A Peste no De rerum natura (6.1138-286) de Lucrécio – Parte V

Hoje, no Estado da Arte, Alexandre Hasegawa dá continuidade à tradução comentada da peste e da morte no DRN de Lucrécio. MORS.

por Alexandre Pinheiro Hasegawa

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Parte I

Parte II

Parte III

Parte IV

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Aproximamo-nos do fim: do fim do poema, que termina no verso 1286 do livro seis; do fim desta série, que pretendia comentar o episódio da peste no De rerum natura (“Sobre a natureza das coisas”) de Lucrécio, com especial atenção à elocução do poeta. A conclusão da obra — se de fato é a parte final da obra de seis livros — é um relato sobre a morte, que se vê em toda parte, causada pela peste que acometeu Atenas em 430 a.C. Neste sentido, o término do poema coincide com o término da vida. Um modo, aliás, comum de concluir um poema desde Homero. Não sem razão, Horácio, no falso fim do primeiro livro das Odes (1.10), alude nas duas últimas estrofes (vv. 13-20) ao último canto da Ilíada e ao da Odisseia: ao canto 24 daquele poema, ao falar de Príamo, que suplica a Aquiles o corpo do filho (Odes 1.10.13-16); ao canto 24 dessa epopeia, ao falar de Hermes, que conduz a alma dos pretendentes no Hades, mortos por Odisseu (Odes 1.10.17-20). O fim da Eneida (canto 12) de Virgílio também, como não poderia deixar de ser, coincide com a morte de Turno — já antecedida pelas mortes de Creusa no fim do segundo, de Anquises no fim do terceiro, de Dido no fim do quarto, de Palinuro no fim do quinto, de Mezêncio, no fim do décimo e de Camila no fim do décimo primeiro. Já o próprio Lucrécio termina outro canto com a morte: ao fechar a primeira metade da obra (3.1091-1094), lá está ela, “a morte eterna”:

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mors aeterna tamen nihilo minus illa manebit,

nec minus ille diu iam non erit, ex hodierno

lumine qui finem vitai fecit, et ille,

mensibus atque annis qui multis occidit ante.

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aquela morte eterna, contudo, sempre há de [te] esperar,

e aquele que pôs fim à vida nesta luz hodierna

não deixará de existir por muito tempo menos

do que aquele que morreu muitos meses e anos antes.

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A morte imortal conclui a vida mortal (cf. DRN 3.869). Contudo, o mesmo Lucrécio, no início de seu epos didático, já dissera que também os versos são eternos (DRN 1.121: aeternisversibus). Na passagem, o poeta faz elogio de Ênio e, provavelmente, alude ao famoso epitáfio do autor dos Anais, poema que será o primeiro modelo de poesia hexamétrica no mundo latino (fr. 2a-b = fr. var. 17-8 Vahlen):

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nemo me lacrimis <decoret nec funera fletu

faxit>. cur? volito vivos per ora virum.

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Ninguém me honre com lágrimas nem faça funeral

com pranto. Por quê? Voo vivo na boca dos homens.

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Era muito famoso entre os autores romanos esse epigrama, citado por Cícero (Discussões Tusculanas 1.34 e 117) e imitado, por exemplo, por Virgílio (Geórgicas 3.8-9: temptanda via est, qua me quoque possim / tollere humo victorque virum volitare per ora: “deve-se tentar esta via pela qual também eu, vencedor, possa me erguer da terra e voar na boca dos homens”), e por Horácio (Odes 2.20, esp. vv. 21-24), que ainda fará uso da tópica em outros lugares estratégicos de sua recolha lírica (Odes 3.30; 4.8; 4.9). Enfim, são os eternos versos a imortalizar a eterna morte que voltamos a comentar neste novo texto tão passageiro e breve como a vida.

