Cultura

Messi, Borges y otros camisas 10

por Marcos Peres

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A comparação de Borges com Messi sempre me pareceu conveniente: cerebrais, mas acusados de não argentinidade; este diminuído por não ser esfuziante como Maradona, aquele, cobrado pela ausência da sensualidade, uma constante no boom latino-americano; Messi não fez história no Boca ou no River e, sobre Borges, já foi dito que é ‘mais lido às margens do Sena do que na Prata’. O mesmo Sena que Messi agora vê de perto…

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(Reprodução)

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Se a genialidade e os questionamentos são comuns, uma diferença é gritante: o amor pelo futebol. O menino de Rosário que aos oito parecia o diabo com a bola em canchas de futsal não é parecido com a criança que, aos oito, escrevera um conto chamado la visera fatal, baseado em Don Quixote (que havia lido em inglês).

Borges não gostava de futebol: na Copa de 78, realizada na Argentina, criticou o evento e a pretensão de seu uso como fomentador de uma identidade nacional. Em um artigo que saiu no Jornal do Brasil, “O esporte segundo Borges”, afirmou que o evento era estúpido e apenas servia para aumentar os preços dos produtos. Elogiou o boxe e demonstrou sua preferência pela rinha de galos (?).

A celeuma foi instaurada em seguida por Esteban Polakovic; o filósofo eslovaco radicado em Buenos Aires evocou o esporte como remédio “contra la soledad del hombre”; baseou-se em Ernesto Sábato[1] e atacou o maestro:

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Se Borges pudesse ter visto com seus olhos o que os olhos de todos os argentinos viram no dia 1º de junho na abertura da Copa, tenho certeza que ele teria escrito um poema […] Não há dúvida de que toda a Nação Argentina, como ser vivo e pulsante, esteve presente no Estádio Monumental. (Clarín, Suplemento Cultura y Nación, n. 11.605, 22 jun. 1978, p. 6).

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Resumidamente, disse que Georgie não gostava de futebol porque não podia enxergar. Pesado, mas não anormal: qualquer torcedor sabe que, quando os argumentos se acabam, os ataques se tornam pessoais ou chavões criados para espezinhar. Como o fato inconteste de que o Palmeiras não tem mundial.

Mas este não é um texto sobre a crença ou a refutação do esporte como impulsionador de um povo (ou instrumento ideológico para conformar uma nação). É, sim, a lembrança de que escritores e escritoras também são torcedores. Sábato, autor de Sobre heróis e tumbas e O túnel, o professor, o militante, o físico do laboratório Curie de Paris, o presidente da legendária Comissão Nacional sobre pessoas desaparecidas, foi hincha do Estudiantes. Em um período de crise existencial, abandonou a profissão para se dedicar à literatura em Pantanillo. Enrique Gaviola, de quem Sábato era assistente, questionou a decisão. Anos mais tarde, reconheceu: a ciência perdeu um talento, as letras ganharam um gênio.

E o que perdeu o futebol? Sábato também tentara a sorte nas canchas: no fim dos anos 20, arriscou-se nas divisões de base do clube de la Plata. E, pela declaração do escritor-boleiro (retirada do próprio site do Estudiantes), parece que o esporte não perdeu tanto assim: “No era un virtuoso, eso hay que aclararlo, pero iba y venía y no daba pelota por perdida.” Além da falta de técnica, pode-se extrair da frase o próprio conceito do que é o futebol para Ernesto Sábato: não basta ser virtuose, é preciso dar o sangue. Talvez fosse do time dos detratores de Messi, assim como se opôs ao esnobismo de Borges sobre o esporte bretão.

Em 2004, o autor foi protagonista de uma anedota divertida, envolvendo o jogador Julian Vazquez, “el matador”, que retornava para o Estudiantes após uma temporada no América de Cali. Um dia, no hotel, um representante chamou o atacante e disse que um torcedor queria sua camiseta. Um torcedor especial…

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E ele me disse que o Ernesto Sábato acabara de entrar em contato, que queria uma camisa minha. Me quedei pensando emocionado, imediatamente respondi que sim, mas com uma condição: que ele me desse um livro autografado. E assim fechamos.

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No encontro, o escritor se demonstrou um tiete do jogador desde os tempos de Cali. Abraçou o atacante e assim firmou O túnel, uma das mais importantes obras da literatura sul-americana do Século XX: “Para un delantero exquisito que me va a poner a vibrar.”

