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Ciência e irracionalidade

por Claudemir Roque Tossato

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Stephen Jay Gould escreveu certa vez que “com frequência, a religião incentivou ativamente a ciência. Se existe um inimigo consistente da ciência, não é a religião, mas a irracionalidade”.[1] Para Gould, a ciência não luta contra a religião, mas contra a falta de um padrão racional no que concerne ao entendimento do mundo. Claro que, filosófica e cientificamente, já temos um problema difícil com essa afirmação de Gould, a saber, o que é a irracionalidade? E a necessidade de definir, consequentemente, a racionalidade. Como uma definição de racionalidade, por mais grosseira que seja, é necessária para a tentativa de entendimento da afirmação de Gould, podemos dizer que racionalidade é principalmente um diálogo com critérios que não são pessoais, voltado à obtenção de uma decisão sobre um determinado problema, ou questão. O que é racional é que tipo de decisão se chega, fundamentado tanto em critérios objetivos quanto em provas e justificativas também objetivas. Como primeiro exemplo, e um muito simples, podemos dizer que dadas as definições de número natural e dada a definição da operação de adição, a resposta para o problema 2 + 2 é 4 torna-se racional. Caso alguém não concorde (e acho que, por diversas razões, sejam filosóficas ou outras, algumas pessoas talvez não concordem) que forneça a sua prova com critérios e provas racionais, isto é, que se chegue a uma decisão justificada. Um segundo exemplo, também banal, é que as pessoas sabem que tocar com a mão molhada pela água de torneira em um fio elétrico desencapado ligado a uma fonte de energia elétrica poderá levá-las a sentir algo desagradável, como um choque elétrico, e as pessoas sabem disto tanto por experiências vividas ou relatadas por outros quanto pelos ensinamentos básicos da física, a qual explica que a água vinda das torneiras é um grande condutor de eletricidade. Em ambos os exemplos, acreditar que 4 é a soma de 2 +2 e acreditar que tocar um fio elétrico desencapado ligado a uma fonte de energia implica em um choque elétrico, existem boas justificativas, temos boas razões para essas crenças. Uma grande parte de nossas crenças diárias tem uma base racional. Quando ligo o meu computador, sei que ele precisa de energia elétrica para funcionar; caso a bateria esteja fraca, ligo-o a uma tomada de energia elétrica, isto é uma decisão racional; por outro lado, caso eu amarre o fio do computador no pé da minha cama, isto seria irracional, não seria uma boa decisão. Se quero tomar banho e tenho um chuveiro em bom funcionamento e, principalmente, água na caixa d´água, vou utilizá-lo, e esta atitude é racional; mas, caso fique implorando para uma entidade divina me mandar água, não tomarei uma atitude racional, mas de outra espécie. A ciência também compartilha com a vida diária as decisões racionais. Portanto, se formos simpáticos à opinião de Gould, concordaremos que, caso a ciência tenha um inimigo, este é a irracionalidade, pois esta é marcada especificamente pela falta de critérios objetivos e justificações racionais para as suas afirmações ou tomadas de decisão.

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Stephen Gould (Wally McNamee/CORBIS/Getty Images)

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Mas um espírito rebelde pode perguntar: Por que devo tomar decisões racionais? Se sou um ser livre, posso escolher entre a racionalidade e a irracionalidade. Uma resposta poder ser a seguinte: tomar uma decisão quando é possível escolher entre a racionalidade e a irracionalidade pode ser entendida como uma aposta; mas uma aposta injusta, sem igualdade entre as partes: a racionalidade ganhará na grande maioria das vezes e perderá em pouquíssimas; a irracionalidade, por outro lado, perderá na grande maioria das vezes e ganhará em poucas ocasiões. E isto, que é preciso ter em mente, é devido aos critérios postos pelas decisões racionais; caso alguém duvide, tente amarrar o fio de seu computador ao pé da cama. Sublinhei “quando é possível”, pois as pessoas e as sociedades que se utilizam da racionalidade científica nem sempre tiveram em mãos condições para exercer a racionalidade em grau satisfatório. A história fornece muitos exemplos. A projeção de mortes ocasionadas pela peste que varreu a Europa entre 1347-1351 é de 1/3 de sua população e a da gripe espanhola, no século XX, cerca de 100 milhões de pessoas vitimadas; isto se deve, fundamentalmente, à falta de vários fatores para combater as moléstias: como dados confiáveis, conhecimento dos micro-organismos causadores das moléstias; medicações (antibióticos e vacinas, para um caso ou outro) procedimentos de isolamento social, de assepsia etc. que, sem os quais, a racionalidade não tem como operar de maneira satisfatória. Assim, as condições históricas são básicas para o exercício competente da racionalidade.

