Literatura

Joan Didion, contar histórias para viver

 por Marcos Aurélio Felipe

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“Se fosse voltar a trabalhar, seria necessário que eu passasse a entender o caos.”

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“A vida muda num instante.

Num instante comum.

Você se senta para jantar, e aquela vida que você conhecia acaba de repente.”

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“Ela já era uma pessoa. Eu nunca me permiti ver isso […]

Contudo, não há um único dia na vida dela em que eu não a veja.”

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“Muita gente de Los Angeles acredita que os anos 1960 acabaram de forma abrupta em 9 de agosto de 1969, no exato instante em que a notícia dos assassinatos de Cielo Drive percorreu a comunidade de uma ponta à outra como um incêndio florestal e, em certo sentido, isso é verdade.”

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Didion

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No final do ano passado, aos 87 anos, morreu a jornalista, ensaísta e escritora americana Joan Didion, de quem li — há algum tempo — e reli agora O Ano do Pensamento Mágico (2005, Ed. Nova Fronteira). Impulsionado pela partida de uma das expoentes do novo jornalismo americano, volto a esse relato e, com mais clareza, reencontro a experiência do luto em Didion decorrente da morte do seu marido, em 30 de dezembro de 2003: John Gregory Dunne — que também foi escritor, jornalista e ensaísta e com quem dividiu alguns roteiros de cinema (dentre eles, Os Viciados, 1971; Nasce uma estrela, 1976; e Íntimo e Pessoal, 1996). Em seu livro O Álbum Branco (1979), refletindo sobre a crítica e a autoria no cinema, ela destrona qualquer romantismo em torno da ideia do autor em Hollywood: “[…] a norma para qualquer um que escreve sobre Hollywood é fugir da realidade econômica e partir em direção a uma metáfora mais atraente, no geral paleontológica […]” ou “Para entender de quem é o filme é preciso olhar não necessariamente o roteiro, mas o resumo do contrato”. Coloca em crise, assim, o seu próprio campo criativo: “O que eu produzia eram notas para os diretores”, como a vemos dizer resoluta no documentário biográfico Joan Didion: The Center Will Not Hold (2017), realizado por Griffin Dunne em exibição no Netflix. A relação de Didion com o cinema, para além de roteirista, pensadora e personagem, estende-se para outras dimensões, como as adaptações cinematográficas dos seus romances: Play it as It Lays Aka O Destino que Deus Me Deu, 1972 — ampliando-se, assim, as interfaces do universo Didion com o da “Sétima Arte”.

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Joan Didion com seu marido John Gregory Dunne e filha (Los Angeles, 1968)

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Joan Didion e John Gregory Dunne passaram toda uma vida juntos, imersos num cotidiano movido pelo trabalho intelectual e pelo amor ao que faziam. Compartilharam, na origem, suas obras (ensaios, romances, perfis literários, reportagens etc.), o que liam e observavam da cena artística, cultural e política dos EUA. Formaram um casal intelectual típico do século XX na cena cultural dos anos 1960 e que atravessou todas as idades da América contemporânea desde lá. Muitas vezes, como leitores privilegiados, eram editor e revisor um do outro, tinham acesso aos materiais que acabavam de sair do forno e, até mesmo, as notas que resultavam em projetos que nasciam na mesa de um restaurante: “Eles eram o leitor mais confiável um do outro” — como vemos no documentário de Griffin Dunne. O ensaio para a Life, que Didion abre informando ao leitor que escrevia naquele momento de Honolulu para não terem que dar entrada no divórcio, foi curiosamente editado e revisado pelo próprio John antes de ser enviado à revista. Os roteiros de filmes iniciados por um, reescrito pelo outro, eram um material com autoria complexa, compartilhada e indefinida, em um processo de reescrita contínua com um autor refazendo, acrescentando, ajustando e alterando o que tinha sido posto pelo outro. Viveram, assim, um cotidiano íntimo e profissional comum, que, por mais de quarenta anos, aconteceu sob o mesmo teto, paralelo à criação da filha adotiva (Quintana Roo) e de amigos e familiares que recebiam nos diversos lugares onde moraram — da Califórnia a Nova York.

Toda uma vida juntos a ponto de nem sequer, como escreveu a própria Didion, precisarem enviar uma carta ao outro — do que se deu conta quando, arrumando objetos e livros depois da partida de John Gregory Dunne, percebeu que nunca havia recebido um bilhete daquele que amou “mais do que mais um dia”. O livro O Ano do Pensamento Mágico é — em todos os aspectos — um relato dilacerante sobre a perda, mas longe da autopiedade, que Didion veementemente recusa. O que não significa secundarizar a ausência daquele com quem compartilhou tudo o que tinha diante de si. Mas é um livro marcante pela capacidade de Didion suspender, isolar e se distanciar da dor (até certo ponto) e, ainda assim, com a verdade de quem vivenciou o que escreveu, entre a ausência e a presença do parceiro, poder trabalhar a perda a partir de um lugar intransferível a outro. Em determinado momento, a percepção que se tem é a de que quem viveu e escreveu sobre o luto parecem não coincidir no mesmo corpo. Sob a escrita de Didion, a perda entra em cena simultaneamente com a reflexão sobre o processo de escrita (literário em múltiplos aspectos e sentidos) e todo o ecossistema factual, cotidiano e pessoal no entorno da morte que, em espiral, é permanentemente recolocada nas páginas do livro.