Reconhecido pelo clube como “uno de los pinchas más ilustres”, em 2004 fez sua última aparição com a camisa albirroja: foi ovacionado pelo estádio Jorge Luis Hirschi cheio. A cancha foi demolida em 2005, o literato resistiu até 2011, às vésperas de completar cem anos. O novo estádio será denominado Tierra de Campiones. Se o fosse Tierra de heroes y tumbas, estaria bem batizado.

E se o pincha foi aplaudido por um estádio cheio, lord Georgie conheceu a revancha del fútbol. A bola pune, diria Muricy Ramalho, e Borges o provou: o amigo Bioy — aliás, uma dupla que poderia equivaler à Romário & Bebeto, Ronaldo & Zidane, Aloísio Chulapa & Mineiro, e a genialidade da última dupla é, confesso, nascida do meu clubismo — disse em entrevista à Folha sobre a criação de uma revista literária empreendida pelos dois. A Destiempo teve três edições, vendeu muitíssimo, mas só depois entenderam o motivo: destinada a captar o melhor da filosofia, da ficção, do humanismo, a revista era vendida em um estádio com o mote: “Destiempo, a revista para o assento”.

No entanto, o pior estava por vir: o desafeto da Copa de 78 morreu em 14 de junho de 1986, em pleno mundial que consagraria Maradona e “la mano de Dios”. E, aqui, algumas linhas poderiam ser ditas sobre o sujeito que passou quase um século procurando metáforas para este metafísico encontro (as costas do tigre, a duplicidade dos espelhos, o labirinto hermético…) e, em poucos segundos, a imagem se tornar imortal com Diego, a mão, a bola, o gol. Brasil Borges, decime qué se siente.

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(GettyImages)

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Que venha o VAR, justiça seja feita. Borges y Bioy escreveram, vá lá, um conto sobre o futebol. Com o codinome Bustos Domecq, Esse est percipi (ser é ser percebido) começa assim: “Velho turista da zona de Nuñez e arredores, não deixei de notar que vinha faltando em seu lugar de sempre no Monumental, estádio de River…”

A ausência no estádio é contraposta ao torcedor que se senta à frente da TV. A filosofia de Berkeley entra em cena para discutir a nascente massificação dos aparelhos domésticos e a desnecessidade de se deslocar ao estádio. Só há existência quando se é percebida, diz George Berkeley, que não tem a eloquência e os aforismos geniais de seu xará, George Best. E o conto assim expõe o busílis:

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Não há pontuação ou tabelas ou jogos. Os estádios já são demolições caindo aos pedaços. Hoje tudo acontece na televisão e no rádio. A falsa empolgação dos locutores nunca te fez pensar que era tudo um embuste? A última partida de futebol foi disputada nesta capital no dia 24 de junho de 37. A partir daquele momento, o futebol, assim como a vasta gama de esportes, passou a ser um gênero dramático, dirigido por um só homem em um estande ou por atores com camisetas ante o cameraman.

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Se o “conto futebolístico” não tem a riqueza e a paixão de um Nelson Rodrigues, a invocação de Berkeley ganha inéditas luzes nestes tempos em que arenas se esvaziaram pela Covid-19. Talvez não com idealismos filosóficos, mas muito foi dito sobre a perda da ilusão do futebol com os estádios vazios. E exatamente este é o tema do conto:

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Então nada acontece no mundo? Muito pouco – respondeu com sua fleuma inglesa — a raça humana está em casa, atenta à tela ou ao locutor, quando não à imprensa marrom. O que mais você quer, Domecq? É a gigantesca marcha dos séculos, o ritmo do progresso que se impõe.

— E se a ilusão for quebrada? Eu disse em voz baixa.

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Borges exerceu empiricamente o postulado de Berkeley — viu futebol no estádio — uma única vez: um Argentina x Uruguay: saiu do estádio no intervalo. Mais sorte teve Roberto Arlt[2] que, em sua primeira partida da albiceleste, viu o levantar do caneco. Vocês dirão que sou o cidadão mais extraordinário que pisou no mundo pelo que vou dizer: ontem vi minha primeira partida de futebol, disse o autor de Juguete Rabioso depois de ir ao Viejo gasômetro, antigo estádio do San Lorenzo, e assistir à final da Copa América de 1929, outra disputa Argentina x Uruguay. Sua crônica, chamada “Ayer vi ganar a los argentinos”, publicada no diário El mundo (e depois inserida em Aguasfuertes porteñas), termina assim:

Nós, os argentinos, vencemos: 2 a 0. Já fazia muito tempo que os portenhos não jogavam com receio.