Em nossos comentários privilegiamos, como dissemos, caracterizar a elocução de Lucrécio, que, de acordo com Nisbet (1991: 1), “é o aspecto mais importante” de um poeta e a “a parte mais difícil de caracterizar”. Ainda segundo o filólogo, para tal complicada tarefa, “a melhor abordagem é concentrar-se em passagens particulares em que a idiossincrasia do poeta aparece em sua forma mais pura”. Ao longo dos quatro textos que publicamos aqui os comentários se concentraram nas aliterações, paronomásias, assonâncias, figuras etimológicas, hipérboles, anáforas, arcaísmos, metáforas etc. Não deixamos de lançar alguma atenção sobre os aspectos métricos, a ordem das palavras e a sintaxe mimética. Os ornamentos, porém, com frequência, são empregados em conexão com a matéria, o que os antigos chamavam de adequação ou decoro (decorum ou ??????), ou seja, há um modo de dizer conveniente ao que se diz.

Mas como e o que se diz, como vimos, é muita vez imitação de um modelo. Se, por um lado, Lucrécio imitou tanto na matéria como na elocução os autores gregos, como Homero, Empédocles, Hipócrates, Tucídides e Epicuro, e os latinos, como Ênio, por outro, foi ele mesmo imitado por Virgílio, Horácio e Ovídio. Vê-se, assim, que, embora o inventor do epos didático tenha sido para os antigos Hesíodo, Lucrécio tem modelos de diferentes gêneros, em verso e em prosa, como os escritos médicos e a historiografia, a fim de expor a filosofia epicurista a Mêmio.

Entre os modelos, Tucídides se destaca nesta parte sobre a peste, como ressaltamos no último texto. De modo particular, a passagem de 1230-1251, a segunda parte do relato (de 2.1 a 2.5 em nossa divisão), segue de perto trecho da História da Guerra do Peloponeso (II.51.4-5), que pode ser lido na tradução de Márcio Mauá Chaves Ferreira, publicada aqui no Estado da Arte. Bailey (1947: 1736-1737), em seu importante comentário, divide esta seção (DRN 6.1230-1251), intitulando-a “Os efeitos da peste”; seção em que se descreve o acúmulo de mortes e o desespero diante da peste que se espalha por toda parte, não se salvando quase ninguém.

Comentamos também em nosso percurso — na terceira parte da série —, ainda que brevemente, sobre a história desse texto. Os mais antigos manuscritos dessa obra, escrita no séc. I a. C., datam do séc. IX d. C. Não muito conhecido e comentado durante a Idade Média, o DRN foi redescoberto no Renascimento por Poggio Bracciolini, em 1417, fato que foi narrado por Stephen Greenblatt em seu premiado best-seller The Swerve: How the World Became Modern. A longuíssima jornada da obra até o nosso tempo ocasionou, provavelmente, alguns acidentes no texto, o que foi oportunidade para tratarmos, também ligeiramente, de crítica textual. Como se verá, o trecho de hoje não só traz transposição de verso, mas também lacuna.

Apresentamos hoje não só a segunda parte do relato da peste — divisão estabelecida por nós —, mas também o início da terceira (6.1252-1255), em que a doença chega ao campo. Seguem-se os comentários das partes em pequenas seções.

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Manuscrito do DRN no acervo da biblioteca da Universidade de Cambridge (Wikimedia Commons)

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Lucrécio 6.1230-1234: A Peste (2.1)

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?ll?d ?n h?s r?b?s || m?s?r?nd?m m?gn?p?r(e) ?n?m……………………………..1230

a?r?mn?b?l(e) ?r?t, || qu?d ?b? s? qu?squ? v?d?b?t

?mpl?c?t?m m?rb?, || m?rt? d?mn?t?s ?t ?ss?t,

d?f?c??ns ?n?m? || ma?st? c?m c?rd? i?c?b?t,

f?n?r? r?sp?ct?ns || ?n?m(am) ?m?tt?b?t ?b?d?m.

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Nestas circunstâncias, uma única coisa grandemente deplorável,…………..1230

angustiante, era isto: que, quando alguém se via envolvido

na enfermidade, como se à morte tivesse sido condenado,

exaurindo em seu ânimo, com lúgubre coração jazia;

o funeral antevendo, aí mesmo deixava a alma partir.

