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Césio-137 e Coronavírus: As vozes de Goiânia para um Brasil pós-pandemia

por Marcelo de Araujo

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“. . . eu sou testemunha do quê, do passado ou do futuro?”

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Svetlana Aleksiévitch, Vozes de Tchernóbil

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Reator 3 em Chernobyl (GettyImages)

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O césio-137 e o coronavírus estão no epicentro das piores crises na área de saúde pública pelas quais já passou o Brasil. O primeiro causou, em 1987, em Goiânia, o maior desastre radiológico de que se tem notícia até hoje; o segundo, em 2020, custou a vida de quase 200 mil brasileiros e brasileiras. Mas apesar de todas as semelhanças entre uma catástrofe e a outra, não houve muita discussão até agora sobre como a experiência adquirida na gestão da primeira crise poderia ser relevante para a elaboração de estratégias para a gestão da segunda. A comparação entre uma crise e a outra, como pretendo mostrar aqui, já é por si só bastante significativa no que concerne à quantidade de semelhanças.

Ambas as crises começaram pequenas e tiveram origem em atividades humanas. Elas são diferentes, portanto, de tsunamis ou terremotos, que não decorrem da ação humana e que já começam gerando grande impacto social. Tanto a pandemia quanto o desastre em Goiânia tiveram início com o trabalho de pessoas relativamente pobres. A primeira teve início, muito provavelmente, com o “transbordamento” do coronavírus, inofensivo para o animal hospedeiro, para algum ser humano num mercado de animais em Wuhan, na China. A segunda crise teve início com o trabalho de dois catadores de recicláveis, que acharam um equipamento de radioterapia abandonado numa clínica desativada, já quase em ruínas, em Goiânia, em 13 de setembro 1987. O vocabulário da “contaminação” perpassa as duas crises. Tanto em uma como na outra um considerável lapso de tempo se deu desde a primeira contaminação — através do contato com o césio-137 no Brasil, ou através do contato com o novo coronavírus na China — até que o poder público de cada país tomasse conhecimento da situação e se pronunciasse publicamente a respeito.

Tanto o césio-137 quanto o coronavírus são, para a maior parte das pessoas, como que abstrações científicas. Eles não podem ser observados fora de laboratórios ou centros de pesquisa. A única coisa que o público realmente percebe são os danos que eles podem causar à saúde. Sem a mediação de comunicação científica adequada, o público, de modo geral, não consegue sequer perceber um nexo causal claro entre dois eventos aparentemente desconexos: de um lado, a exposição ao vírus ou à fonte de radiação e, de outro, a posterior deterioração de nossa saúde. A própria ideia de “exposição ao vírus” ou “exposição à fonte de radiação” exige algum tipo de explicação, que pode não ser intuitiva para muitas pessoas. Mas como explicar para a população esse nexo causal quando a própria ciência se torna vítima de hostilidades políticas? Considere esse trecho de uma obra literária:

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“Contou-nos a respeito dos dados dos pacientes, de como todos eles eram guardados com selos de ‘secreto’ ou ‘ultrassecreto’. De como a medicina e a ciência se submetiam à política.” (Aleksiévitch 2016, p. 149)

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Esta é uma passagem de Vozes de Tchernóbil: A história Oral do Desastre Nuclear, da escritora bielorrussa Svetlana Aleksiévitch, ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura em 2015. A obra resulta de centenas de entrevistas que a autora fez com as vítimas do desastre nuclear ocorrido em Tchernóbil, em 1986. A referência a passagens da obra de Aleksiévitch, ao longo deste artigo, terá como objetivo salientar o quanto o acidente em Tchernóbil e Goiânia, por um lado, e a pandemia pelo novo coronavírus, por outro, têm em comum quando consideramos o problema a partir da perspectiva das vítimas. Compreender a perspectiva das vítimas é fundamental para a elaboração de políticas públicas que busquem minimizar o sofrimento de grupos mais vulneráveis durante períodos de crise. A perspectiva das vítimas é importante também na elaboração de estratégia para a prevenção e gestão de crises futuras, pois há boas razões para acreditarmos que uma nova pandemia, ou um novo acidente radiológico, como o que ocorreu em Goiânia, possam voltar a ocorrer num futuro próximo. Daí a importância de pensarmos não apenas em estratégias para lidarmos com uma crise já em curso, mas também em metas para evitarmos os erros das estratégias passadas.

