com o ritmo lento das mudanças, ficam tentados a se voltar para formas menos restritas e mais decisivas de ação pública — ou seja, para formas mais autoritárias de liderança. Isso é ainda mais provável durante calamidades nacionais. A questão é se líderes democraticamente eleitos que obtêm poderes extraordinários nessas circunstâncias irão devolvê-los voluntariamente ao fim da crise. É exatamente a pergunta que os húngaros estão se fazendo neste momento enquanto Viktor Orbán exerce os poderes de emergência recém-adquiridos em meio à pandemia.

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O casamento fatídico da política liberal com os mercados econômicos.

As instituições políticas liberais-democráticas há muito coabitam com economias de mercado, e não é por acidente: esta última é uma condição necessária para a primeira. Não apenas as economias de mercado que funcionam bem produzem a prosperidade necessária para sufocar o conflito cultural e a luta de classes, mas uma esfera parcialmente independente de propriedade e transações ajuda a garantir a liberdade individual que a política liberal-democrática promete defender.

Mas até mesmo mercados regulados produzem desigualdade, e quando a desigualdade ultrapassa determinado patamar (embora seja difícil determiná-lo), torna-se um problema para a democracia. Aristóteles, assim como James Madison, via relação entre uma classe média forte e uma ordem constitucional estável. A ciência política contemporânea confirma essa conexão. Quando a tendência de desigualdade aumenta as proporções de ricos e de pobres às custas da classe média, aumentam as chances de intensificação do conflito entre os extremos. E uma vez que os recursos econômicos podem ser traduzidos em poder político, a riqueza exerce uma influência desproporcional sobre as políticas públicas.

Podemos discutir se, deixadas à sua própria mercê, as economias de mercado se moverão inexoravelmente em direção a uma maior desigualdade. Mas é indiscutível que, a partir de certo ponto, a desigualdade econômica passe a configurar uma ameaça à democracia liberal. De tempos em tempos, sistemas políticos liberais precisam agir para manter os resultados do mercado dentro de certos limites democráticos.

Há outra tensão fundamental entre mercados e a política liberal. Os mercados estão incessantemente substituindo produtos e modos de produção existentes. Algumas pessoas gostam de mudanças intermináveis; outros acham isso desconcertante. A maioria de nós depende de hábitos arraigados e de instituições estáveis, tanto econômicas quanto políticas. O fechamento de fábricas pode desestabilizar comunidades inteiras e desmoralizar trabalhadores que dependiam daquela circunstância econômica.

Não há razão para acreditar que a democracia liberal possa sempre resolver a tensão entre instituições estatais e o mercado, em larga medida porque, até certo ponto, tanto a política quanto os mercados sofrem o impacto das transformações tecnológicas. A Revolução Industrial produziu novas conformações econômicas que exigiam novas respostas políticas. Os resultados — sufrágio universal, regulação pública das empresas e o desenvolvimento da seguridade social — ajudou a reduzir a desigualdade econômica por muitas décadas. Embora o legado da Revolução Industrial continue a moldar a política democrática no Ocidente, a transformação tecnológica incessante no contexto da globalização levantou novas questões que as instituições políticas herdadas têm dificuldades de enfrentar.

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James Madison por Gilbert Stuart

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Desejando mais de uma coisa

Søren Kierkegaard disse uma vez que a “pureza do coração é querer uma coisa”. De acordo com esse padrão, os seres humanos são radicalmente impuros. Buscamos múltiplos bens desarmônicos, e nossa incapacidade de obtê-los todos através de um modo de vida ou forma de organização política é fonte de constante insatisfação.

As vulnerabilidades liberais refletem essa condição humana. O individualismo dá origem ao desejo por comunidades mais densas. O igualitarismo conflita com o desejo por status e diferenciação. O fardo da responsabilidade pessoal abre as portas para líderes que prometem fazer escolhas por nós. A diversidade produz o desejo por unidade; negociações entediantes, por uma liderança ágil e decisiva; a estabilidade, por mudança; a tranquilidade, por agitação; e a segurança, pelo perigo.

A seta aponta para ambos os lados, obviamente. Cidadãos de sociedades opressoras anseiam por liberdade. Minorias em países com religiões oficiais não desejam outra coisa senão liberdade religiosa. Sociedades comunitaristas frustram membros que buscam uma pitada maior de escolhas individuais e privacidade.

Não há uma cura permanente para essa oscilação sem fim, apenas tratamento paliativo. Sociedades sensatas reservam espaço para que indivíduos e grupos encontrem seu próprio equilíbrio (dentro de limites amplos) entre bens concorrentes e para que mudem de opinião ao longo do tempo. Se forças políticas dominantes (incluindo maiorias populares) tentam tirar o máximo de vantagem de sua posição, as minorias dissidentes podem concluir que sua única opção é resistir.

As sociedades que combinam responsividade e vontade popular com proteções robustas de indivíduos e grupos minoritários estão mais bem posicionadas para alcançar um equilíbrio flexível e sustentável entre essas forças concorrentes. E a capacidade das sociedades liberais de fazer autocrítica e reforma pacífica é uma fonte constante de força. Apesar dos desafios atuais, a perspectiva para a democracia liberal não é tão desoladora quanto as circunstâncias do momento poderiam sugerir.

Ainda assim, não há garantia de que essa forma de governança duramente conquistada irá sobreviver. Sem uma liderança sensata que entenda e enfrente as permanentes vulnerabilidades da democracia liberal, seu declínio pode continuar. A história não oferece garantias, apenas desafios e oportunidades.

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Praga, 1989

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