Resenha

Refletindo sobre os ‘Ensaios’ de Robert Musil

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Refletindo sobre os Ensaios de Robert Musil, traduzidos e comentados por K. Rosenfield

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por Orest A. Ranum

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Com a publicação dos Ensaios 1900-1919 de Robert Musil, lançados recentemente pela editora Perspectiva, o leitor brasileiro tem — enfim — acesso a um notável recorte histórico da cultura europeia do início do século passado. Essa história precisa ser lembrada nos dias de hoje, já que o destino — ou, diria Musil, nossa falta de boa dosagem de “precisão e alma” — provocou uma recaída na repetição (agora ao modo globalizado) dos pendores autoritários no século atual: “Mais do mesmo se repete…” — como já dizia Musil no capítulo 83 de O Homem sem qualidades!

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(Reprodução)

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No Posfácio “A época de Musil em verbetes”, uma série de definições perspicazes de Kathrin Rosenfield elucidam o significado humanístico e filosófico da obra de Musil, não apenas para a literatura austríaca, mas também para a literatura europeia e mundial.  Embora encontremos na obra e nos ensaios de Musil as ressonâncias de muitos clássicos literários e filosóficos desde Hume e Kant, Goethe e Novalis, Nietzsche e Dostoievski, os tópicos que inspiram Musil vão da sátira ao tratado de ética e da tese de lógica matemática ao relato místico.  Construir um herói não heróico, como fez Musil em O Homem sem Qualidades, tem sido uma importante estratégia literária por muito tempo, desde o Simplicissimus de Grimmelshausen até o Tambor de Gunther Grass. O gênero é levado ao derradeiro grau pelo romance ensaístico de Musil — eis a razão pela qual é importante entender a gênese desse romance através dos experimentos de reflexão documentados nos fragmentos e ensaios musilianos, cujo primeiro volume está disponível agora. Esses ensaios juvenis se estendem de 1900 até o final de Primeira Guerra mundial em 1919. O segundo volume ainda em preparação apresentará outros ensaios de 1919 até a morte do autor em 1942.

O conjunto de ensaios escolhidos, traduzidos e comentados por K. Rosenfield permitem compreender melhor a postura do outsider solitário que assumem tanto o pensador-ficcionista, como o herói do grande romance de Musil — aquele homem sem qualidades que procura compreender e coordenar as múltiplas e contraditórias correntes filosóficas e culturais de sua época, ao mesmo tempo que explora os equívocos e engodos aos quais ele mesmo e seus contemporâneos estão sujeitos. Nisso, ele precisa deparar-se com os pendores anti-intelectuais, com as saudades românticas, místicas e míticas e com uma gama de ataques niilistas à racionalidade que permeavam a vida intelectual antes da Primeira Guerra Mundial. O posfácio de Rosenfield explica com admirável concisão que essa reação não existia apenas na Áustria e na Alemanha, mas em toda a Europa, embora tenha tomado uma forma peculiar na Europa Central.  Como enfrentar um retorno nostálgico a um passado (medieval ou grego) – não a histórica Idade Média ou Grécia democrática, mas a fantasias míticas conservadoras, inspiradas num romantismo romanesco e hostil à realidade e à racionalidade modernas?  Como responder ao fervor anti-intelectual que se volta contra o Iluminismo – uma polémica em parte inspirada por Nietzsche, mas que nas mãos de autores menos geniais deixou um imenso vácuo moral?  Quem poderia ter imaginado que a magnífica seriedade do pensamento de Leibniz e Kant seria um dia alvo de ataques? Os ensaios de Musil e os comentários de Rosenfield lançam uma nova luz sobre alguns dos efeitos colaterais da proliferação moderna de públicos e editores, de escritores e associações de escritores diletantes, de jornalistas e publicistas leigos, e de todo o mar de romances e peças, revistas e ensaios publicados nas principais línguas europeias — uma verdadeira inundação das possibilidades do entendimento crítico e um desafio à formação de um cânone fundamentado em algo mais sólido e confiável que o mercado.

