CulturaReflexão

O lugar de fala matou a fala

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O lugar de fala matou a fala (e o artista trai a si mesmo)

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Lucian Freud, ‘Woman with an Arm Tattoo’, 1996

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por Hugo Langone

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Ainda se faz clara à memória de muitos quando um deputado tal, bronco, futuro candidato a presidente e futuro presidente de fato, quis exaltar a figura de um coronel particularmente controverso dos tempos de regime militar. A exaltação, feita à vontade em razão do contexto político — e que na verdade, anos depois, viria a favorecê-lo enormemente em sua carreira pública — causou o que se esperava: aprovações e desaprovações não à luz de um juízo objetivo do que se dissera, mas graças a um sentimento de pertença comunitária e a muitos cálculos de vantagens políticas. Meu grupo, minhas regras — e a regra é a do silêncio e da exaltação seletivos.

A dinâmica, naturalmente, multiplica-se como se por espelhos. Aos que não precisam esquecer virá à mente que outro personagem, poucos anos antes e agora à esquerda do espectro político, já mostrara capacidade parecida: tendo também ele esquentado o assento mais importante da república, dissera-se admirador de Hitler e Khomeini — e a velocidade dos meios de informação nos confiaram esse conhecimento em minutos. Desta feita, os sinais se invertem; os que se calariam ante a fala sobre o coronel então se exaltam; e os que no futuro se exaltariam agora trazem ouvidos quais os de Ulisses sob o canto das sereias.

As coisas, deve-se dizer, talvez não sejam tão simples — mas que não se exagere sua complexidade também. Ora, o célebre neoadulto que defendeu, para milhões de espectadores, a liberdade de formação de partidos nazistas não ganhou censura de ambos os lados? Sim, é verdade. Mas sinalização de virtude é também capital político dentro dos grupos de pertença; ademais, cada qual recorreu a suas frases mágicas para o fortalecimento de seus vínculos, e não para demonstrar uma espécie de união ao redor de uma cuja justa: “Devem-se criminalizar também os regimes progressistas que mataram aos borbotões!”, dizia a facção do coronel. Ao que retrucavam os que poderiam desculpar Khomeini: “Eis por que que somos ainda mais necessários para vingar essa mentalidade retrógrada da maioria!”

Por que um poeta trataria de tema assim é uma pergunta pertinente. De fato, é possível tanto a ele quanto a qualquer outro discorrer sobre questões enfadonhas deste gênero, mas nesse caso deverá correr o risco do ridículo que é, para o artista, ser consultado a todo momento sobre os novos acréscimos dos noticiários. Aos artistas é preciso dizer: talvez haja melhor uso de seu tempo. Entre eles, o melhor cumprimento da própria vocação criadora.

Ocorre — e isso, sim, chega-nos a nós, escritores, como uma violência inenarrável — que essa mesma é a dinâmica que se transpôs para as artes. E, quando é este o caso, acresce-se qualquer coisa grave aos ganhos comunitários, sociais, midiáticos e políticos da ostentação de superioridade moral. Que Chico Buarque renegue uma criação própria, datada de décadas, para satisfazer a pressões de quem o taxava de machista dá-nos o exemplo perfeito: o artista permanece, mas permanece sem… a arte.

E a verdade é que todo artista que assim agir permanecerá sendo artista sem arte, escritor sem livro, compositor sem letra — ou, na melhor das hipóteses, artista com uma arte mutilada, o que é o mesmo que dizer que propositadamente só cumpre sua vocação em parte. Os religiosos, ou mesmo os seculares que se propõem a levar a sério seja quais forem suas ocupações profissionais, já há muito que sabem o que os artistas vão agora descobrindo: que o respeito humano é a armadilha à espreita de todo e qualquer chamado. E cumprir uma vocação pela metade… Bem, mais do que um acidente, é dolorosa traição a um convite.

Não é propriamente difícil compreender a razão desses receios. Uma vez que se consolidou a convicção de que há um lugar de fala que autoriza uns a se expressarem sobre determinados assuntos e interdita outros — os que não seriam diretamente interessados, ou vingados, ou beneficiados —, expressar-se se transformou num caminhar temeroso pela terra das opiniões. Colocar-se na pele do outro fez-se impossível porque você não é o outro, enquanto um terceiro é capaz de quaisquer opiniões porque tem validada sua condição de profeta desta ou daquela causa – sempre nobre, sempre redentora. Eis por que um messias político pode, para seu grupo, defender quem quer que seja: ele já é o messias por antecedência, e seus fiéis gozam de uma fé inabalável. O risco, aqui, é que no final se acabe ouvindo, ante o Messias de fato: “Vai, a tua fé te condenou.”

Ora, quando chega no artista, quando toca o escritor (se, ironicamente, quiser eu assumir o meu lugar de fala!), o lugar de fala tem o delicioso mérito de matar toda e qualquer fala. Não é preciso esforço para notá-lo: se integra a atividade artística, para que penetre ela o abismo e a grandeza humanas, o colocar-se em lugar alheio, o encontro e o diálogo com a alteridade, quando cede a essas pressões o autor só poderá voltar-se para si, pois é daí, preso a seus limites sociais, raciais, religiosos etc., que ele se veria socialmente autorizado a falar. Pouco importa, aos olhos dos ativistas, se com isso ele está traindo o próprio ofício, empobrecendo o nobre âmbito em que foi chamado agir, no qual lhe caberia experimentar a doçura e as agruras de uma vida outra. No fundo, pouco importa a fala. Só o lugar vale. O lugar de fala matou a fala. E isso mesmo na literatura, que é fala por excelência.

Não faz muitas semanas que se lançou um livro de poemas todo feito em formas fixas — em formas de sonetos. Não gostaria aqui de faltar com a caridade, mas apenas assinalar, mesclado com certo exercício imaginativo, um estranhamento que — espero mui sinceramente — não há de ser só meu. Pois bem, o autor, figura midiática que muito agrada aos bem-pensantes, repleto da convicção dos justiceiros sociais, mas cuja carreira literária jamais se pôde classificar de destacada, não precisou de muito para ser enaltecido como sucessor “de Glauco Mattoso, que revivifica Gregório de Matos”. O impossível exercício imaginativo? Vê-lo recebendo os mesmos adjetivos e louros se, com o mesmo texto, tivesse os sinais políticos e ideológicos trocados.

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Georgy G. Nissky, ‘En Route’, 1958-64

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Hugo Langone

Hugo Langone é poeta e doutor em Teoria Literária, autor dos livros Do nascer ao pôr do sol, um sacrifício perfeito (7Letras, 2015), A descida do monte Tabor (no prelo) e Chorar por Dido é inútil: Santo Agostinho, as Confissões e o manejo da literatura pagã (Filocalia, 2017).