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(Reprodução)

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Uma gripezinha…

Em 1987, a primeira pessoa a se dar conta da dimensão catastrófica do acidente radiológico em Goiânia foi o físico Walter Mendes Ferreira. Foi ele que confirmou as suspeitas de alguns médicos sobre uma possível contaminação por radiação na cidade. Em 28 de setembro, a moradora M.G.F. decidiu levar para a vigilância sanitária uma cápsula metálica que, para ela, continha apenas um pó do qual irradiava um intenso brilho azul durante a noite e que seu marido, o dono de um ferro-velho, tinha levado para casa, para que familiares e amigos pudessem admirar. M.G.F. tinha começado a desconfiar que o adoecimento súbito de seus familiares, e de um animal de estimação, pudesse ter alguma relação com aquele objeto misterioso. Os médico suspeitaram, mas não tinham certeza se era ou não material radioativo. M.G.F. foi então encaminhada, junto com seus familiares, para um hospital da cidade. Com outros pacientes chegando com os mesmos sintomas, e sem um diagnóstico conclusivo, os médicos do hospital também suspeitaram de contaminação por radiação e entraram em contato com Mendes Ferreira.

Na manhã do dia seguinte, em 29 de setembro, o físico conseguiu emprestado um cintilômetro para checar a suspeita dos médicos e seguiu para a Vigilância Sanitária, onde ainda estava a cápsula de césio-137. O nível de radiação já era tão intenso na área que, mesmo antes de Mendes Ferreira chegar ao local, o aparelho disparou para além do valor máximo na escala de medição. O físico então voltou para buscar um segundo aparelho, convencido de que o primeiro estava defeituoso. Mas não estava. As autoridades foram alertadas no mesmo dia. A essa altura, mais de duas semanas já haviam transcorrido desde o desmonte do aparelho com a cápsula de césio-137. Esse foi tempo suficiente para que várias pessoas da cidade fossem contaminadas pelo contato direto com a cápsula, ou irradiadas pelas pessoas já contaminadas. Algumas faleceram poucos dias depois, enquanto outras sofreram lesões de que jamais se recuperariam inteiramente.

Em 2020, um precioso lapso de tempo também transcorreu desde o primeiro caso comprovado de contaminação pelo vírus no Brasil até o momento em que o poder público se manifestou a respeito. A diferença, claro, é que no Brasil, antes mesmo da confirmação do primeiro caso de COVID-19, em 25 de fevereiro, as pessoas já vinham acompanhando as notícias sobre as mortes que o novo coronavírus vinha causando na China e na Europa. Mas, ao invés de alertar a população sobre a gravidade da doença e sobre as formas de contágio, o presidente Jair Bolsonaro sugeriu em cadeia nacional que a nova doença não era mais do que uma simples gripezinha, e que seu “histórico de atleta” o protegeria da doença. Uma de suas alegações, na época, era que o clima na Itália seria bem diferente do clima no Brasil e que, por isso, não haveria razão para se comparar a calamidade já em pleno curso na Europa com possíveis reflexos em nosso país.

Em 1987, José Sarney, então presidente da República, também tentava a todo custo desfazer as comparações entre o desastre em Goiânia e o acidente nuclear ocorrido em Tchernóbil no ano anterior: “esse acidente de Goiânia não foi um acidente nuclear, foi um acidente radioativo, nós compararmos uma coisa com outra é uma coisa absolutamente desproporcional.” O governador de Goiás, na ocasião, também tentou desfazer qualquer comparação com o acidente em Tchernóbil. Ele alegou por exemplo que, após o conhecimento público do acidente em Goiânia, ninguém mais teria sido exposto a radiações e que ele próprio só não declarou estado de calamidade pública na cidade porque, como ex-professor de “atomística”, e conhecendo “um pouco” o assunto, sabia que se tratava de um caso isolado e já controlado: “Não houve nenhuma pessoa que se expusesse à radiação em Goiânia depois de conhecido o fato”. Como se constatou mais tarde, porém, novas exposições à radiação continuaram ocorrendo, especialmente durante os trabalhos de descontaminação nas áreas mais afetadas.