Outra final de Copa América foi narrada em um conto de Inês Fernandéz Moreno — Milagre em parque Chas: um personagem que, pouco depois de ficar desempregado, escuta por um walkman a partida: Brasil 1 x 0 Argentina. Enquanto ouve o baile brasileiro, enxerga homens abatidos, castigados por políticos, pela falta de trabalho e, agora, pela iminência da derrota. Subitamente, falta luz e espectadores que viam o jogo em TVs nos bares ficam às cegas. Assim, o portador do walkman se torna dono da narrativa do jogo:

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pude perceber como as palavras, a princípio entorpecidas, se aqueciam, como se tornavam resolutas e até temerárias […] Quase fui o primeiro surpreendido quando, em vez de cantar o gol de Gonçalves com que o Brasil fez dois a zero, desviei a bola alguns centímetros no ar e a fiz bater na trave.

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O Brasil, do carioca Gonçalves e de Quindim, não consegue o gol, e a tribuna respira aliviada. Em seguida, Pasqualito empata. O ouvinte da partida a narra com seus próprios vetores, com seus pessoais valores: paixão futebolística, compaixão por seus compatriotas — e também um exercício literário de reescrita e ruptura.

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Basta-me corrigir o narrador. Quando fala do avanço “dos brasileiros”, digo “dos argentinos”, quando fala “Bertotto dormiu no passe”, digo “Das Portas adormeceu”, quando diz “uhhh, como é que o goleiro argentino engoliu esse frango”, eu falo” uhhh, como o goleiro carioca engoliu…”

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A partir deste momento, o conto pode ser lido como metaficção: o narrador de segunda mão da final da Copa América não é confiável, como não o são os protagonistas de grandes ficções. O resultado, o estranhamento, o milagre, faz parte do futebol, como também da literatura. E aqui eles se juntam:

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um casal se beijando lentamente em Haia se junta à multidão. Em Berna, um velho em uma cadeira de rodas chega até a porta e nos aplaude. Um homem que caminha com dois bassês nas calçadas de Berlim comece a nos seguir. Uma mulher desgrenhada de chinelos passa correndo em Varsóvia e chega até nós. Duas crianças fumando um baseado em Amsterdam também. Como no flautista de Hamelin, a exibição harmoniosa e consistente da seleção argentina é uma música irresistível.

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O Resultado final: Argentina 5 x 1 Brasil, nas camadas das ondas do rádio (e da ficção) que nos chegam.

Luisa Valenzuela sabe que o futebol explica a psicologia do seu povo — o mesmo argumento que faz com que partidas do aristocrático tênis, na Copa Davis, tenham gritos de barras bravas ou que um filme do Darín, ao ser anunciado no Oscar, seja celebrado como gol do Maradona:

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Sabe-se que o argentino, mais que a realidade, se comove pela expressão do desejo, pela ilusão de um triunfo, por mais remoto que pareça. Somos todos campeões, de alguma forma, de alguma disputa, de alguma aposta, de algum canto de nossa alma.

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Também o sabem o protagonista de Walkman e Arlt, que, em sua crônica, reconhece que, no Viejo Gasômetro, o Uruguay jogou melhor, mas os argentinos, embora desordenados, trabalharam com a única coisa que dá sucesso na vida: o entusiasmo.

Sobre entusiasmo e o Viejo Gasômetro, estádio mitológico do San Lorenzo de Almagro, é preciso falar do seu torcedor-escritor mais ilustre: Osvaldo Soriano. Sócio honorário do Cíclon, a honraria foi justificada pela Assembleia do clube de maneira enfática: “Defendió los colores como nadie desde su máquina de escribir y sus contratapas en el diario. Marplatense, noctámbulo, fumador empedernido y amante de los policiales; periodista y escritor. Pero por sobre todas las cosas un enfermo de San Lorenzo de Almagro. Un embajador cuervo”. Sua enfermidade e sua embaixada são explicadas pelo amor que não arrefeceu, mesmo à distância, quando se exilou da ditadura argentina. Na França, golpeava portas às duas da madrugada ao descobrir derrotas do seu time, que então flertava com o rebaixamento. E, de longe, sem poder exercer o Esse est percipi de Berkeley, evocou outro filósofo para usar como amuleto às más campanhas do Ciclón. No lindo El chango Aguero, Schopenhauer y el descenso, Soriano se recorda de uma partida em que peleava, o sonho de vencer o campeonato, as preleções do Mister Peregrino Fernández com lições do filósofo e um companheiro, Chango, que menosprezava essas baboseiras.