Contudo, deixando essas questões mais difíceis e polêmicas sobre o que é a racionalidade para outro momento, a imagem reinante e comum para a maioria das pessoas, muito influenciada nos dias de hoje pelos meios de comunicação e pelas redes sociais, ficou a de que a ciência, principalmente a ciência moderna, veio para destronar a religião, de maneira que muitos debates sobres questões fundamentais para as sociedades humanas são enviesados pela disputa exclusiva entre ou uma postura religiosa ou uma cientifica, raramente tendo a junção das duas. Acredito que isto encobre o papel fundamental e necessário que a ciência pode ter em nossas vidas, a saber, a de eliminar, ou diminuir drasticamente, a irracionalidade nas questões concernentes à compreensão humana sobre o mundo empírico e, consequentemente, tomadas de decisão mais satisfatórias.

Notemos que Gould não afirma que a ciência luta contra a ignorância, mas contra a irracionalidade. Isto, parece-me, é algo importante, pois, “ignorância” não é necessariamente sinônimo de “irracionalidade”. Na língua portuguesa, é posto no Dicionário Houaiss que “ignorância” tem como suas duas principais acepções: “1. Estado de quem não está a par da existência ou ocorrência de algo. 2 Estado de quem não tem conhecimento, cultura, por falta de estudo, experiência ou prática”. Mas a definição nada fala de atitude não racional. Assim, qualquer pessoa pode ser ignorante em muitas coisas sem, contudo, ter uma atitude irracional. Aliás, é possível dizer que toda pessoa é ignorante sobre alguma coisa. Por exemplo, a maioria das pessoas — eu, inclusive — é ignorante em algum grau acerca de assuntos da medicina (esta maioria não tem conhecimentos necessários para ser um profissional da medicina). O que a grande maioria das pessoas pode ter — e, na verdade, deveria ter – são rudimentos sobre a medicina, noções básicas adquiridas tanto em sua formação escolar como por curiosidade, sem, contudo, dominar em um grau satisfatório o conhecimento médico para exercer essa profissão.  A grande maioria das pessoas não sabe diagnosticar, aplicar medicações, oferecer terapias médicas etc., pois não foi preparada para isto, não tem o conhecimento necessário para exercer tais tarefas; elas, ao contrário disto, precisam das sugestões médicas para resolver seus problemas de saúde. Contudo, mesmo sendo ignorantes nesses assuntos, isto não implica que sejam irracionais; elas podem tomar atitudes racionais, a saber, aceitar um tratamento prescrito, medicações, indicações cirúrgicas ou tomar vacina quando recomendada pelas autoridades competentes, isto, é, médicas, ou até procurar outro profissional de saúde caso o diagnóstico dado não lhe tenha sido satisfatório. Tal atitude racional pela grande maioria das pessoas nos remete ao ponto central do exercício da racionalidade pela ciência.

A pergunta básica é, assim: por que nós, que somos ignorantes em assuntos científicos, devemos confiar na ciência? Ou de uma forma mais específica: por que devemos confiar na medicina, por exemplo? Uma resposta possível e não a única é que a ciência e a medicina exercem a racionalidade em larga escala. Seus critérios são o fruto de um exercício contínuo e rigoroso para obter as respostas mais racionais. Mas penso que o maior empecilho para esta compreensão é que o papel de elaboração do conhecimento obtido pela medicina, assim como em outras ciências, não é visualizado de imediato pela maioria das pessoas, pois os resultados das ciências, como os da medicina, tornam-se englobados na cultura em geral de maneira que não percebemos seu poder por estarmos afastados de seus mecanismos de elaboração do conhecimento. Contudo, mesmo que não saibamos como a ciência adquire conhecimentos, o papel da ciência e a confiança que temos nela determinam o seu peso nas nossas sociedades atuais, pois ela é adotada em todas as sociedades que têm contato com ela, como diz Rosenberg:

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Quer gostemos ou não, a ciência parece ser a única contribuição universalmente bem-vinda da civilização europeia para todo o resto do mundo. É sem dúvida a única coisa desenvolvida na Europa e adotada por todas as outras sociedades, culturas, religiões, nações, populações e etnias que sobre ela aprenderam. A arte, a música, a literatura, a arquitetura, a ordem econômica, os códigos legais e os sistemas de valores éticos e políticos do Ocidente sem dúvida têm obtido aceitação comum. Entretanto, uma vez iniciada a descolonização, essas “bençãos” da cultura europeia têm sido na maioria dos casos repudiadas pelos não-europeus. Mas não a ciência.[2]

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As artes, economias, políticas etc. ocidentais podem e são constantemente atacadas por povos não-ocidentais, mas a ciência e a tecnologia acabam por imperar sobremaneira em todos os povos que vierem a consumi-las.