O relatório publicado em 1988 pela Agência Internacional de Energia Atômica, um dos documentos mais importantes sobre o desastre em Goiânia, chama atenção para as pressões políticas sob as quais as pessoas envolvidas nos trabalhos de descontaminação e amparo às vítimas tiveram de trabalhar. Uma servidora da Secretaria de Saúde de Goiás, responsável na época pela elaboração de um folheto explicativo para a população, relata numa entrevista que o texto do folheto foi diversas vezes editado por razões políticas: “Eu sei que foram tantos os dados do folheto que mexeram, que do texto original pouca coisa ficou, porque havia uma preocupação muito grande com o aspecto político do acidente.”

Tanto em 1987 como em 2020 houve, portanto, uma tentativa sistemática, por parte de autoridades políticas, de se desvincular o que estava ocorrendo no Brasil com catástrofes da mesma natureza em outras partes do mundo — na Europa, na China, ou na antiga União Soviética. É claro que o brilho azulado do césio-137, que encantara o dono do ferro-velho — a palavra vem do latim caesius, cinza azulado — não podia ser comparado à explosão num dos reatores em Tchernóbil. Mas a dimensão da tragédia, nesses casos, não se mede pela intensidade do brilho do material radioativo, mas pelo drama das vítimas depois do acidente. Quem lê hoje Vozes de Tchernóbil: A história Oral do Desastre Nuclear, da escritora Svetlana Aleksiévitch, poderia talvez até ter a impressão de que a autora incluiu as vítimas do acidente em Goiânia nas entrevistas que fez para escrever o seu livro. Pretendo citar algumas passagens dessa obra, ao longo deste artigo, apenas para salientar o quanto os acidentes em Tchernóbil e em Goiânia têm em comum, quando considerados a partir da perspectiva das vítimas. Quarenta anos depois, é possível perceber que a pandemia no Brasil, quando considerada a partir da perspectiva das vítimas, também tem muito em comum com os dois outros acidentes.

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Depósitos dos rejeitos radioativos de Césio 137 (Reprodução: Sebastião Nogueira)

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Um vazamento de gás…

Os bombeiros, policiais militares, motoristas de caminhão e demais trabalhadores que foram mobilizados para a evacuação e descontaminação das áreas afetadas  pelo césio-137 não sabiam desde o início que estavam sendo expostos à radiação. Eles não dispunham de EPI (Equipamento de Proteção Individual) adequado e nem receberam treinamento específico para aquele tipo de tarefa. A informação que receberam, quando começaram os trabalhos, era que teria havido um vazamento de gás na região. Tal como ocorrera em Tchernóbil:

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“…nos afirmavam que eles tinham se envenenado com gases, ninguém falava em radiação.” (Aleksiévitch 2016, p. 13)

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Em algumas casas, vizinhas ao ferro-velho em Goiânia, a radiação era tão intensa que elas tiveram de ser imediatamente evacuadas, telhados inteiros tiverem de ser removidos, casas foram demolidas.

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“No quarto em que eles estavam antes, até as paredes reagiam ao contador Geiger.” (Aleksiévitch 2016, p. 16)

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“Numa casa, o fogão estava aceso, fritavam toucinho. Você aproximava o dosímetro: não era um fogão, era um pequeno reator.” (Aleksiévitch 2016, p. 103)

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Não demorou muito, os trabalhadores que participaram do manuseio e do transporte de objetos contaminados — fotos, documentos pessoais, roupas, dinheiro, móveis, animais domésticos, porcos, passarinhos, árvores, e até o asfalto e a terra das áreas ao redor — começaram a se sentir mal e adoecer. Alguns se recuperavam, outros morreriam anos depois, vítimas de câncer, mas sem terem sido reconhecidos como vítimas do césio-137. Dessa forma, vários homens e mulheres se viram impedidos de receber pensão ou indenização, já que o adoecimento se deu após o acidente. Oficialmente, apenas 4 pessoas figuram como vítimas fatais. A saúde mental das vítimas do acidente em Goiânia também foi bastante afetada. Há vários registros de depressão profunda e relatos de tentativa de suicídio entre as vítimas. Mas como os efeitos da radiação, e os traumas decorrentes de um desastre como esse, costumam aparecer apenas anos após o incidente, foi ficando cada vez mais difícil, com o passar dos anos, comprovar-se perante a justiça que a deterioração da saúde se devia ao desastre de 1987. Tal como ocorrera em Tchernóbil:

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“Ficamos melancólicos. Não podíamos arrancar aquilo de dentro de nós… Depois de três, quatro anos, um adoecia, outro… Um morria… Outro enlouquecia… Alguém se suicidava.” (Aleksiévitch 2016, p. 83)