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No primeiro verso, a cesura deixa de um lado palavras breves, monossílabos e dissílabos, e do outro as longas, os polissílabos miserandum e magnopere, que formam ainda um par aliterativo. O dissílabo final, por causa da elisão, forma uma única longa palavra com o advérbio magnopere (“grandemente”), que amplifica os adjetivos. Daí, há não só aliteração, mas também homeoteleuto em –um entre as duas palavras: miserandUM e magnoper(e)unUM. O mesmo ocorre logo na sequência, com o enjambement, entre o adjetivo aerumnabile — provável invenção lucreciana — e o verbo erat, que formam, pela elisão, um único enorme vocábulo: aerumnabil(e)erat. Parece, portanto, que os termos extensos são adequados a descrever a extensão da angústia e do lamento que afeta a todos.

É tendência de Lucrécio colocar os verbos no fim dos versos, posição de relevo, como faz na sequência dos vv. 1231-1233: videbat (“via”), damnatusesset (“tivesse sido condenado”) e iacebat (“jazia”). Tal padrão, que não ocorre sempre — ver amittebat no v. 1234 — produz também homeoteleuto em –bat ou –bant. Por vezes, como ocorre entre videbat e iacebat, com a penúltima sílaba das palavras em posição forte do pé métrico, temos o que modernamente chamamos de rima, inexistente na poesia latina stricto sensu. Aparecem, porém, ‘rimas’ ocasionais, mas não o emprego sistemático, regular, como conhecemos.

A aliteração foi bastante explorada nos comentários feitos aos outros trechos. É característica elocutiva muito frequente em Lucrécio, que herda provavelmente de Ênio (ver os textos III e IV da série), construindo, em geral, pares aliterativos, como na passagem acima (morbo morti [v. 1232; também paronomásia]; cum corde [v. 1233]; animam amittebat [v. 1234]). Embora ainda muito presente, a figura será usada com mais parcimônia pelos poetas augustanos, que parecem ter percebido o uso lucreciano como excessivo. Seja como for, a aliteração será recurso poético de amplo uso em escritores das mais diversas línguas e por todo o tempo. É bem conhecido o poema de Fernando Pessoa em que parece brincar com a aliteração (assonância e paronomásia): “em horas inda louras, lindas/ Clorindas e Belindas, brandas,/ brincam no tempo das berlindas,/ as vindas vendo das varandas etc.” O par aliterativo se destaca nos títulos das obras de Jane Austen: Sense and Sensibility e Pride and Prejudice. Memorável é o fecho aliterante do Canto 5 do Inferno dantesco (v.142), que poderíamos chamar de pentâmetro iâmbico: “e caddi come corpo morto cade”.

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Lucrécio 6.1235-1238: A Peste (2.2)

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qu?pp(e) ?t?n?m n?ll? || c?ss?b?nt t?mp?r(e) ?p?sc?………………………….1235

?x ?l??s ?l??s || ?v?d? c?nt?g?? m?rb?,

l?n?g?r?s || t?mqu?m p?c?d?s || ?t b?c?r? sa?cl?…………………………..[1245]

?dqu? v?l ?n pr?m?s || c?m?l?b?t f?n?r? f?n?s.

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E de fato, em nenhum momento, cessavam de atacar,………………………..1235

(passando) de uns aos outros, os contágios de ávida doença,

assim como entre as lanígeras greis e as linhagens bovinas.……………….[1245]

E isto, principalmente, cumulava cadáver sobre cadáver.