À medida que o ato de escrever se apresenta nas mais variadas formas, tornando-se um leitmotiv temático ao longo do(s) do livro(s), invariavelmente, a escrita de Didion passa da reflexão psicanalítica ao ensaio, do diário à reflexão mais improvável, do relato ao romance de uma geração. Nesse sentido, não é somente o gênero literário que se transforma, como um mutante que, em um só corpo de escrita, ganha várias faces, mas o próprio objeto do seu pensamento. Talvez, seja o que lhe permita avançar pelos lugares mais recônditos do seu ser, invariavelmente, entre a dor e o distanciamento. Procurei outros livros de Didion na estante, sabia que tinha Noites Azuis (2011) entre os materiais adquiridos há algum tempo e ainda não lidos. Movido pela leitura daquele, finalmente, resolvi percorrer esse outro texto sobre perda, morte e luto na história de Didion. Quintana — a filha adotiva que, pouco antes de John partir, foi internada e veio a óbito quase dois anos depois, é a personagem central: “Quando falamos de mortalidade estamos falando de nossos filhos”. Blue Nights (no original em inglês), que dá título ao livro, refere-se àquele momento do dia em que, em algumas latitudes, o crepúsculo é mais duradouro fazendo as noites se tornarem azuis, o que nos dá “a impressão de que o fim do dia jamais chegará” até que, inevitavelmente, perde sua luminosidade.

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Play it as It Lays (O Destino que Deus Me Deu, 1972), dirigido por Frank Perry

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O livro O Álbum Branco é uma boa iniciação ao texto de Joan Didion. Apresenta outras de suas facetas: o sarcasmo, a ironia, o olhar improvável, o lugar político indeterminado — distante de qualquer comunidade ou bloco de ideias determinado. Em Didion, um hotel em Honolulu não é apenas um hotel. Um shopping center não é apenas um emblema do capitalismo. As estações e os sistemas de tratamento de água no interior da Califórnia não são apenas estações de uma empresa hidráulica. Um militante dos Panteras Negras tem muitas facetas além de sua verve revolucionária. Hollywood não era apenas o lugar das estrelas, mas das ilusões perdidas e dos homens e das mulheres invisíveis. E Nancy Reagan, diante do jornalista de televisão entusiasmado e eufórico, não colheu apenas flores e confessou que sem elas não viveria: “Na verdade, eu realmente preciso de flores”. Há um ethos americano e sinais dos tempos que encerram, em cada um dos ensaios, uma era, um momento particular da história, nos temas mais improváveis que Didion confronta e expõe — e que, de forma circular, apontam para o passado e para o futuro, desenham o fim e o recomeço, uma ideia, um modo de ser americano, um mundo em transição.

Assim como uma forma de confrontar a dor era examiná-la, como uma jornalista e ensaísta, tecendo a crônica íntima do seu círculo familiar e pessoal, Joan Didion — em seu O Álbum Branco — abre inúmeras janelas para mostrar que uma das formas que encontrou para dominar o caos era exercendo seu ofício de escritora. Ao olhar para a realidade complexa do seu tempo, para o tecido caótico, urgente e incompreensível da América sempre em ebulição, deu forma à fragmentação, optando entre as múltiplas escolhas e pontos de vistas e criando narrativas para melhor compreender o mundo diante de si, como lemos no primeiro ensaio que dá título ao livro: “Contamos histórias para poder viver […] Buscamos o sermão no suicídio, a lição social ou moral no assassinato de cinco. Interpretamos o que vemos, selecionamos o que funciona melhor entre múltiplas escolhas. Vivemos, sobretudo se somos escritores, pela imposição de uma linha narrativa para imagens discrepantes, pelas ‘ideias’ com as quais aprendemos a congelar a fantasmagoria que constitui nossa experiência real”. Retornar a ler Joan Didion é colocar em movimento nossos próprios fantasmas, percepções, medos, sonhos, desejos, dilemas e angústias e pensar a partir, com e sobre eles, o que, injustamente, só veio a acontecer após sua partida, como sempre acontece com os perfis póstumos como este que busca apenas aproximações pela coincidência em muitos e tantos aspectos que reencontro em cada um dos seus ensaios.

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Marcos Aurélio Felipe

Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e autor do livro “Ensaios sobre cinema indígena no Brasil e outros espelhos pós-coloniais” (Ed. Sulina, 2020).