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Os efeitos de médio e longo prazo da COVID-19, por outro lado, ainda não são inteiramente conhecidos. Mas já se sabe, de todo modo, que a doença não afeta apenas o sistema respiratório, como se supunha no início. Ela pode deixar sequelas permanentes em vários órgãos do corpo humano. Já existem diversas pesquisas também sobre o impacto da pandemia na saúde mental das pessoas, devido, por exemplo, à incerteza quanto à manutenção de seus empregos, ou quanto à capacidade que o sistema de saúde teria para atendê-las, em caso de internação. Por ora, porém, ninguém sabe como serão tratadas as pessoas que vierem a requerer, no futuro, pensão por conta de sequelas da COVID-19, pessoas, por exemplo, que atuaram na linha de frente nos hospitais, ou permaneceram fazendo entregas de supermercado, para garantir a continuidade de serviços considerados essenciais.

Outra semelhança importante entre o desastre com o césio-137 e a pandemia diz respeito ao uso de medicamentos experimentais. Durante a pandemia, houve muita discussão sobre o uso de medicamentos que não tinham eficácia comprovada no tratamento de COVID, como a Cloroquina, Hidroxicloroquina, e Ivermectina. Em 1987, ocorreu um problema similar. Robert Gale, um médico americano, administrou nas vítimas mais graves do acidente em Goiânia, aparentemente sem o conhecimento do governo brasileiro e sem o consentimento dos pacientes, um novo medicamento, denominado GM-CSF. O medicamento não tinha eficácia comprovada em seres humanos. Alguns pacientes atribuíram a recuperação de sua saúde na época à utilização desse medicamento: “Os médicos me deram esse remédio quando estava no Rio de Janeiro. Ele nunca tinha sido testado em seres humanos e salvou a gente da radiação.” Se o medicamento realmente salvou os pacientes, isso é impossível saber, pois nenhum protocolo para a utilização de medicamento experimental em caráter de emergência parece ter sido adotado. Mas pouco tempo depois, em 1991, o medicamento foi aprovado nos Estados Unidos. Foi só em 2013, após a divulgação de documentos até então sigilosos, classificados pela antiga União Soviética, que o médico americano revelou que o medicamento já havia sido administrado, por ele mesmo, em seres humanos, entre as vítimas do acidente em Tchernóbil. A história é recontada também pela escritora bielorrussa:

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“O professor norte-americano dr. Gale — o médico que lhe fez a operação de transplante de medula — procurava me consolar: existe uma esperança; pequena, mas existe.” (Aleksiévitch 2016, p. 19)

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Reator 3 em Chernobyl (GettyImages)

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Judicialização da saúde pública

Outra semelhança relevante entre o desastre em Goiânia e a pandemia no Brasil diz respeito à judicialização da saúde pública. Isso marcou tanto o início da primeira crise, em 1987, como também o ápice da segunda, em 2020. O antigo Instituto Goiano de Radioterapia (IGR), em cujas ruínas o aparelho contendo a cápsula de césio-137 foi encontrado, operava num terreno que pertencia à Santa Casa de Misericórdia de Goiânia. Em 1984, a Santa Casa exigiu o terreno de volta e, antes mesmo da conclusão do julgamento, ela vendeu o terreno para uma terceira instituição, o Instituto de Previdência e Assistência do Estado de Goiás (IPAS). Em 1985, o IGR se estabeleceu em um novo prédio, deixando para trás parte de seus equipamentos, inclusive o aparelho com a cápsula de césio-137. Em abril de 1987, a justiça deu ganho de causa para o IPAS. Em 4 de maio do mesmo ano, os donos da IGR tentaram retirar o aparelho do prédio já em vias de demolição, mas foram impedidos pela Polícia Militar. Se o IGR realmente informou à CNEN (Comissão Nacional de Energia Nuclear) sobre a localização do aparelho, e sobre as condições precárias em que o equipamento vinha sendo guardado, isso aparentemente nunca foi esclarecido. A CNEN, responsável pela fiscalização de equipamentos radiológicos, nega ter sido informada. Enquanto o imbróglio jurídico não se resolvia, o equipamento com a cápsula de césio-137 permanecia desprotegido. Os donos do IGR foram condenados em 1992. Em 1998, um decreto presidencial extinguiu a pena. As vítimas do acidente com o césio-137, por outro lado, tiveram de esperar vários anos para obter do governo do estado de Goiás ou da União a indenização e, conforme o caso, a pensão pelas sequelas decorrentes da radiação a que foram submetidas durante o processo de descontaminação das áreas mais afetadas pelo césio-137. Algumas, contudo, faleceram antes da concessão dos benefícios, enquanto outras aguardam ainda hoje uma solução da justiça.