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Fomos criados com certos valores admiráveis ??e perversos, e podemos escolher ser leais a eles ou às pessoas com quem cruzamos nosso caminho. A jornada até o gol é, em suma, uma forma de conhecimento, de olhar para nós mesmos e para os outros.

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Assim falou o Mister antes de uma partida importante. No decorrer do jogo, Chinga chuta, escuta-se um ruído seco e a bola cai “inerte y desinflada” na linha do gol. As equipes brigam, o var ainda está longe de ser inventado, o juiz cogita: “es médio gol”. Chinga, que não gosta de livros, foi o único a entender as lições de Schopenhauer, diz Soriano. Enquanto todos discutem, o atacante empurra a bola para a rede e dá uma resposta metafísica para o juiz. Se entender esta lição, diz, Soriano, o San Lorenzo vai escapar do rebaixamento.

Não entendeu: em 1981, Eduardo van der Kooy, do Clarín, dá a notícia indesejada ao exilado de Paris: “están en la B”. E o telefone se silenciou…

Soriano manifestou que tinha dois desejos: voltar ao Viejo Gasômetro e ver o Ciclón campeão. O primeiro não pode ser cumprido — e tem, também, dedos da ditadura. A reforma dos estádios para o mundial de 78 favoreceu o River e o Velez, e os arredores da capital sofreram um processo de gentrificação. Em 1979, ainda com os militares no poder, jogou-se a última partida do Gasômetro. Caia-se o mitológico estádio, o último coliseu erigido de tábuas de madeira, o Wembley portenho:

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el escenario de los partidos de la Selección nacional en las décadas del 30 y del 40, esa legendaria época de oro con cracks que almorzaban 3 platos de ravioles antes del partido (aclaremos: los que los marcaban también comían 3 platos de ravioles), donde Brasil era un escollo menor en los campeonatos sudamericanos y donde el clásico de Argentina era con Uruguay. 

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Casi me pongo a llorar”, Soriano lamentou em uma carta para Eduardo Galeano, quando, em seu retorno, viu um supermercado Carrefour no lugar. O Ciclón voltou para a série A, os milicos[3] saíram para a infâmia da porta dos fundos da História, mas o jejum e a falta de estádio ainda incomodava. “Inquilinos”, chacoteavam os rivais, porque o San Lorenzo se virava para jogar em canchas dos adversários. “La tuya te la hizo el gobierno militar“, respondia a torcida de Almagro/Boedo a partir de 93, quando conseguiu erguer o Novo Gasômetro.

Já o título veio em 1995, e Soriano curiosamente alcançava seu desejo no meio de uma viagem para a França. Sua crônica do dia seguinte, publicada no diário Página 12, é puro amor[4] ao esporte. El Gordo predica que o adversário não pode ganhar sempre porque não é o Santos de Pelé, diz que ganhar é curar-se dos males e que, ontem, usava óculos, mas não hoje: as linhas que saem de suas mãos se originam da mão de Deus, enquanto enxerga o campeão com a mesma claridade que Beethoven escutava em sua surdez.

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Estuve hasta recién festejando a gritos, despertando vecinos, tirándome de cabeza en el colchón. ¡Vamos San Lorenzo, carajo! ¡Veinte años después de aquellas campañas inolvidables, el Ciclón vuelve a ser el más grande.

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A metafísica de Schopenhauer, incapaz de impedir o descenso do time de Almagro, retorna em Obdulio Varela: el reposo del centrojas. Aqui a voz está com Varela, o capitão da celeste no Maracanazo[5], que assim diz ao entrar no estádio da final de 50:

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Quando o Brasil saiu, eles gritaram, claro, mas depois, enquanto tocavam os hinos, o povo aplaudiu. Então eu disse aos meninos: “Vocês viram como eles nos aplaudem. No fundo, essas pessoas nos amam muito.

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Uma fala alegórica da relação de amor e ódio que nutrimos, dentro e fora das canchas. Ao fim, o Uruguay ganha, e o capitão não consegue se sentir feliz pela vitória:

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Eu os olhava e ficava com pena. Tinham preparado o maior carnaval do mundo para aquela noite e nós o arruinamos. […] Me sentia mal. Eu percebi que estava tão amargo quanto eles […] pensei no Uruguai. Lá, as pessoas estavam felizes. Mas eu estava aqui, no Rio de Janeiro, no meio de tanta gente infeliz.