Musil foi pioneiro no exame minucioso das tendências anacrônicas, confusas e vagas da crítica cultural do seu tempo; ele percebeu não apenas o desafio dos impulsos positivistas nas ciências exatas, que redefiniram novas fronteiras profissionais, além de surtir os pendores do darwinismo social; Musil viu como ninguém que a fé positivista dificultava a afirmação dos valores do Iluminismo na investigação crítica e filosófica; mas ele percebeu também o perigo das reações — inseguras, oscilantes e oportunistas – da sensibilidade estética e afetiva desorientada pela perda das certezas religiosas e culturais. Com tantos novos focos e linguagens, interesses e objetivos da nova realidade científica, tecnológica e urbana, qual seria o destino da ficção?  A arte e o pensamento moral podem continuar a se concentrar sobre temas tradicionais como o destino de famílias emblemáticas ou (paródia da) a “formação” (Bildung), como pensava Thomas Mann?  Devem os autores privilegiar as classes trabalhadoras?  Ou destacar os indivíduos e suas experiências e responsabilidades mais marcantes?  Retratar a sociedade ou ideias mostrando o caminho para o futuro?

Os ensaios de Musil e os comentários de Rosenfield abrem janelas para todas essas correntes intelectuais e fazem jus a seus contextos políticos, nos quais  Musil percebeu as contradições entre a decadente cultura imperialista dos Habsburgos e os movimentos nacionalistas populares que começam a se afirmar em toda a Europa.  Quando a Europa Central começa a escapar dos estridentes instintos repressivos da Era de Metternich, ela é dramaticamente alterada pela história de sucesso do Reich prussiano-alemão unificado por Bismarck em 1871.  No último terço do século XIX,  três breves guerras consolidariam um novo império alemão — que se posta como rival e antagonista à Áustria enfraquecida e às outras nações europeias.  Ele tinha a notável ambigüidade de ser genuinamente alemão, mas ao mesmo tempo Westfaliano e saxão, etc..  E ao Sul, pôs se em movimento a unificação italiana, podando o Império austro-húngaro do seu parque adriático — o grande adorno da capital imperial Viena.  Quando a ala belicosa atiçou os ânimos para a guerra em 1914, já não foram os Habsburgos que tentaram imitar os sonhos de grandeza de Bismarck; foi um novo contingente de ambiciosos que mal perceberam a que ponto as condições não eram mais as mesmas, e que a própria guerra na era da tecnologia mecanizada estava em processo de drástica mutação.

A contextualização histórica que Rosenfield acrescenta aos ensaios de Musil é tão inspiradora que me fez voltar a refletir sobre as tensões europeias e mundiais de hoje à luz do século passado. (O próprio Bismarck não era um nacionalista do tipo moderno, embora os austríacos talvez o tenham suspeitado disso; estavam nervosos em solicitar a proteção da nova Alemanha, temendo, quiçá, outra guerra para anexar os estados alemães do império dos Habsburgos?  Quem iria acreditar na ideia do poder saciado?  A relação de amor e ódio entre os Hohenzollern e os Habsburgos se estendeu a praticamente todas as questões sociais. … e outras coisas mais nesse gênero me passaram pela cabeça).  Não é nada humilhante nem anódino deixar-se inspirar pelos ensaios musilianos que remontam a mais de um século — afinal, com eles Musil  prepara o grande romance, cuja envergadura foi plenamente compreendida apenas nas últimas duas décadas; além disso, Jacques Barzun[1] argumentou que todas as grandes conquistas do século XX tinham em essência ocorrido antes da Primeira Guerra Mundial.  Basta mencionar os nomes de Freud, Klimt e Wittgenstein — além de Musil — para perceber que é preciso mais do que uma Idade de Ouro da cultura para se fazer uma boa sociedade.

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Musil

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Nota:

[*] Nascido na França, Jacques Barzun (1907-2012) foi filho de diplomatas franceses que decidiram educa-lo nos EUA. Barzun tornou-se um historiador das ideias e da cultura influente nos EUA e Professor na Universidade de Columbia. Ficou famoso com o livro From Dawn to Decadence. 500 Years of Western Cultural Life, 1500 to the Present. 2000.

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Orest Ranum

Orest Ranum é professor emérito da Universidade Johns Hopkins, Maryland, EUA, e autor de vários livros, incluindo Artisans of Glory (1980), The Fronde, a French Revolution (1993) e Les bienfaits, la gratitude et l'action politique (2018).