O imbróglio jurídico durante a pandemia foi ainda maior. Ao final de 2020, o STF (Supremo Tribunal Federal) já contabilizava quase 8 mil decisões relacionadas à pandemia. No mesmo período ocorreram também vários processos envolvendo conflitos entre as decisões de munícipios, estados, e da própria União referentes às medidas necessárias para se conter o avanço da nova doença. Enquanto alguns munícipios e estados procuravam implementar medidas mais restritivas, como o fechamento do comércio, suspensão de aulas, e a restrição do fluxo nas estradas intermunicipais, o governo federal procurava minimizar a relevância dessas medidas tendo em vista, sobretudo, o impacto que elas poderiam ter sobre a economia do país. Uma das consequências desse conflito de poderes foi a incerteza, por parte da população, sobre quais procedimentos deveriam ser adotados frente à nova doença. Questões de natureza médica e científica foram amplamente exploradas para fins políticos durante a pandemia. Tal como ocorrera em Tchernóbil:

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“Nem cientistas nem médicos! A ciência servia à política, a medicina estava amarrada à política.” (Aleksiévitch 2016, p. 250)

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Grupos vulneráveis, sepultamentos traumáticos

A pandemia pôs em relevo um antigo problema — o das enormes desigualdades sociais no Brasil. O vírus pode até não distinguir etnias ou classes sociais, mas o que ficou claro, durante a pandemia, é que alguns grupos sociais são mais vulneráveis do que outros. Constatou-se, por exemplo, que populações indígenas foram proporcionalmente mais afetadas pelo coronavírus do que outros segmentos da população. Em 1987, a situação não foi muito diferente: pessoas que já viviam em situação de pobreza foram desalojadas de suas residências e forçadas ao distanciamento social, casas foram demolidas, animais de estimação foram sacrificados, objetos de uso pessoal foram apreendidos e descartados como lixo radioativo — tudo na tentativa, até certo ponto legítima, de se minimizar as consequências do desastre com o césio-137. Mas o que logo ficou claro também é que alguns grupos sociais pareciam menos dignos de consideração do que outros. Quando surgiu, por exemplo, a pergunta sobre o que fazer com os rejeitos radioativos, uma das propostas, aprovada pelo governo Sarney, consistia em transferir o material radiativo para uma área militar na Serra do Cachimbo, no sul do Pará, próxima ao habitat de populações indígenas. O projeto, por sorte, não foi adiante. Os índios estariam em companhia não apenas do material radioativo proveniente de Goiânia, mas também do local escolhido pelo governo militar dos anos anteriores para o desenvolvimento do programa nuclear brasileiro com vistas à construção de uma bomba. A primeira explosão nuclear no Brasil deveria ocorrer num poço de cerca de 300 metros de profundidade na Serra do Cachimbo. Foi só em 1994, durante o governo Fernando Collor de Mello, que o programa nuclear brasileiro para fins miliares foi definitivamente encerrado.

O controle da pandemia exige, entre outras medidas, a realização de um grande número de testes na população. As pessoas contaminadas devem entrar em quarentena e o distanciamento social é também imprescindível — ainda que nem sempre cumprido. Em 1987, o isolamento social também foi necessário em Goiânia, tal como ocorrera em Tchernóbil no ano anterior:

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“É proibido abraçar e beijar. Não se aproxime muito.” (Aleksiévitch 2016, p. 15)

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Ao todo, 112.800 pessoas foram testadas para verificação dos níveis de radiação em Goiânia. Desse total, 249 apresentavam níveis anormais de radiação, sendo que 129 necessitavam de acompanhamento médico especial, e aproximadamente 30 tiveram de ser isoladas, inclusive em barracas de campanha instaladas no Estádio Olímpico da cidade. Mais tarde, 14 pacientes tiveram de ser transferidos para o Rio de Janeiro, 4 dos quais vieram a falecer. Entre as pessoas isoladas, muitas foram impedidas de ter acesso às notícias para que não entrassem em pânico ou tentassem escapar do distanciamento social a que tinham sido submetidas. Uma servidora da Secretaria de Saúde de Goiás, que fazia o acompanhamento psicológico de alguns pacientes submetidos ao distanciamento social, relata o seguinte numa entrevista: “uma questão muito polêmica no hospital foi em relação à informação, porque a televisão foi cortada. Só tinha vídeos, pra não ficarem ociosos… Eles tinham uma avidez por notícia, por jornal, por revista. Até as revistas foram bloqueadas.” Um adolescente mantido sob isolamento social relatou mais tarde que tomara conhecimento da morte de dois familiares por acaso, um mês após o óbito: “Esconderam de mim. Lembro que chorei muito quando descobri.”