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Esse é o futebol segundo Soriano. Um milagre, capaz de dar o ouvido de Beethoven, curar dores e hipermetropias. Um amor, que também é fonte de pena e raiva. Uma emoção que nos arrebata e que, explicados por técnicos filósofos patagônicos, nos confunde. Como o capitão da celeste, como o Chango, atacante que resolve o impasse do meio gol e que diz ao juiz, depois de empurrar a bola para o filó: “Veja, às vezes parece que queremos e não queremos uma coisa e que o mesmo acontecimento nos alegra e nos entristece simultaneamente.”

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Osvaldo Soriano

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Mas o retrato mais célebre que fez do esporte é seu El pênalti mas largo del mundo — que é inspirado no Angústia do goleiro na hora do pênalti de Peter Handke, prêmio Nobel de 2019, autor do romance e roteirista do filme anônimo, que foi dirigido por Win Wenders.

No relato, o arqueiro Gato Diaz é peça fundamental para a defesa de um pênalti postergado — que dará a alegria para o seu Pueblo e a glória para seu time, o Estrella Polar. No entanto, Diaz está mais preocupado com uma conquista amorosa. Amor e futebol se entrelaçam na trama, e o mesmo ato (a defesa do pênalti) se torna a panaceia de todos os males. Para a felicidade existir, Diaz só precisa escolher: a direita ou a esquerda.

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“Constantemente chutam para a direita.”

“Sempre”, disse o presidente do clube.

“Mas ele sabe que eu sei.”

“Então estamos fodidos.”

“Sim, mas eu sei que ele sabe”, disse o Gato.

“Então pule para a esquerda e pronto”, disse um dos que estavam na mesa.

“Não. Ele sabe que eu sei que ele sabe”

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O conto não trata apenas da angústia das escolhas[6], mas também é um retrato das posteriores decepções, do olvido das conquistas futebolísticas, os amores desfeitos.

Eduardo Sacheri o julga como “Um dos melhores contos de futebol jamais escritos”. E de futebol e celebridade, Sacheri entende: é autor de Segredo dos seus olhos, romance que deu origem ao filme estrelado por Darín e que venceu o Oscar de melhor filme estrangeiro de 2010. Aliás, livro & filme exportaram para o mundo uma partida entre Racing x Hurácan.

Sobre a presença do futebol na trama, duas observações são necessárias: A primeira é que não se trata de mero adereço. O policial-protagonista compreende que, para resolver o crime passional, deverá seguir outra paixão do suspeito: o futebol. E o diálogo seguinte é nuclear para o desenvolvimento da investigação:

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— Tabelião, o que o Racing é para você?

— É uma paixão, meu amigo.

— Mesmo que façam 9 anos que não vençam o Campeonato?

— Uma paixão é uma paixão.

— Entendeu, Benjamín? As pessoas podem trocar de tudo, de cara, carro, família, namorada, religião, Deus. Mas tem uma coisa que não se pode mudar, Benjamín. Não se pode trocar de paixão.

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O segundo ponto é que a paixão pelo Racing foi anunciada ao mundo, mas Sacheri é hincha de Independiente. E a explicação para a inclusão do Racing na trama, e não do Independiente, faz parte da própria engrenagem que move torcedores e seu sentimento quase inato de proteção às cores de seu clube:

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A eleição do Racing obedece uma questão de roteiro. Não resultava ser conveniente falar do River, do Boca ou do San Lorenzo. E, sinceramente, sendo torcedor do Independiente, não queria que um assassino, violador, golpeador de mulheres pertencesse ao meu clube. Por isso, por questão de descarte, acabou sendo o Racing o escolhido.

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Os times argentinos estão presentes em muitíssimos contos, romances, ensaios. Sacheri, do Independiente, escreve sobre o Estudiantes de Verón (Verón, en una foto de El fútbol de la mano) e uma paixão pelo Hurcán (el cuadro del Raulito). Borges, nos diários de Bioy Casares, cita o Boca para mostrar seu azedume com os brasileiros, uma fala que parece ter saído de um bordão do Galvão Bueno: “Um inteligente literato brasileiro ou mexicano seguirá facilmente suas piadas nada convencionais contra a Argentina, mas quando você fala sobre o Brasil ou o México, ele reage como um sócio do Boca Juniors”. Cortázar, também do team boxe, assim escreve na Rayuela de céus e infernos: Num determinado ponto nascia o calo, a esclerose, a definição: negro ou branco, radical ou conservador, homossexual ou heterossexual, figurativo ou abstrato, San Lorenzo ou Boca Juniors, carne ou verdura, os negócios ou a poesia. Fabian Casas, em Los Lemmings y otros, cita o Rosário Central e uma equipe do Hurácan digna de ganhar a Libertadores (la sublime, la tan codiciada y amada y gloriosa Copa Libertadores, segundo Luisa Valenzuela). Ricardo Piglia, no primeiro volume dos Diários de Emílio Renzi, menciona três partidas que acompanhou: uma vitória (Fui à cancha. Boca 2 — Estudiantes 1.); uma derrota em 06/11/1960: Independiente 2 x 0 Boca; e uma terceira entrada registra a partida que assistiu na Bombonera após comprar os tomos do Caminho da liberdade de Sartre. No mesmo ato, Renzi/Piglia fala do pensamento que teve neste dia: Marylin Monroe “cantando con um banjo diminuto.” Curiosamente, aqui não há inserção do adversário ou do resultado da partida. Compreensível.