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O Mesmo que é Diferente: o Poliptoto no Acúmulo de Corpos

Wills (1996), em seu célebre Repetition in Latin Poetry. Figures of Allusion, dedica toda a segunda parte de seu livro ao poliptoto (188-268), recolhendo diversos exemplos nos versos latinos e estudando por categorias morfológicas. Assim, na primeira parte (191-221), observa apenas a repetição dos substantivos. Daí, passa a agrupar os exemplos em categorias, como “sequências e continuidade”, “contato, conflito e combinação” ou “acumulação”. Entre as passagens arroladas nesta última seção (192), encontra-se o v. 1238 do DRN [v. 1237 na referência do livro por não adotar a transposição]: cumulabat funere funus (“cumulava cadáver sobre cadáver”). Ora, não por acaso, no primeiro canto coral do Édipo de Sêneca, em que se trata da origem da peste, encontra-se o mesmo poliptoto em verso adônio (v. 132: funere funus), imitando, portanto, Lucrécio, como já apontou Boyle (2011: ad loc.). Wills (1996: 192) conclui a seção, dizendo: “muito do poliptoto lucreciano envolve continuidade e acumulação na natureza”. Veja-se ainda em Lucrécio, para não apresentar apenas um exemplo, DRN 3.71: caedem caede accumulantes (“acumulando assassinato sobre assassinato”).

O outro poliptoto na passagem, aliis alios (v. 1236: “uns aos outros”), em verso predominantemente datílico, é estudado por Wills (1996: 222-223) na parte dedicada aos adjetivos e pronomes. Tal poliptoto (“um … outro”; “uns … outros”) é herança do indo-europeu, de acordo com Wills (1996: 222, com n. 1). Seja como for, é construção frequente no DRN (27 casos), que passa a ser imitado no gênero (3 ocorrências nas Geórgicas de Virgílio e 7 nas Astronômicas de Manílio). Não parece ser casual que ocorra na passagem que trata dos “contágios” (contagia), podendo, portanto, ser agrupado na seção proposta por Wills (1996: 193): “contato, conflito e combinação”. Contudo, de certo, é imitação de Tucídides (História da Guerra do Peloponeso 2.51.4): ?????? ??? ?????? (“um ao outro”).

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Transposição e Símile com Perífrases

A passagem analisada no texto de hoje apresenta algumas dificuldades textuais, com lacuna entre os vv. 1246-1247, indicada primeiramente por Munro (1928: ad loc.). Ademais, a transposição sugerida por Richard Bentley do v. 1245 para ser o v. 1237, aceita pelos principais editores e seguida por nós, é justificada pela comparação com o modelo do todo, a descrição de Tucídides (História da Guerra do Peloponeso 2.51.4): ??? ??? ?????? ??? ?????? ????????? ?????????????? ????? ?? ??????? ???????? (“mas também porque, infectando-se com o cuidado de uns aos outros, morriam como ovelhas”, tradução de Márcio Mauá Chaves Ferreira).

Se é correta a transposição e certa a imitação do historiador grego, o símile de Tucídides é amplificado pelas perífrases: pecudes lanigerae (“as greis lanígeras”), para referir as ovelhas, e saecla bucera (“as linhagens bovinas”), para os bois. O passo, portanto, ganha elevação com a dupla perifrástica. O epíteto laniger pode ser imitação de Ênio (Sátiras, fr. 15 = fr. 66 Vahlen): lanigerum genus (“a raça lanígera”). Seja como for, a construção lucreciana, que se repete no poema (cf. DRN 2.661 e 5.866), será imitada pelo Virgílio da Eneida (3.642), em que o sintagma ocupa a mesma posição no hexâmetro com a anástrofe separando adjetivo do substantivo: lanigeras claudit pecudes atque ubera pressat (“[Polifemo] encerra as greis lanígeras e preme seus úberes”).

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(Wikimedia Commons)

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Lucrécio 6.1239-1242: A Peste (2.3)

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n?m qu?c?mqu? s??s || f?g?t?b?t v?s?r(e) ?d a?gr?s,

v?t?? || n?m??m c?p?d?s || m?rt?squ? t?m?nt?s…………………………..1240

po?n?b?t pa?l? || p?st t?rp? m?rt? m?l?qu?,

d?s?rt?s, || ?p?s ?xp?rt?s, || ?nc?r?? m?ct?ns.

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Pois todo aquele que evitava visitar seus doentes,

em demasia desejoso da vida e temente da morte……………………..1240

incúria vingadora punia-o pouco depois com torpe

e terrível morte, abandonado, privado de assistência.