Tanto a pandemia quanto o desastre com o césio-137 impuseram aos familiares das vítimas uma experiência nova, e também bastante traumática, no lidar com a morte de entes queridos. Durante a pandemia, em várias cidades brasileiras, especialmente em Manaus, viram-se imagens de caixões sendo enterrados em covas comuns, abertas com escavadeiras, devido ao risco de contaminação. Muitas pessoas foram privadas do convívio com os familiares durante o tratamento da COVID-19, mas nem após o óbito elas tiveram a oportunidade de se despedir de familiares e amigos de modo mais digno. As primeiras vítimas fatais do acidente em Goiânia em 1987 tiveram um tratamento semelhante ao das vítimas da atual pandemia. E em Tchernóbil não foi diferente:

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“Falavam a todos sempre a mesma coisa: ‘Não podemos entregar o corpo dos seus maridos, dos seus filhos, são muito radiativos.’” (Aleksiévitch 2016, p. 24)

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“Nós não vamos te dar o corpo dela”. (Aleksiévitch 2016, p. 26)

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Parte da população de Goiânia, na época, tentou impedir que o sepultamento ocorresse num cemitério local devido ao medo de que os corpos pudessem contaminar a região. Os corpos, porém, já haviam sido descontaminados previamente. No cemitério, os caixões tiveram de ser içados com guindastes devido ao revestimento de chumbo, que tinha como função conter qualquer emissão de radiação danosa ao ambiente. Isso, no entanto, não impediu que protestos violentos ocorressem durante o sepultamento, agravando ainda mais a situação já bastante vulnerável dos familiares das vítimas fatais.

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Goiânia, 1987 (Reprodução: Carlos Costa/O Popular)

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Preconceito e estigmatização das vítimas

Outra semelhança importante entre a pandemia e o desastre com césio-137 diz respeito à estigmatização de certos grupos sociais e o preconceito contra as vítimas. No início da pandemia, apareceram diversos relatos, em várias partes do mundo, acerca de violência contra pessoas de origem asiática com a alegação absurda de que elas seriam, de algum modo, as principais transmissoras da doença. Já existe até um verbete da Wikipedia que trata de xenofobia e racismo durante a pandemia, inclusive com alusão a episódios ocorridos no Brasil. Ainda no início da pandemia, em fevereiro de 2020, o governo federal disponibilizou um avião da FAB (Força Aérea Nacional) para repatriar os brasileiros que se encontravam em Wuhan. Após o retorno, os brasileiros deveriam realizar a quarentena na cidade de Anápolis, no estado de Goiás. Na época, porém, S.M., presidente da FIG (Federação de Indústrias de Goiás) repudiou a proposta com a alegação de que a maior parte dos viajantes era oriunda do estado de São Paulo. Seu argumento: “Não é um problema nosso”. S.M. alegou também que a proposta teria consequências danosas para a economia do estado de Goiás. Ele se referiu ainda ao desastre com césio-137, sugerindo que a população “não suportaria outro trauma.” Na verdade, a experiência com o desastre em 1987 deveria, pelo contrário, servir como justificativa para coibir qualquer forma de discriminação e preconceito, especialmente em momentos de crise.

As vítimas do césio-137 tiveram de aprender a conviver não apenas com as sequelas físicas e psicológicas do acidente, mas também com o preconceito de pessoas de outras cidades brasileiras. Tal como ocorrera em Tchernóbil:

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“E de repente, de um dia para o outro, você se torna um homem de Tchernóbil. ‘As pessoas não me deixavam entrar na casa delas.’” (Aleksiévitch 2016, p. 56)

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“Desde os primeiros dias sentimos que nós, gente de Tchernóbil, éramos repudiados. Tinham medo de nós.” (Aleksiévitch 2016, p. 189)

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Foi esse tipo de preconceito que, sim, custou muito dinheiro aos cofres do estado de Goiás, impossibilitado de escoar sua produção agropecuária para outras partes do país. Ainda hoje, muitas vítimas do acidente em Goiânia preferem não mencionar que vivenciaram de perto o desastre para evitar serem alvos de preconceitos ou mesmo acusações.