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(“Fui al cine: ‘Una Eva y dos Adanes de Billy Wilder’. El cuerpo de Marilyn Monroe cantando con un banjo diminuto, en el pasillo del tren . . .”)

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Esther Cross escreve sobre uma torcedora do River, la Gorda Matosas, que se nega a falar o nome do maior rival: Su fidelidad había llegado al extremo de hacer un sacrificio de lenguaje. Jamás decía la palabra “boca”, en ninguna variedad, ni con b larga o corta. —Dice “yeta” en vez de “boca”. No final, suas cinzas são jogadas no centro do Monumental: Dios la tenga en la cancha. E até uma rivalidade brasileira é lembrada: Luisa Valenzuela, espectadora de um Boca x Cruzeiro, El mundo es de los inocentes, ao ver o aparente trunfo dos mineiros, vê que Brasil todo parece em festa: O casi todo Brasil: el club rival de Cruzeiro, en Belo, es el de mayor arrastre popular pero no llegó a competir en la copa y su torcida está tan pero tan mufada que casi casi espera que gane Boca. Também compreensível.

Se Piglia foi de Boca desde la cuna, se Sacheri deu voz à paixão pelo Racing para não macular as cores de seu Independiente, se Soriano e Sábato têm seus nomes no rol da fama do Estudiantes e do San Lorenzo, Juan José Saer tem seu próprio escrete. Deportivo Saer é o time do escritor — e o nome do livro do jornalista Ariel Scher.

O livro, inédito no Brasil, nasceu em 2015. O conto que dá nome ao livro liga o autor de La Grande com expressões típicas do universo do futebol. Perguntei sobre a possibilidade de uma empreitada brasileira similar e Scher, lembrando Carlos Drummond de Andrade, me respondeu que seria lindo um Lispector Futebol Clube ou um Sociedade Esportiva Moacyr Scliar. Claro que eu quis saber quem era melhor: não a disputa de sempre de Pelé x Maradona, mas um Borges x Machado. Scher respondeu que gostamos de jogadas e de leituras — e que a eleição dos melhores depende de arbitrariedade de nossa sensibilidade. Ou: não são os acadêmicos de Estocolmo nem os burocratas da Federação futebolística de Zurique que vão chancelar quem é melhor.

Indo além, alternando-se os vetores, não só escritores e escritoras verteram sua paixão em livros, mas também esportistas consagrados se arriscaram nas letras: O projeto Pelota de papel reúne contos escritos por esportistas, como Pablo Aimar, Mascherano, Cavenaghi, Jorge Sampaoli e Juan Pablo Sorín. A edição deu tão certo que teve um segundo tempo, depois um terceiro — este estrelado por escritoras futebolistas. A quarta edição alargou a proposta para se adaptar ao clima olímpico de Tóquio 2020, com a contracapa assinada pelo astro da NBA, Manu Ginobili e prólogo luxuoso da Gabriela Sabatini.

Mas o futebol é um assunto exclusivo do universo de escritores? Muitas escritoras “entraram em uma festa que não foram convidadas”, para usar um termo de Claudia Piñeiro. E, se alguém insistir, anacronicamente, que futebol não combine com literatura feminina, a voz está com elas: em Matosas, Esther Cross fala do esmalte “rojo y blanco” para pintar “las uñas de River”. Valenzuela, em uma final de Libertadores, diz: me sinto uma mancha de progesterona no meio dessa massa.” Alba Palacios, em Afrodita, conta a história de um jogador que não se vê encaixado na posição que o Mister previra e que, com ganas, rompe fronteiras: “Entonces Alvaro se convirtió em Alba”. A Ex-jogadora Lucila Sandoval conta sobre o começo da seleção feminina, a vitória contra a Inglaterra no mundial de 71: “este cuarito parecia estar ahí para iluminar mi futuro, nuestro futuro, el de muchas a las que alguna vez nos llamaron marimacho. Gabriela Cabézon Câmara, em La guacha redonda, fala de uma jogadora que, para se vingar, joga mais que Diego, que Messi, que Pelé, todos juntos.