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O hipérbato no primeiro verso (1239), com o adjetivo possessivo suos (“seus”) no fim do primeiro hemistíquio e o correspondente substantivo, aegros (“doentes”), como última palavra do verso, é disposição estilizada já presente nos poetas helenísticos, e será um padrão nos elegíacos romanos, sobretudo nos pentâmetros, como exemplificado no segundo texto desta série. Se, por um lado, se separa o adjetivo de seu substantivo, a contiguidade de palavras opostas (fugitabat visere: “evitava visitar”), produz “a nice oxymoron”, nas palavras de Godwin (1991: ad loc.). Assim, o possessivo, que indica quem possui (quicumque), está separado — note-se a força da cesura aqui — dos doentes por evitar a visita (fugitabat visere interpõe-se entre os dois termos).

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Vida e Morte … das Palavras

Horácio, na Arte Poética (vv. 60-62), valendo-se de conhecido símile homérico em que se compara a geração dos homens com a das folhas, trata da “geração das palavras” (v.61: verborum aetas). As palavras, pois, têm um ciclo, uma história, um tempo de vida; a morte, enfim, chega para todos, até para as palavras: como os homens, umas, já muito velhas, morrem; outras são jovens, cheias de vida, recém-nascidas. Em outras palavras, há arcaísmos e neologismos, ambos surpreendem por não ser de uso comum. Os arcaísmos, ademais, conferem solenidade ao discurso, na percepção dos autores antigos. Lucrécio neste trecho faz uso do genitivo arcaico da primeira declinação com vitai (v. 1240: “da vida”), palavra destacada pela cesura em posição inicial, e a forma arcaica poenibat (v. 1241: “punia”), também no início do verso.

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O Andamento Pesado e o Peso da Morte

São raros os hexâmetros espondaicos — aqueles que têm o espondeu no quinto pé métrico — mas raros também são aqueles com ritmo espondaico em que o espondeu só não aparece no quinto pé. O uso, pela raridade, chama a atenção, dando gravidade e peso ao verso. É o que ocorre no v. 1240, assim como no v. 1251. Os dois versos, ademais, têm forte aliteração, formada não por um par, mas por três palavras na sequência (v. 1240: poenibat paulo post; v. 1251: temptaret tempore tali). Horácio, criticando na Arte Poética (v. 260) os trímetros dramáticos de Ênio, também lança mão do ritmo espondaico para fazer com que o ouvinte perceba o peso do verso: ?n sca?n?m m?ss?s c?m m?gn? p?nd?r? v?rs?s (“versos lançados à cena com grande peso”); já Cícero, na sua tradução dos Fenômenos de Arato, pesa a mão no verso (132) em que descreve o pesado trabalho dos marinheiros: ?bv?rt?nt n?v?m m?gn? c?m p?nd?r? na?ta? (“os nautas voltam a nau, com grande peso”). Também Lucrécio tem seu verso “com grande peso” (DRN 3.201), embora com um espondeu a menos: ?t c?ntr? qua?c?mqu? m?g?s c?m p?nd?r? m?gn? (“mas, contrariamente, o que quer que, com grande peso [e] mais”), provável modelo para Virgílio de novo (Eneida 3.49). Enfim, a “terrível e torpe morte” (turpi morte malaque) é pesada punição para aqueles que, tão desejosos da vida, não visitam os seus doentes.