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Novas crises no horizonte

Eu afirmei no início deste artigo que as duas crises — a pandemia e o desastre com o césio-137 — tiveram suas respectivas origens em atividades humanas. Mas disso não se segue que alguém tenha desencadeado as crises de propósito. Por outro lado, o que se torna mais claro agora é que ambas as crises poderiam ser deflagradas de modo deliberado. Grupos terroristas, ou indivíduos isolados, movidos por ódio ou fanatismo, podem tentar empregar dirty bombs ou criar armas biológicas por meio de tecnologias relativamente baratas e facilmente acessíveis.

Denomina-se dirty bomb (ou dispositivo de dispersão radiológica) um artefato explosivo que, quando detonado, tem o poder de dispersar material radioativo. O elemento radioativo pode em princípio ser o mesmo existente nos equipamentos para radioterapia, como aquele que foi parar num ferro-velho de Goiânia. Uma dirty bomb não é a mesma coisa que uma bomba atômica porque a intensidade da explosão, nesse caso, depende apenas do material explosivo utilizado, e não de fissão nuclear. Uma dirty bomb teria pouca utilização militar, mas ela poderia gerar grandes prejuízos em áreas urbanas. O principal dano não decorreria da explosão em si mesma, mas do pânico gerado nas pessoas. O mais provável é que seu efeito imediato consista no colapso do sistema de saúde local e na contaminação de áreas que teriam de ser evacuadas e posteriormente descontaminadas, num processo que poderia se estender por vários meses, talvez anos. As pessoas que não forem diretamente atingidas pela explosão podem, ainda assim, passar o resto da vida sob o medo de desenvolver um câncer, em decorrência de uma eventual exposição à radiação. Essa é, inclusive, uma preocupação ainda hoje recorrente entre as vítimas do desastre em Goiânia. Como uma dirty bomb até hoje nunca foi detonada, o principal modelo que existe sobre o poder de devastação física, social, e psicológica de uma dirty bomb são os estudos internacionais sobre o desastre em Goiânia.

Uma epidemia também poderia ter como origem um ataque terrorista. A varíola, por exemplo, foi erradicada na década de 1970. Apenas dois laboratórios de alta segurança — um nos Estados Unidos e outro na Rússia — ainda têm amostras do vírus. Mas mesmo que grupos terroristas — ou algum fanático isolado — não tenham acesso às amostras ainda existentes, o genoma da varíola é conhecido. Isso significa dizer que um vírus similar, como por exemplo o da varíola bovina, poderia ser obtido e modificado com tecnologias para edição genômica (CRISPR) com vistas à recriação do vírus da varíola. As pessoas mais velhas, imunizadas contra a varíola nas décadas de 1970 e 1980, já perderam a imunidade há muito tempo.

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A extensão espaciotemporal das duas crises

Eu gostaria de destacar por fim uma importante similaridade entre as duas crises no que se refere às suas respectivas dimensões espaciotemporais. Uma pandemia, por definição, afeta toda a área habitável de nosso planeta. Mas ela não precisa necessariamente se estender durante um longo período de tempo. É razoável supormos que, em poucos anos, graças à vacinação em massa da população mundial, o novo coronavírus seja praticamente erradicado dos seres humanos. O acidente em Goiânia, por outro lado, foi circunscrito a uma área relativamente pequena. No entanto, apenas 19g de césio-137 foram suficientes para produzir 6 mil toneladas de rejeitos nucleares, que agora precisam ser constantemente monitorados. Estima-se que sejam necessários cerca de 300 anos até que os resíduos do acidente em Goiânia possam ser considerados inofensivos para o meio ambiente.