É preciso destacar os contos de Luiza Valenzuela, Liliana Heker e Inês Fernandéz Moreno que vestiram a chuteira, entraram sem convite na festa e empunharam a pena nos Cuentos de fútbol argentino, organizado por Fontanarosa. É preciso lembrar outras antologias que quebraram a barreira do machismo premente ao tema: La pelota de papel 3 e Las dueñas de la pelota: cuentos de fútbol escritos por mujeres. O último reúne, no escrete, Esther Cross, Gabriela Saidon e Selva Almada. Aliás, Almada participou de outra coletânea que teve o futebol como temática: Por amor a la pelota: once cracks de la ficción futbolera, composto por escritores e escritoras de diferentes nacionalidades da América do Sul: Almada está ao lado de Sérgio Sant’Anna, o representante brasileiro, e Juan Villoro, o camisa 10 mexicano. Não é pouco.

Claudia Piñero assina o prólogo de duas antologias: Em Las duenas de la pelota, diz que a mulher, ao escrever sobre o esporte popular, precisa suportar a desconfiança e a subestimação. Em Pelota de papel, compara as autoras esportistas com mamushkas: “produto superposto da arte a da palavra de distintas mulheres”.

Torcedora do Independiente, neta de um hincha do Racing, mãe de torcedores do San Lorenzo e do Estudiantes, a escritora compartilha com os filhos as boas — e más — campanhas de seus times. Perguntada o quanto de literatura havia na sua equipe, assim respondeu:

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— Com esse processo do Independiente eu creio que se pode fazer um romance. Não dá para um conto. Um conto é curto. Tem personagens muito interessantes. Tem o que tem toda boa história: conflitos interessantes, personagens interessantes. Tem corrupção. Me faltaria uma coisa mais, mas creio que há de tudo.

— Falta a glória do final?

— Sim, essa história tem que ter a glória ao final.

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Claro que o Brasil tem, também, um time de respeito. Corro o risco do olvido, sei, mas, só para ficar entre os contemporâneos, temos O Drible de Sergio Rodrigues, Ode a Mauro Shampoo e outras histórias da Várzea de Luiz Antonio Simas, Maracanazo de Arthur Dapieve, A Cobrança de Mario Rodrigues, Tijuca América do José Trajano, as crônicas futebolísticas de Xico Sá[7], contos e crônicas de Marcelo Moutinho — talentoso também dentro das quatro linhas, camisa 10 do Pindorama Futebol e Literatura[8]. Temos o Rodrigo Casarin, jornalista, crítico literário, são paulino, zagueiro impiedoso y deselegante. Em seu página cinco, já eliminou o Tiago Leifert com porcentagem recorde para defender a conexão do esporte com a política e comparou Sérgio Sant’Anna com Messi.

Marcelo Moutinho entende que, no período da Copa de 2014, as editoras começaram a olhar para o tema novamente. Atribui o aumento da produção também à democratização da literatura brasileira que, ao permitir um número maior de publicações, acaba tirando a pecha de “assunto menor” que a elite deu às ficções futebolísticas.

Olhar para nossos vizinhos também pode ser um bom caminho. Entender como os argentinos transformaram uma paixão nacional em ficção: leitmotiv para a busca de igualdade, retrato de paixões, instrumento de fomento identitário, como de políticos mal-intencionados… De um lado, há escritores com programas televisivos, “A paixão segundo Sacheri”, com entrevistas a personalidades e sua relação com o esporte; de outro, há um Manguel que criticou a organização da Feira do Livro de Bogotá que transformou estande o argentino em uma enorme cancha. Há hinchas millionários, xeneizes, cuervos, pinchas… Há quase-nobeis, há prêmios Cervantes e estatuetas de Oscar; há realistas fantásticos, cronistas e teóricos do conto cujas táticas e análises possuem a genialidade de um Bianchi ou um Bilardo. Há entusiastas, embaixadores e detratores. Só não há a indiferença, que, por muitas vezes, parece ser a tônica da intelligentsia brasileira para assuntos populares.