Vale a pena desenvolver um pouco mais aqui o uso do verso espondaico por Lucrécio. Fizemos apenas breve observação no primeiro texto da série. Alonguemo-nos. Outro exemplo em que o poeta parece usar significativamente o espondeu por quase todo verso, incluindo o quinto pé métrico, é a passagem em que afirma ser a natureza do mel mais invariável (3.191): ?t c?ntr? m?ll?s c?nst?nt??r ?st n?t?r? (“mas, contrariamente, a natureza do mel é mais estável”). Vejam-se ainda os seguintes versos no livro 3 do DRN, com comentário de Kenney (1971: ad loc.): 198, 249, 417, 545, 907 (com exceção do v. 417, todos terminam com polissílabo; nos vv. 198 e 907 à última palavra acrescenta-se a enclítica –que). A prática é comum em Catulo, que no Poema 64 apresenta 30 ocorrências em um total de 408 versos (ver Fordyce [1973: 275; 277-278; 289]), com o uso em três versos consecutivos (78-80), único exemplo na poesia latina, mas que tem precedente entre os helenísticos: Teócrito (Idílios 13.42-44); Calímaco (Hinos 3.222-224); Apolônio de Rodes (Argonáuticas 4.1191-1193); Arato (Fenômenos, 953-955). Catulo, portanto, procura imitar a elocução helenística, sendo calimaquiano. Em alguns versos em que há helenismo métrico é comum encontrar helenismo morfológico (ver, e. g., 64.3). O uso lucreciano do ritmo espondaico, incluindo os versos com espondeu no quinto pé, também segue os helenísticos, mas muito mediado pela prática de Ênio.

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Lucrécio 6.1243-1246: A Peste (2.4)

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qu? f??r?nt || a?t?m pra?st?, || c?nt?g?b?s ?b?nt

?tqu? l?b?r?, p?d?r || qu?m t?m c?g?b?t ?b?r?

bl?nd?qu? l?ss?r?m || v?x m?xt? v?c? qu?r?lla?……………………………………..1245

?pt?m?s h?c l?t? || g?n?s ?rg? qu?squ? s?b?b?t.

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Aqueles, porém, que prestaram auxílio, iam-se pelos contágios

e pela fadiga que, então, a vergonha coagia a afrontar,

e a branda voz dos lassos, misturada à voz da lamentação.………¨………………1245

Todos os melhores, portanto, este gênero de morte sofriam.

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A Morte Encontra-se no Fim

Encontra-se novamente a tendência de colocar os verbos em fim de verso (ver comentário acima para os vv. 1231-1233), como ocorre neste trecho em 1243 (ibant: “iam-se”), 1244 (obire: “afrontar”) e 1246 (subibat: “sofria[m]”). Aqui, porém, todos os verbos indicam “morrer”. O verbo ibant é raro neste sentido (ver Oxford Latin Dictionary [OLD], s.v. eo 4b), usado como eufemismo; obire, embora não seja usado aqui no sentido de morrer, o composto do verbo eo (“vou”), significa morrer, usado tanto transitivamente com mortem e diem, como intransitivamente (ver OLD, s.v. obeo 7 e 8, com referência a DRN 3.1042); subibat, por fim, também composto de eo, significa sofrer um infortúnio (ver OLD, s.v. subeo 4), que pode, então, ser a morte, como é o caso aqui: hoc leti genussubibat (“sofria este gênero de morte”).

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Vozes Misturadas

Há novo poliptoto (v. 1245: voxvoce), que, como mencionado acima, é figura bem estudada por Wills (1996). A mistura (mixta) de diferentes vozes é descrita com a repetição do termo em diferentes casos: a voz dos lassos — que parece ser a voz dos parentes que estão em casa cuidando dos doentes, como argumenta Giussani (2019: 440, nota ao v. 1242), apoiado em Tucídides — e a da lamentação (vox querellae, que corresponde às ?????????? ??? ????????????? (“as lamentações dos que estavam partindo”).

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Lucrécio 6.1247-1251: A Peste (2.5)

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?nqu(e) ?l??s ?l??s, || p?p?l?m s?p?l?r? s??r?m

c?rt?nt?s: || l?cr?m?s l?ss? || l?ct?qu? r?d?b?nt;

?nd? b?n?m p?rt(em) ?n || l?ct?m ma?r?r? d?b?nt?r.

n?c p?t?r?t qu?squ?m || r?p?r?r?, qu?m n?qu? m?rb?s………………………….1250

n?c m?rs n?c l?ct?s || t?mpt?r?t t?mp?r? t?l?.

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1247: aliis alium

…………………….