Saber o contexto completo do predomínio da ciência em nossas sociedades atuais é algo muito complexo e polêmico, envolvendo abordagens epistemológicas e sociológicas com posturas às vezes discordantes. Mas um ponto central diz respeito à confiabilidade na ciência. Quer estejamos ou não iludidos sobre ela, algo é saliente: ela resolve problemas e acaba por ser extremamente importante em nossas vidas, mesmo que não percebamos o seu papel ou não venhamos a nos perguntar sobre isto.

Um exemplo banal sobre essa importância da ciência é que pouquíssimas pessoas se surpreendem hoje em dia com o fato de que a Terra está em movimento, e a grande maioria aceita, sem problema algum, que tudo que está contido na Terra, nosso planeta, esteja parado e em movimento ao mesmo tempo; por exemplo, eu, a minha cadeira, a minha mesa e o meu computador que utilizo para escrever este texto estão todos parados, estáticos, sinto isto, também sei que se sair de minha casa, a minha rua estará lá; mas, ferindo a crença em minhas percepções imediatas, estão todos também se movendo porque acompanham o movimento da Terra. Não sinto os movimentos da Terra, mas acredito que ela está se movendo e que tudo que ela contém está acompanhando-a, de sorte que dizer que eu, minha cadeira, minha mesa e meu computador e até minha rua se movem e estão parados ao mesmo tempo não causa alarde em quase ninguém, pois, depois de Galileu, não há qualquer tipo de problema em termos de conhecimento dizer que Terra se move e não se move, porque quem determina o estado do movimento é a posição do observador: como estou na Terra, acompanhando o movimento desta, o meu computador, rua etc. acompanham o movimento também; se eu estivesse fora da Terra, poderia notar o movimento dela e das coisas junto com ela. O importante, então, é que acreditar na relatividade mecânica do movimento não produz crise, seja epistemológica, seja existencial, em ninguém; mas mostra, isto sim, nossa confiança na ciência. Essa confiança está alicerçada em nossas vidas e não necessitamos fazer um contínuo e diário questionamento sobre a confiança naquilo que a ciência nos diz.

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Galileu por Justus Sustermans, 1636

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Mas, historicamente, aceitar cientificamente que a Terra se move não foi algo fácil na história do conhecimento humano. Concepções contrárias a essas, como a de acreditar que a Terra está parada e tudo que está fora dela, planetas, Sol, estrelas etc. gira ao seu redor carregam argumentos fortes e racionais a seu favor. A ciência, após Copérnico, iniciou um trabalho extremamente árduo e difícil para justificar racionalmente que estamos em um móvel percorrendo os céus. A disputa foi ferrenha porque a defesa tanto de um mundo geocêntrico como a de um heliocêntrico contêm alto grau de racionalidade. O mundo aristotélico-ptolomaico não era irracional; acreditar que a Terra está parada e o restante gira ao seu redor não foi algo fácil de ser questionado, se o fosse, não precisaríamos de mentes como as de Copérnico, Brahe, Kepler, Galileu, Descartes e Newton, entre outros, que trabalharam ou auxiliaram no desenvolvimento da noção de uma Terra em movimento.

A ciência moderna juntamente com a tecnologia, ocorrida a partir dos séculos XVI e XVII, modificou drasticamente nossas vidas. Exemplos são muitos: desde os mais evidentes, como a medicina científica, que, entre outras coisas, diminuiu consideravelmente a taxa de mortalidade infantil, aumentou a expectativa de vida etc.; nas comunicações, através da internet, correios eletrônicos etc., nos transportes, com aviões, automóveis e trens. Enfim, em quase todas as áreas que fazem parte de nossas vidas modernas, a ciência e a tecnologia estão presentes. A ciência em geral, e especialmente a moderna, é fruto da máxima de Gould. A luta contra a irracionalidade.

