FilosofiaSaúde Mental

Por que quem cuida deve se cuidar e ser cuidado

por Isabella Passos

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“Amarás o teu próximo como a ti mesmo”. Não há dúvidas que somos eticamente obrigados a cuidar de nós mesmos, afinal, como podemos cuidar dos outros se nós mesmos enfrentamos problemas de saúde, esgotamento ou ressentimento? Como bem traduzido pelo fundador da Divisão de Medicina Narrativa da Universidade de Columbia, Craig Irvine, em The Principles and Practice of Narrative Medicine, “nosso imperativo ético primário pode ser cuidar dos outros, mas esse imperativo não tem sentido, é vazio, se divorciado do imperativo de cuidar de si mesmo”. Cuidar do outro pressupõe então a experiência do autocuidado e, nesse sentido, o autocuidado se constitui condição ética implícita ao ato de cuidar.

Mas o divórcio entre o cuidado e o autocuidado é facilmente observado na histórica supressão da dimensão do autocuidado na formação de profissionais do cuidado como médicos, psicólogos, cuidadores e conselheiros na forma da ênfase detida sobre os princípios da não-maleficência e da beneficência. Profissionais de saúde recebem pouca ou nenhuma instrução sobre autocuidado e as implicações éticas deste tipo de omissão influenciam maleficamente em seu bem-estar e na segurança dos pacientes. Cuidar de si mesmo deveria ser compreendido pelas profissões do cuidado como responsabilidade ética e profissional com mesmo nível importância daquela dedicada ao desenvolvimento técnico-profissional.

Por não terem acesso a uma autorreflexão honesta voltada ao cuidado do próprio corpo, das emoções, dos pensamentos, falar em autocuidado se mostra impossível, quase imoral, como se profissionais do cuidado tivessem que viver por atos supererrogatórios. Quase não se conhece debates sérios e materiais produzidos sobre o assunto e o que se vê são equipes inteiras passando pelos progressivos estágios do esgotamento: (1) exaustão física; (2) exaustão mental e emocional; (3) vergonha e dúvida e; (4) cinismo e desemparo. Em ano de acirramento da pandemia da Covid-19, tais sofrimentos, sempre silenciosos, começam a pipocar em depoimentos públicos com pedidos para que pessoas se cuidem a fim de não sobrecarregarem as equipes de saúde.

Ter alguns princípios em mente (e prática) auxilia na promoção do autocuidado, sendo eles:

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Respeito pela dignidade e pelo valor de si mesmo: a violação deste respeito diminui substancialmente a integridade e a confiança de uma pessoa em si e nos outros;

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Responsabilidade de cuidar de si mesmo: em última análise, é sua responsabilidade cuidar de si mesmo — e nenhuma situação ou pessoa pode justificar o descuido com esta necessidade individual;

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Cuidado consigo mesmo e dever de cuidar: deve haver o reconhecimento de que o seu dever como cuidador não pode ser cumprido se não houver, ao mesmo tempo, o dever de cuidar de sim mesmo. Ambos se mantêm intrinsicamente ligados;

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O direito ao bem-estar é um direito universal: todo cuidador, independentemente de sua formação, função e empregador, tem direito ao bem-estar associado ao autocuidado. A sociedade como um todo deve beneficiar esses profissionais através da promoção e das oportunidades de autocuidado. Não sobrecarregar os serviços de saúde em função de comportamentos descuidados é um exemplo prático, bem como, garantir condições materiais e de salubridade para o desempenho dos profissionais.

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Somente com a consciência de tais valores que profissionais de saúde poderão contribuir com soluções para problemas sociais não se tornando eles mesmos parte de outro problema cotidianamente varrido para debaixo do tapete. É preciso ter lucidez que nenhum profissional de saúde está imune aos estresses e desequilíbrios que passam seus próprios pacientes. E que este quadro traz impactos reais a todo tecido social.

Antes de encerrar, contudo, é preciso lembrar que governos, agências reguladoras e gestores de pesquisa e serviços de saúde têm responsabilidade inalienável sobre o cuidado das diferentes equipes de pesquisa e assistência à saúde física e mental. Ter uma estrutura de saúde implementada sobre medidas racionais, éticas e eficazes ajuda a garantir que os desafios diários (organização dos serviços, protocolos técnico-organizativos, suprimento e alocação de equipamentos médicos, práticas de conscientização social sobre prevenção e promoção da saúde, gestão transparente e responsável de diferentes recursos, comitês de bioética para resolução de casos paradigmáticos, restrições físicas na propagação de doenças, combate a detratores — de toda ordem — do exercício e prestação de serviços, etc.) sejam cumpridos com segurança e sem sobrecarga daqueles que precisam se concentrar único e exclusivamente em seu próprio cuidado e no cuidado de seu paciente ou cliente. Quando essas condições não são satisfeitas, cuidadores e pacientes são deixados à deriva em meio às incertezas e angústias bastante palpáveis.

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(Reprodução: Instagram/Estadão Conteúdo)

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Isabella Passos

Isabella Passos é professora de Filosofia e pesquisadora em Ética Aplicada (FAJE e UFSJ).