[…] e uns sobre outros, lutando para sepultar a multidão

dos seus: lassos das lágrimas e do luto retornavam;

daí, boa parte entregava-se ao leito pela tristeza.

Não se podia encontrar alguém a quem nem a doença,…………………………..1250

nem a morte, nem o luto não tocasse em tal tempo.

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Corrupção Textual (?)

Embora falte(m) verso(s) antes para o entendimento claro da passagem, todos os recentes e mais importantes editores (Munro, Ernout e Robin, Giussani, Bailey, Deufert) mantêm para o v. 1247: inque aliis alium. Contudo, Lucrécio parece usar o par sempre no plural, como ocorre no v. 1236 (ex aliis alios, que, aliás, ocupa a mesma sedes métrica); vejam-se ainda as seguintes passagens no DRN: 1.358; 1.802; 2.1075; 4.653; 4.658; 6.186; 6.772. Assim, propomos aqui como texto: alios no lugar de alium. A corrupção pode ter se dado pela proximidade do –um em populum, que forma ainda homeoteleuto com a palavra final do verso: suorum.

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Os Mesmos Sons se Sucedem

A passagem de conclusão da segunda parte insiste na repetição de sons e palavras. É notável, primeiramente, a repetição da vogal –i, coincidindo com frequência com o ictus — marcado com o acento agudo na sequência —, sobretudo nos dois primeiros versos (1247-1248): Ínque alIÍs alIos, populum sepelÍre suorum/ certantes: lacrImÍs lassÍ luctuque redÍbant. No mesmo trecho, percebe-se também o acúmulo da sibilante –s (sigmatismo), que associada à vogal –i, formará o homeoteleuto entre aliis e lacrimis. Além disso, há geminatio com poliptoto (aliis alios), par aliterativo (sepelire suorum), aliteração com três palavras na sequência (duas vezes: lacrimis lassi luctuque e temptaret tempore tali) e a anáfora da conjunção nos dois últimos versos (necneque …/ necnec). Assim, é fundamental que se ouça a poesia.

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Lucrécio 6.1252-1255: A Peste (3.1)

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pra?t?r?? i?m p?st?r || ?t ?rm?nt?r??s ?mn?s

?t r?b?st?s ?t?m || c?rv? m?d?r?t?r ?r?tr?

l?ngu?b?t, || p?n?t?squ? c?s? || c?ntr?s? i?c?b?nt

c?rp?r? pa?p?rt?t(e) | ?t m?rb? d?d?t? m?rt?……………….¨…………………..1255

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Além disso, já o pastor e todo armentário

e, igualmente, o robusto condutor do curvo arado

desfaleciam, e no interior dos casebres jaziam, amontoados,

os corpos, pela pobreza e pela doença entregues à morte.…………………..1255

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Inicia-se aqui a última parte do relato (1252-1286), que é também o fim do poema. A conclusão segue ainda Tucídides (História da Guerra do Peloponeso 2.52.1-2), sem ser fidus interpres (“fiel tradutor”; ver Horácio, Arte Poética 133-134), que traduz palavra por palavra (para as principais diferenças, ver Bailey [1947: 1740-1741]; Giussani [2019: 441-442]). Passa-se da descrição da peste na cidade para o que ocorreu no campo: o pastor, o agricultor, todos morriam, amontoados em suas casas. A passagem é marcada pelo advérbio praeterea (“além disso”), termo muito utilizado por Lucrécio para marcar a continuidade do discurso, mudando, por vezes, o tópico ou acrescentando novas informações. Virgílio seguirá a prática não só nas Geórgicas (6 ocorrências), mas também na Eneida (20 vezes) — um único uso nas Bucólicas.