Contudo, a ciência, como parte importante de nossas vidas, sofre diversos tipos de críticas, algumas muito bem-vindas, como epistemológicas, éticas ou sociológicas, entre outras. Mas há um tipo de crítica que acredito ser danosa, o chamado ‘negacionismo” da ciência e, como consequência, a negação da racionalidade exercida por ela. A intenção negacionista é desacreditar o papel da ciência em nossa sociedade, elaborando uma série de questionamentos contra ela; porém, as questões que apresenta são marcadas pela falta de racionalidade, dando vida ao verdadeiro inimigo da ciência, a irracionalidade. O negacionismo tem uma certa estratégia: ou apresenta apenas a conclusão sem as premissas, o que não é um argumento; ou apresenta premissas sem relação de racionalidade com a conclusão, o que é um péssimo argumento. Obviamente, a intenção com o negar a ciência não é para desenvolvê-la ou melhorá-la, mas sim desacreditá-la em alto grau, desacreditando também a racionalidade e criando as condições para interpretações de cunho emocionais e irracionais. Um grande exemplo de negação da racionalidade foram o fascismo e o nazismo. Infelizmente, devido em parte aos desenvolvimentos dos sistemas de comunicação (internet, redes sociais etc. que têm, fora a possibilidade de levar em larga escala conhecimentos salutares para as pessoas, a possibilidade, também, de criar notícias falsas, apelativas e com baixíssimo grau de racionalidade) teremos de conviver com o negacionismo por muito tempo (se chegarmos a ter muito tempo), porque ele vende, dá lucros de diversas maneiras: ele alimenta controvérsias replicadas nas redes sociais, diverte as pessoas com as chacotas que a negação traz; é motivo de discussão entre as pessoas, conduz brigas entre amigos e familiares. E, para mantê-lo, só precisamos pagar as contas; uma delas é uma boa parte das mais de 200.000 mortes pela Covid-19 somente no Brasil.

Uma das principais controvérsias posta pelo negacionismo diz respeito ao debate atual marcado pela séria crise que a pandemia da Covid-19 trouxe. As marcas básicas são a negação em larga escala de medidas de cunho científico (e de bom senso), tais como sobre o questionamento do perigo do vírus — inicialmente, negava-se a existência do vírus; em seguida, que ele não é tão perigoso como dito —; das medidas de proteção (como o de uso de máscaras, de lavagem frequentes das mãos etc.) e de isolamento social e, mais recentemente, um ataque feroz às vacinas como solução para a crise pandêmica, negando-se ou a eficácia das vacinas, ou gerando dúvidas sobre possíveis efeitos que ela poderia causar, o que gerou o alarmante dado de que uma percentagem relevante da população brasileira se recusará a ser vacinada ou não se vacinará se a vacina for de um certo país, a China. Todas as razões postas pelo negacionismo contra a vacina e as medidas de proteção já foram e são ainda ampla e competentemente refutadas pelas comunidades sérias que cuidam da saúde, não necessitando ser dito algo sobre esses argumentos aqui. Mas algo deve ser ressaltado, que acredito ser uma das fontes de exploração do negacionismo e que contém alto grau de irracionalidade. Na verdade, a negação de todos os fatores preventivos e corretivos contra o vírus Sars-CoV-2 traz embutida a noção de que os seres humanos são “superiores” ao vírus, de maneira que muitos acreditam que o vírus não os atingira ou, se os atingir, serão “fortes” o suficiente para nada sofrer além de uma pequena gripe, um pequeno mal-estar. E é nisto que está o perigo. O papel da irracionalidade, lembremos, a verdadeira inimiga da ciência, não é apenas negar as medidas protetivas e as vacinas, mas um conjunto mais amplo de elementos básicos — tal como a nossa existência enquanto seres biológicos, isto é, seres reais, materiais e, se quiserem, negar as nossas existências enquanto meros animais sujeitos às consequências do mundo físico. São várias as razões, bem fundamentadas, para não ser tão confiante na nossa superioridade em relação aos vírus e que necessitamos das medidas de proteção e, principalmente, de vacinas para podermos superar esta grave crise. Em primeiro lugar, os vírus fazem parte de nossa história, e eles já dizimaram partes expressivas de nossa população. Pensemos na varíola, talvez a doença mais terrível que a humanidade enfrentou, que retirou as vidas, somente no século XX, de cerca 300 milhões de pessoas. Em 1980 a OMS certificou a erradicação da doença e isto foi devido a diversos fatores, mas o principal foi a vacina. A lista de doenças que são controladas pelas vacinas é grande e não é necessário falarmos delas neste texto. Em segundo lugar, mesmo que a pandemia atual não dizime tanto como a varíola e outras doenças — o que de fato parece ser verdade, devido a sua baixa letalidade —, isso não implica que não ocorrerão problemas, consequências indesejáveis para uma sociedade. A escolha por não se vacinar traz embutida a responsabilidade pela vidas das pessoas que não podem ser vacinadas, como pessoas com alergias severas, em tratamento de doenças autoimunes, tratamento de câncer e outras; a vacinação permite proteger pessoas vulneráveis o que, por si só, já é um grande incentivo para a vacinação; o indivíduo que não se vacinar também se tornará responsável pelo colapso do sistema de saúde, no qual não haverá condições nem de tratamento de vítimas da Covid-19 nem para outras enfermidades — isto já aconteceu e acontece devido à falta de responsabilidade no uso de máscaras e nas aglomerações — e também já é mais do que clara a quantidade de profissionais da saúde que foi perdida durante a pandemia e quantos profissionais estão trabalhando no seu limite.