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Mario Kempes, 1978

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Notas:

[1] Sábato celebrou a conquista como fomento de transformação da sua nação: Oxalá este merecido triunfo de nossa equipe sirva para levantar o ânimo de nosso povo por empresas mais transcendentes, para criar as bases de uma nação séria, para nos permitir construir um país, onde haja telefones que funcionam, hospitais que sirvam, professores que sejam honrosamente pagos. (Clarín, n. 11.609, 26 jun. 1978, p. 29)

[2] Digo do Roberto Arlt que foi elevado por Piglia a cânone, à altura de Borges, os dois sendo os fundadores das correntes literárias antitéticas que irradiarão por todo Século XX, um verdadeiro Fla-Flu das letras portenhas

[3] A vingança do futebol contra os militares acontece em um conto de Gabriela Cabezón Câmara, La guacha Redonda: aos sete, uma pequena já é goleadora da sua escola. Aos oito, ganha a medalha de ouro no ‘Campeonato Evita’. Aos nove, joga com a 10. Aos 12, vira reserva do Boca. Aos poucos, vira a “Maradona do Ceamse”. Em uma temporada nos EUA, como bolsista, recebe a notícia que seus pais faleceram em um acidente de uma estatal de biodiesel dos militares. A vngança se dá em um jogo de futebol: nas olimpiadas provinciais, joga como Diego, Messi e Pelé. Todos juntos. Em seguida, explode “dize kilos de trotyl” que tinha embaixo da camiseta e o áoice do conto se dá com milicos voando por todos os lados.

[4] Disse de amor, perene, inabalável, mas talvez a emoção correta seja: o transe e o orgulho após uma conquista. Sobre o outro sentimento, indicamos o conto primeros amores, de Arqueros, ilusionistas y goleadores cuja eloquente explicação da fé no futebol é comparada com o gozo de uma relação sexual: cuando la pelota entra en un arco de verdad por primera vez, y no hay Dios más feliz que ese tipo que festeja con los brazos abiertos gritándole al cielo. Ese tipo, hace treinta años, soy yo. Todavía voy, en un eterno replay, a buscar los abrazos y escucho en sordina el ruido de la tribuna.

[5] Diego Lugano, no programa Bola da Vez da ESPN, em 2005, foi perguntado se imitava Varela nas brincadeiras infantis. Respondeu, respeitoso, que não se pode brincar de ser Deus. Uma prova que mesmo os deuses têm seu panteão de divindades.

[6] Uma anedota: Soriano diz que seu conto foi inspirado em um episódio real, uma partida patagônica entre a Unión Alem Progresista x Cipolletti. Eliseo Garcia, atacante do Cipolleti, o cobrador do pênalti, faleceu recentemente, aos 90 anos, em Allen, na região do mesmo Rio Negro que aparece no conto. É curioso que o personagem real tenha morrido de Covid-19. E surpreendente que o atacante que inspirou um conto sobre escolhas tenha morrido do vírus que selou o destino de tantas e tantas vidas. Retirado do jornal: La Mañana de Neuquén.

[7] A conexão entre ‘escritores argentinos’ e ‘futebol’ em alguns casos é quase inexistente. Vasculhei o Google em busca de algo que ligasse Antonio di Benedeto e encontrei algo delicioso, mas de segunda mão: Xico Sá, em um bar, escuta (disfarçando com um livro do Di Benedeto) uma discussão que compara as dores do Chifre e da segundona. “Antes um bom par de chifres, qual um orgulhoso e destemido viking, do que o subsolo do campeonato.”

Também a relação com o futebol não é muito visível na obra de Cesar Aira. Também de segunda mão encontrei que Aira, em uma temporada junto com Carlos Henrique Schroeder, fez piadas pós Copa de 2014. Perguntei para o Schroeder, mas ele não se recorda do teor das piadas. Justo.

[8] O escrete reúne a nata do talento futebolístico nas letras brasileiras (inclusive deste que vos fala), e foi profético nos assuntos ‘placar elástico’ e ‘Alemanha’. O selecionado (sem este que vos fala), em partida realizada na Feira de Frankfurt, perdeu para o time local por 9 x 1 — e não há Schopenhauer que justifique o resultado.

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Marcos Peres

Marcos Peres é graduado em Direito e mestrando em Literatura pela Universidade Estadual de Maringá. Por sua estreia, com o romance "O Evangelho Segundo Hitler", venceu o Prêmio SESC de Literatura 2012/2013, o Prêmio São Paulo de Literatura 2014 e foi finalista do Prêmio Jabuti 2014. Seu segundo romance, "Que fim levou Juliana Klein?" foi lançado em 2014. Seus livros foram publicados em Portugal, Espanha e México.