O segundo verso, em que a littera canina (/r/) se destaca — ver o terceiro texto da série —, é quase verbatim o v. 933 do livro quinto do DRN, em que se descrevem os primórdios da civilização quando ainda não havia o “curvo arado” para cultivar a terra: nec robustus erat curvi moderator aratri (“nem havia o robusto condutor do curvo arado”). Note-se a paronomásia que se forma entre a parte final da penúltima palavra (-erator) e a última (aratri). Lá não existia o agricultor e agora, pela peste, pouco a pouco ele deixa de existir (languebat: “desfalecia[m]”). Por fim, note-se o verbo languebat, em enjambement, destacado no início do verso, com a cesura logo na sequência, tal como ocorre no v. 1157 (passagem no primeiro texto da série; para o isolamento do verbo no início do verso, em enjambement, com forte pausa sintática e cesura logo depois dele, ver o quarto texto, em “Cesuras, quedas e separações”).

Por fim, a paronomásia aliterativa morbus e mors (a doença e a morte) — constante em todo o episódio (ver vv. 1250-1251) — resume o relato. Como dissemos no início, o término do poema coincide com o término da vida: a morte pela doença chega para todos, citadinos e camponeses; chega também para os textos. Encerraremos a tradução e o comentário no próximo, mas, tal como no último trecho de Lucrécio apresentado hoje, podemos concluir com aquele monossílabo que raramente ocupa o final do verso (cf. Catulo, Poema 68.19; Horácio, Sátiras 1.7.13): MORS.

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Manuscrito de De rerum natura, por Girolamo di Matteo de Tauris

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Agradeço a Paulo Sérgio de Vasconcellos pelas correções e sugestões. Obviamente, os erros que permanecem são de minha inteira responsabilidade. Agradeço ainda a Giselle de Carvalho pela revisão final.

Peço desculpas pelo atraso. Deveria ter retornado em setembro, como prometido, mas os muitos trabalhos acumulados não me permitiram concluir esta série antes, que espero poder finalizar no próximo mês. 

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Para Saber Mais:

Seguem-se as referências aos textos citados no texto.

Os comentários completos e edições do DRN:

Bailey, C. (1947). Lucreti Cari De rerum natura libri six, 3 vols., Oxford;

Ernout, A. e Robin, L. (1925-8). Lucrèce, De rerum natura: Commentaire exégétique et critique, 3 vols., Paris;

GiussaniC. (1896–98), Titi Lucreti Cari De rerum natura libri sex, 4 vols., Torino (encontra-se uma reedição on-line muito recente (2019), gratuita: http://www.audacter.it);

Munro, H. A. J. T. (1928). Lucreti Cari De rerum natura libri sex, 3 vols. Cambridge.

Deufert, M. (2019). Titus Lucretius Carus. De Rerum Natura, Berlin.

Comentários a um único livro do DRN:

Godwin, J. (1991). Lucretius: De Rerum Natura VI, Warminster;

Kenney, E. J. (1971). Lucretius. De Rerum Natura. Book III, Cambridge.

Comentários a outros poetas latinos:

Fordyce, C. J. (1973). Catullus. Oxford (primeira edição de 1961);

Boyle, A. J. (2011). Seneca. Oedipus. Oxford.

Outros:

Nisbet, R. G. M. (1991). “The Style of Virgil’s Eclogues”, Proceedings of the Virgil Society 20: 1-14.

Nisbet, R. G. M. (1995). Collected Papers on Latin Literature. Oxford, edited by S. J. Harrison: 325-337);

Wills, J. (1996). Repetition in Latin Poetry. Figures of Allusion. Oxford.

Sobre os versos de ritmo espondaico, ver no primeiro texto da série o comentário aos vv. 1134-5 e 1137; no quarto, sobre o v. 1209; sobre o uso de adjetivos compostos como laniger, ver Bailey (1947: 132-134), em seus Prolegomena, VII. §1(a).

Sobre métrica latina, apenas duas referências:

Raven, D. S. (1998). Latin Metre, London (primeira edição de 1965);

Boldrini, S. (2004). Fondamenti di prosodia e metrica latina, Roma.

Sobre o falso fim em Odes 1.10 de Horácio, ver Hasegawa, A. P. (2017). “Mercúrio rouba a voz e o lugar de Apolo no Carm. 1.10 de Horácio”, Phaos 17, pp. 83-100, disponível on-line.

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