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Gripe espanhola (Reprodução)

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E em terceiro lugar, talvez o mais complexo, é sobre a liberdade do indivíduo. Muito dizem que a escolha de tomar ou não a vacina diz respeito somente ao indivíduo, somente ele pode decidir. Um argumento sobre a liberdade humana. Mas talvez seja preciso relativizar a noção de liberdade em relação aos vírus, algo que o negacionismo não faz. Defendo que devemos ser livres em muitos aspectos: liberdade para viver, liberdade de expressão, liberdade política, religiosa, cultural, costumes, gêneros etc. Todas essas passam pelo âmbito das conquistas e, em muitos casos, negociações são feitas para salvaguardar a liberdade dos indivíduos, a democracia é um bom exemplo. Mas a questão em jogo é distinta dessas apontadas, pois é possível ser livre para escolher se proteger ou não do vírus Sars-CoV-2? Ou, o que é mesmo, posso escolher não me proteger do vírus em questão não tomando a vacina? Sim é possível, posso não me proteger, mas acho que é uma atitude não racional, admitindo-se, claro, que as vacinas são eficazes — o que, penso, temos boas razões para acreditar que elas são. O vírus não negocia com o ser humano, ele age com o intuito de “viver” e se reproduzir. Até onde sabemos, os vírus não compartilham noções como “liberdade” como as que nós, humanos, temos. As pessoas não têm condições racionais de aplicar a liberdade em relação ao vírus, o que se pode é combatê-lo. Não é uma questão de escolha, pois, guardadas as devidas distinções, querer enfrentar de peito aberto o vírus é a mesma coisa de se atirar do vigésimo andar de um edifício: “pode ser que eu sobreviva, porque a gravidade não me vencerá”. No caso da atual pandemia, estamos jogando os nossos avós para provar uma das máximas expressões da irracionalidade humana.

No caso da pandemia, as pessoas que têm conhecimento sobre ela e a autoridade pelas decisões racionais que devem ser tomadas para o seu controle são os profissionais da saúde e, principalmente, os órgãos responsáveis (e que sejam sérios, comprometidos com salvar vidas) pela saúde pública e as instituições sérias de pesquisa. Em termos mais práticos, não é alguém que se diz profissional da saúde (que às vezes nem sabemos se é de fato um profissional) que envia mensagens pelas redes sociais desmerecendo o trabalho de instituições competentes e responsáveis, como o Instituto Butantã e a Fundação Oswaldo Cruz, entre outras, falando de remédios milagrosos ou contra o uso de máscaras, vacinas etc. que devemos depositar nossa confiança. O exercício de nossa racionalidade nesses momentos é confiar na ciência institucionalizada. A racionalidade exercida pelo paciente, daquele que não tem necessidade de ter conhecimento médico, está, fundamentalmente, na aceitação das recomendações médicas feitas pelos órgãos responsáveis.

A grande maioria das pessoas exerce a racionalidade. Acredito que uma esmagadora parte de nossas sociedades concorda que 2 + 2 = 4. Assim é importante também exercer a racionalidade em questões importantes para a vida, tanto individual como em sociedade. No caso da pandemia da Covid-19, é fundamental saber se nossas crenças e atitudes carregam um grau satisfatório de racionalidade ou se acabaremos agindo mais por paixões e crenças sem respaldo racional. No último caso, creio que o preço a pagar será muito alto.

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Cemitério Parque Taruma, em Manaus (Michael Dantas/AFP)

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Notas:

[1] Gould, S. J. Darwin e os grandes enigmas da vida. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 137.

[2] Rosenberg, A. Introdução à filosofia da ciência. São Paulo: Edições Loyola, 2009, p. 27.

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Claudemir Roque Tossato

Claudemir Roque Tossato é professor de Filosofia da Ciência na Unifesp.