O rejeito nuclear oriundo do desastre em Goiânia foi transferido para um depósito especialmente construído na cidade de Abadia de Goiás. Foram necessários cerca de 10 anos para que o depósito ficasse pronto e pudesse abrigar com segurança, pelos próximos 300 anos, cerca de 1.300 caixas especiais, 4.200 tambores de aço, e 10 contêineres numa instalação de concreto e chumbo, parcialmente subterrânea, que se eleva do solo lembrando duas pirâmides. A exemplo do que ocorreu em Tchernóbil:

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“É o sarcófago que construíram com as próprias mãos e no qual depositaram a chama nuclear. Uma pirâmide do século XX.” (Aleksiévitch 2016, p. 36)

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Uma equipe da CNEN controla periodicamente os níveis de radiação local, incluindo o lençol freático da região. Aparentemente, nem mesmo a queda de um avião sobre a área comprometeria seriamente a segurança da instalação. Em função dos custos envolvidos, apenas poucos objetos, como fotos de família e documentos pessoais, foram submetidos à descontaminação para que pudessem retornar a seus donos sem oferecer risco de contaminação. A memória de famílias que tiveram suas casas demolidas ou altamente contaminadas permanecerá pelos próximos séculos preservada no depósito de Abadia de Goiás.

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O Brasil pós-pandemia

Com o fim da pandemia, a reconstrução da economia e da infraestrutura dos serviços de saúde pública no Brasil não deveria ter como meta retornar à normalidade, mas criar as condições para que uma nova normalidade possa emergir. O desastre com o césio-137 ocorreu em Goiânia quando as pessoas ainda tinham fresco na memória o acidente nuclear em Tchernóbil. A extensão da devastação pode ter sido maior em 1986, mas o drama humano, como tentei mostrar através de referências a diversas passagens da obra de Svetlana Aleksiévitch, não foi muito diferente: falta de transparência do poder público, preconceito contra as vítimas, pouca atenção às demandas de grupos vulneráveis, isolamento social, sequelas físicas e psicológicas, sepultamentos em circunstâncias traumáticas para os familiares. A pandemia, por outro lado, ocorre às vésperas do que deve se tornar uma catástrofe ainda maior: as mudanças climáticas. Tal como a catástrofe em Goiânia e a pandemia atual, as mudanças climáticas também decorrem de atividades humanas. Se as mudanças climáticas não forem contidas nas próximas décadas, através sobretudo da redução radical das emissões de gases do efeito estufa, teremos pela frente uma crise sem precedentes na história da humanidade. Compete agora aa todos os países, enquanto se recuperam da crise atual, criar as condições para que possamos evitar no futuro os erros cometidos na gestão de crises passadas.

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(Estadão Conteúdo)

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Leitura sugerida

Aleksiévitch, Svetlana. 2016. Vozes de Tchernóbil: A história oral do desastre nuclear. Traduzido por Sônia Branco. São Paulo: Companhia das Letras.

Araujo, Marcelo de. 2019. Novas tecnologias e dilemas morais. São Paulo: KDP.

Helou, S. 2017. Os bastidores do césio-137: O acidente radiológico de Goiânia sob a ótica dos profissionais que nele atuaram. Curitiba. Appris, p. 40.

Lacerda, C. 2019. Sobreviventes do césio 137. Goiânia: Nega Lilu, p. 65, 89.

Meyer, Lukas; Araujo, Marcelo de. 2020. “The COVID-19 pandemic and climate change: Why have responses been so different?”. E-International Relations, 20 abril 2020, 6p. https://www.e-ir.info/2020/04/20/covid-19-pandemic-and-climate-change-why-have-responses-been-so-different/

Oliveira Júnior, E.M. 2016. O grande medo de 1987: Uma releitura do acidente com o césio-137 em Goiânia. Tese de Doutorado. Brasília: UnB, p. 67.

Secretaria de Estado da Saúde de Goiás. 2017. 30 Anos: Césio-137. Goiânia: Kelps, p. 40.

Senado Federal, Rádio Senado. 2011. Os heróis esquecidos da tragédia do césio 137 [gravação de som]. https://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/200472

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Este artigo retoma resultados de um projeto de pesquisa desenvolvido pelo autor em conjunto com Lukas Meyer (Universidade de Graz, Áustria) sobre pandemia e mudanças climáticas. O autor agradece à CAPES, que possibilitou a vinda de Lukas Meyer ao Brasil em março de 2020 para realização de um seminário sobre justiça e mudanças climáticas na Faculdade de Direito da UFRJ.

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Marcelo de Araujo

Marcelo de Araujo é Professor de Filosofia do Direito na Universidade Federal do Rio de Janeiro, Professor de Ética na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Pesquisador Bolsista de Produtividade do CNPq (Filosofia), Pesquisador Cientista do Nosso Estado da FAPERJ.